Interpretar
A tradução é um trabalho profundamente exigente: é preciso conhecer bem a língua de partida e escrever maravilhosamente na língua de chegada; é preciso ter senso comum, cultura e, quantas vezes, imaginação e elasticidade mental para resolver questões que quem não se quer dar ao trabalho normalmente remedeia com chatíssimas notas de rodapé. Conheço vários bons tradutores que admiro, com intuição para a tarefa, com um sentido apurado para o que fica bem no idioma para que traduzem, com respeito pelo autor e pelo leitor. Nunca lhes chegaria aos calcanhares se tentasse fazer o mesmo, estou certa; mesmo assim, acho que me sentiria muito mais à vontade diante de um livro e alguns dicionários do que numa daquelas cabinas de intérpretes que se dedicam à tradução simultânea em encontros e congressos, sobretudo quando aparecem situações de quase impossível solução. Contaram-me que, um dia, Cesária Évora foi ao Japão e, numa entrevista, tinha, claro, uma intérprete à disposição. Quando, porém, o jornalista perguntou à cantora como ia a sua carreira, ela respondeu, bem ao seu jeito, «que se ia desenrascando». Ficou então estarrecida a pobre intérprete japonesa, que, acto contínuo, lhe perguntou como é que podia traduzir aquele verbo. Mas Cesária respondeu, lacónica: «Olhe, desenrasque-se.»