A fome e a vontade de comer
Aprendi em variadíssimos livros que fui lendo ao longo da vida – entre outros, para não ser exaustiva, A Música da Fome, de Le Clézio, Tudo O Que Eu Tenho Trago Comigo, de Herta Müller, Se Isto É Um Homem, de Primo Levi, ou o que ando agora a ler e de que amanhã falarei – que situações de fome ou extrema carência tornam as pessoas agressivas, insensíveis, capazes de actos de maldade que não cometeriam se se encontrassem confortáveis e bem alimentadas. (No livro de Herta Müller que citei, a forma como os «normais» roubam descaradamente o pão de uma deficiente no campo de trabalho onde estão internados é um bom exemplo deste horror.) E falo do assunto porque tenho observado recentemente um crescendo de ódio, insultos, ataques e garras afiadas nos jornais e nas redes sociais, sendo normalmente as vítimas dessa agressividade os que têm conseguido sobressair da massa anónima e, em suma, obter algum sucesso. Já me disseram muitas vezes que a inveja é uma característica dos Portugueses, mas pergunto-me se não será também a extrema carência em que vivem hoje tantos nossos compatriotas, com trabalho precário ou sem ele, com uma ausência completa de estímulos e de dinheiro, que os leva a fazer publicamente afirmações tão incrivelmente despudoradas como uma que li no Facebook há tempos, em que um crítico que dizia bem de certo livro era acusado de estar a tentar ter sexo com o autor da obra. Um amigo com quem comentei a situação disse-me que há por aí muita gente que deixou de poder pagar as sessões de psicoterapia – e que a automedicação nunca dá grandes resultados. Gostaria de acreditar que, se quem manda neste país tratasse melhor as suas pessoas, não haveria tanta maldade disseminada por aí. Mas também já estive mais longe de perder a fé nas pessoas que juntam à fome a vontade de comer.