Desmancha-prazeres
Quando Elena Ferrante começou a escrever livros, pôs ao seu editor como condição para os publicar não ter de aparecer em lado nenhum, alegando que era a obra que importava, e não a pessoa que a escrevia. Deu, é bem certo, algumas entrevistas por e-mail ao longo dos anos, mas ninguém sabia quem era Elena Ferrante, embora houvesse dados que configuravam uma mãe, uma napolitana, uma professora com formação em Clássicas. O sucesso que obteve com a tetralogia A Amiga Genial (ainda não li o último, está em fila de espera) estragou, porém, os seus planos; atraído ele próprio pelo sucesso que representaria a descoberta da real identidade da famosa Ferrante, um jornalista decidiu ir atrás dos rastos da escritora e publicou um artigo em que revela que se trata de uma tradutora chamada Anita Raja, filha de uma alemã que foi para Itália a fugir do Holocausto, casada – isso, sim – com um escritor napolitano que algumas pessoas já tinham pensado ser o autor por detrás do pseudónimo. Para tanto, chegou ao ponto de investigar os dinheiros que saíam da editora para pagar trabalhos a Anita Raja (era demasiado dinheiro para uma simples tradutora) e inventariar bens e casas cada vez maiores e mais bem situadas pertencentes ao casal (um escritor e uma tradutora não costumam ter casas assim tão boas). Embora todos nos perguntássemos quem era a Ferrante, chego à conclusão de que o maior gozo era mesmo não o saber. Porque senti a revelação como um acto de um desmancha-prazeres, além, claro, de uma clara devassa da vida privada (mas sobre isso já muitos falaram). Há, porém, quem defenda que é obrigação do jornalista investigar – e que não devemos criticar, portanto, o autor da descoberta, que fez apenas o que lhe compete. Seja como for, eu preferia não ter sabido a verdade. Não há nada como um bom mistério.