Coragem
Quando, ao editar o texto de um romance, sobretudo de um autor que ainda não conheço bem, sugiro alguns cortes, a resistência é normalmente muito grande. Entendo perfeitamente. O investimento em tempo, emoção e trabalho que às vezes se faz num mero parágrafo pode ser tão significativo que é perfeitamente natural que quem o escreveu não queira prescindir dele, mesmo que frequentemente reconheça que não atrasa nem adianta, nem para a economia da história nem em termos puramente estéticos. Conheço, porém, um caso notável de autocrítica e auto-editing (além, claro, de João Ricardo Pedro, o vencedor do Prémio LeYa em 2012, que aproveitou 200 páginas, se tanto, de 800). Um romancista que publico há muitos anos, Miguel Real, que é paralelamente autor de um razoável número de ensaios sobre cultura portuguesa, desempenha também as funções de crítico literário no Jornal de Letras há uma série de anos. Recentemente, foi-lhe entregue para recensear o último livro de Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação (ainda não li). E, após a leitura, confessou que deitara fora na manhã em que redigia a crítica meia centena de páginas que tinha escrito para um pequeno volume que planeava intitular Nova Teoria do Corpo por achar que eram completamente redundantes depois do que Tavares acabava de publicar. Um acto de respeito, mas sobretudo de grande coragem, diria eu. E uma lição, enfim, para quem se recusa até a deitar fora uma simples vírgula.