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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

28
Fev11

Animais raros

Maria do Rosário Pedreira

Há muitos anos, a Quetzal, ainda dirigida por Maria da Piedade Ferreira, publicou um belíssimo romance de Juan Eslava Galán, que ganhara o Prémio Planeta em 1987. Intitulava-se Em busca do Unicórnio e narrava a viagem de um grupo de besteiros castelhanos por territórios de África em demanda do animal mítico cujo corno desfeito em pó curaria a impotência do rei Henrique IV (e também a história de amor e sacrifício de um deles, apaixonado que estava pela virgem que, supostamente, atrairia o unicórnio e os acompanhava naquela expedição); passavam-se vinte anos e, entretanto, Castela passava da Idade Média a uma certa modernidade, regressando os expedicionários a um país completamente distinto daquele donde tinham partido. Há pouco tempo, o unicórnio voltou a aparecer num romance muito bonito assinado por Martin Davies, A Linguagem Secreta das Mulheres (no original, The Unicorn Road), que cruza a história de uma rapariga chinesa que abandona a sua terra para se casar com um desconhecido e a de um jovem em busca de um unicórnio para um bestiário muito peculiar. Ambos os livros merecem uma leitura atenta e deixam um rasto de beleza depois de os terminarmos.

25
Fev11

O tempo do escritor

Maria do Rosário Pedreira

Sou vítima de stress desde que trabalhei num projecto que tinha prazo certo para ficar pronto e no qual nada podia ser adiado. Nessa altura, labutava até às tantas da manhã para deixar tudo pronto e vivia no pânico de me esquecer de alguma coisa – a ponto de, terminado o projecto, dar por mim a decorar sem querer todas as coisas que via escritas (mesmo que em toldos de pastelaria, carrinhas de lavandaria ou etiquetas de roupa). Nunca mais me curei nem consegui reaver a tranquilidade que me permitiria organizar racionalmente o tempo e tenho, por isso, inveja de quem consegue fazer um uso perfeito das horas que passa acordado. Miguel Real, por exemplo, é um ás na matéria: consegue ler tudo o que sai de literatura portuguesa, escrever dois livros por ano, redigir quinzenalmente uma crítica literária, criar textos teatrais, dar cursos de literatura, ser professor de Filosofia do Ensino Secundário, prefaciar e apresentar livros de outros autores (e escreve sempre à mão as primeiras versões). Um dia, perguntei à Filomena, sua mulher, se ele dormia – e ela respondeu-me que as oito horas necessárias a tanta actividade. Perante a minha surpresa, confidenciou-me, porém, que ele era capaz de ficar a escrever no parque de estacionamento do supermercado enquanto ela ia às compras e que não viam televisão nem iam ao cinema.  Mesmo assim, achei que é precisa uma grande organização mental para conseguir produzir tanta coisa de monta. Mas cada escritor tem, certamente, o seu tempo.

24
Fev11

A ditadura das vendas

Maria do Rosário Pedreira

Como editora num grande grupo, no momento da decisão sobre a publicação de uma obra, tenho sempre um tirano a ciciar-me ao ouvido que os livros têm de se vender. Sei que fui eu que o criei como uma espécie de autocensura, que me permite ter os pés bem assentes na terra e recusar o que sei de antemão vir a ser um fiasco e, por outro lado, me puxa pela imaginação para tornar mais vendável o que, à partida, não tem grande potencial comercial mas merece, inequivocamente, ser dado à estampa. Mas a ditadura não é de hoje e aquilo que se vende impera sobre o que é bom há já muitos anos. Em 1996, despedi-me da editora onde trabalhava e – desempregada que fiquei – comecei a responder a anúncios, dentro de actividades mais ou menos compatíveis com as funções que poderia desempenhar. Um deles dizia respeito à vaga para director de publicações num grupo de jornais e revistas, e fui chamada para uma entrevista pela empresa que se ocupava do recrutamento. Porém, assim que cheguei, disseram-me assim à queima-roupa que tinha sido convocada por ter o currículo que tinha, mas não ficaria com o lugar pela mesma razão... Confundida, quis saber porquê. Explicaram-me então que se tratava de contratar alguém que dirigisse quatro publicações, entre as quais figuravam as revistas Maria e Nova Gente. E que, embora as minhas habilitações e experiência editorial obrigassem a que fosse entrevistada, a verdade é que o meu perfil indicava que tentaria melhorar o conteúdo e subir o nível dessas revistas, quando o que se pretendia era mantê-los para que se continuassem a vender...

23
Fev11

O fim dos jornais

Maria do Rosário Pedreira

No meio em que trabalho, todos os dias alguém se lembra de falar do fim do livro em papel e de um futuro risonho cheio de livros electrónicos, descarregados nas nossas máquinas a partir de um armazém virtual. Já aqui falei do que penso acerca do assunto; mas o caso dos livros não é filho único – e com o aparecimento dos jornais online e os seus milhares de seguidores, é igualmente plausível o desaparecimento destes na versão em papel. Eu cá começo o dia a folhear o Público e a ler as gordas e algumas das mais pequenas – e não consigo, assim sem mais nem menos, passar-me para o ecrã do computador; mas entendo que muitos o façam, porque, ao contrário do que antigamente acontecia, as redacções dos jornais hoje ficam às moscas pelas oito da noite e, como tal, aquilo que lemos de manhã é muitas vezes obsoleto e desactualizado. Contudo, acredito que possam sobreviver em papel publicações mais suculentas, que substituam a notícia pura e dura (legível online) por um jornalismo de investigação de que muitos diários e semanários desistiram, mas que as pessoas apreciam ler. Tenho, de resto, saudades da velha revista do Expresso, onde li saborosos artigos de investigação (como uma inesquecível história do banho e dos hábitos de higiene) e da revista LER dos primórdios, em que Francisco José Viegas fazia um levantamento exaustivo de autores de determinado país e nos dava uma panorâmica da sua literatura. Hoje, que temos muito mais leitores activos do que nesse tempo, não seria de apostar nisso mesmo?

22
Fev11

Correntes d’Escritas

Maria do Rosário Pedreira

Logo à tarde, parto mais uma vez para a Póvoa de Varzim onde assistirei à nova edição das Correntes d’Escritas, o melhor encontro de escritores a que já fui na vida. Desta vez acompanharei três autores – a Aida Gomes, o Mário Lúcio Sousa e o David Machado – e tenho a certeza de que, como estreantes no certame, também eles vão ficar aficionados a partir de agora. Tenho razões de sobra para ser uma das maiores fãs das Correntes, até porque foi ali que começou a minha relação a sério com o Manel (já nos conhecíamos há catorze anos e temos outros catorze de diferença) num certo 14 de Fevereiro de 2004 (ele há coincidências), mas muito antes disso já o encontro me tinha levado à certa. Em primeiro lugar, porque a organização é feita sem mácula e de forma afectuosa e familiar (já levaram canja ao quarto de um autor meu que adoeceu por lá); em segundo lugar, porque essa mescla de europeus, africanos e latino-americanos torna os portugueses e espanhóis menos formais e dá um colorido fantástico às mesas-redondas, de onde brotam sempre histórias belíssimas e momentos inesquecíveis; em terceiro lugar, porque ali os egos dos artistas se diluem muito facilmente nos cafés, nas cervejas e nos whiskies bebidos até altas horas todas as noites; e, finalmente, porque há sempre público num auditório onde o difícil é encontrar uma cadeira livre. Mesmo com as restrições orçamentais, a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim manteve o encontro – e nós ficamos contentes com isso.

21
Fev11

Sem fios

Maria do Rosário Pedreira

O Manel leva o seu iPad para todo o lado, mas, como se enganou e comprou um modelo menos sofisticado do que era preciso (não tenham pena, pois assim que apanhe o mundo distraído comprará o mais moderno que encontrar), quer saber se o hotel onde vamos ficar durante as Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, esta semana, é um espaço «wireless». Nem de propósito, a Alice Vieira mandou-me por e-mail este magnífico cartoon, que não resisto a partilhar, sobre a tecnologia sem fios. Divirtam-se.

 

18
Fev11

Pobres autores

Maria do Rosário Pedreira

Não me canso de dizer que a edição já não é o que era – e que, se nos velhos tempos era em torno do autor que tudo girava, agora parece ser o leitor quem dita as regras do jogo. Fui, aliás, surpreendida um dia destes por uma notícia que me fez pensar que os escritores foram irremediavelmente atirados para segundo plano. Rezava o texto que a autora norte-americana de The Vampire Diaries (colecção de livros e série de TV de enorme sucesso), de seu nome L. J. Smith, acaba de ser despedida pela editora Harper Collins, que é dona dos direitos de autor da saga. Parece que os seus últimos livros se afastaram bastante da ideia original da colecção e, ainda que os espectadores de TV não tenham dado por isso, a editora mandou a senhora embora e comunicou que a série vai ser prosseguida por outra autora. Ou seja, o que importa são as personagens e os seus conflitos, e não quem os criou e escreveu (e, se Smith tinha um estilo de escrita distinto da sua sucessora, isso não parece afligir ninguém). Mas o mais estranho é que a vítima de despedimento pede, na sua página de Internet, aos leitores da saga que não boicotem a editora e continuem a ler as aventuras dos vampiros que inventou. Ou recebeu uma choruda indemnização para ficar quieta, ou realmente um autor já não é senão uma peça facilmente substituível da engrenagem.

17
Fev11

Uma visita do passado

Maria do Rosário Pedreira

Um dia destes, na coluna dedicada à literatura infanto-juvenil que Rita Pimenta assina aos sábados no Público, recebi uma grata visita do passado. Tratava-se da reedição de um livro que saiu originalmente em 1966 e foi, por essa época, oferecido à minha irmã e experimentado por ela e por mim ao longo de muitos meses na cozinha lá de casa. Chama-se A Colher de Pau e tem como subtítulo O Meu Primeiro Livro de Cozinha; e, apesar de ser uma obra traduzida, foi adaptada ao contexto português por Maria de Lourdes Modesto, que, logo a abrir, limitava a sua leitura às meninas, pois a cozinha não era então coisa de rapazes. A Verbo teve uma excelente ideia ao tirar este simpático compêndio de culinária juvenil do esquecimento e, tal como quando eu era miúda, em oferecer a quem o compra uma colher de pau (não sabemos é se a ASAE vai achar muita graça). A capa, ao contrário do que costuma acontecer com as reedições de livros esquecidos, é exactamente a mesma que me habituei a ver na estante da minha irmã e só espero que hoje as miúdas achem ainda piada a preparar refeições – da sopa à sobremesa – com a ajuda deste livro útil e bem-humorado e, claro está, da sua colher.

16
Fev11

Desobediência

Maria do Rosário Pedreira

Conheço Eduardo Pitta há muitos anos e aprecio, acima de tudo, a sua frontalidade desarmante – qualidade que nem sempre se encontra nas gentes da cultura, por vezes demasiado preocupadas com o afecto dos outros ou a possibilidade de um tacho onde possam fazer os seus cozinhados sem grandes temperos. Mas, além de pessoa que assume o que diz e pensa, Pitta é um poeta consolidado há décadas, um crítico literário regular e um bloguista de respeito, escrevendo todos os dias no Da Literatura. Pois acaba de reunir uma escolha de poemas seus num volume que dá pelo nome de Desobediência, título que lhe fica bem, sob a chancela da Dom Quixote e com prefácio de Nuno Júdice, autor com obra publicada na mesma colecção. Entre os textos presentes na colectânea, há muitas pérolas, das quais destacaria para amostra este par de versos de que gosto particularmente: «Tinha na retina corpos / imperdoavelmente disponíveis.» Se gosta de poesia, guarde a sua retina e a sua disponibilidade para a leitura desta recolha.

 

 

15
Fev11

Religião tecnológica

Maria do Rosário Pedreira

Escrevi os meus primeiros livros numa velha máquina de escrever que ainda nem era eléctrica e lembro-me de ter de passar tudo a limpo várias vezes (e das dores nas costas) por não gostar de entregar à editora folhas rasuradas. O computador pessoal trouxe imensas vantagens ao meu trabalho – como autora e como editora – e hoje já não viveria sem ele. Há, porém, coisas para as quais ainda o dispenso, e – sei lá porquê – não me passaria pela cabeça sentar-me a escrever um poema directamente  num teclado de computador. E, contudo, li recentemente que nem as coisas mais sagradas estão livres de uma adequação tecnológica. Pois é, o Vaticano acaba de lançar uma aplicação para o iPhone com vista a receber confissões dos crentes. O programa, chamado Confession, custa pouco mais de um euro e meio e oferece aos utilizadores dicas e orientações que lhes permitem obter o perdão divino... Se Fernando Pessa ainda fosse vivo, certamente diria: «E esta, hein?»

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