Costumo promover ou anunciar eventos em Lisboa que creio interessantes para os leitores deste blogue, mas desta feita, como perdi a sessão na capital porque estava tomada por outra coisa nessa tarde, aviso sobre a sessão a norte, no El Corte Inglés de Gaia, amanhã pelas 18h30. E faço-o porque admiro o conferencista, ele próprio nascido no Porto em 1949, chamado José Pacheco Pereira, conhecido por todos. No âmbito de uma programação que responde pelo nome «Sociedade», este senhor que é escritor, político, foi deputado, é blogger, fundador de um arquivo incrível chamado Ephemera e muito mais coisas, vai falar de «O Novo Velho Continente» e explicar muito do que está mal na construção europeia e os «erros, abusos e interesses escondidos atrás da retórica europeia», sem esquecer, evidentemente, o Brexit, que é um dos seus efeitos negativos, e a guerra da Ucrânia, que de certa forma retirou à Europa o estatuto de continente democrático. Diz Pacheco Pereira que o facto de vivermos hoje num novo Velho Continente não é necessariamente bom. Eu, se estivesse em Gaia, iria ouvi-lo sobre o assunto.
Fernanda, uma aluna insolente de um colégio elitista da Opus Dei, acorda certo dia com as mãos e os pés atados numa cabana escura no meio da floresta – e este é apenas o começo de uma jornada que tem tudo para ser aterradora. Longe de se tratar de alguém desconhecido, a sua sequestradora é Miss Clara, a professora de Literatura perseguida por um passado violento que Fernanda e as colegas atormentam há meses com vexames e perguntas inconvenientes. Porém, os motivos do rapto revelar-se-ão muito mais complexos do que a mera vingança pelos traumas sofridos na sala de aula e, de certa forma, não deixam de estar ligados ao desejo, ao ciúme e mesmo ao amor. Neste romance imaginativo e extremamente hipnótico, a equatoriana Mónica Ojeda – uma das vozes mais aclamadas da literatura da América Latina – cria em Mandíbula um mundo feminino feroz e implacável, partindo das relações nem sempre claras entre colegas de escola, professoras e alunas, mães e filhas, irmãs e melhores amigas. Viciante e imperdível. A tradução é de Rui Elias e a maravilhosa capa de Rui Garrido.
Divido com algumas pessoas o horror aos erros ortográficos. Acho deplorável que os jornais e as televisões cometam erros nos rodapés dos noticiários e nas notícias escritas, pois serão lidos por milhares de pessoas que confiam na sapiência desses meios; e agora, que há liberdade para todos escreverem na redes sociais, pior ainda: os erros estão mesmo por todo o lado, vindos por vezes de personalidades que até imaginávamos cultas, mas... Porém, o mais incrível é quando quem quer ser escritor (ou já o é) dá erros de palmatória ou confunde «iminente» com «eminente» (estou constantemente a encontrar este erro). Sei que muita gente me acha uma exagerada, explicando-me que em todas as épocas houve sempre gente a escrever com erros; mas agora uma amiga solidária manda-me um artigo de uma revista francesa que explica que os erros gramaticais não só ferem os ouvidos como... estão preparados?... fazem mal ao coração! É um estudo britânico feito no mês passado que o sugere, mostrando que a frequência cardíaca se altera quando deparamos com este tipo de erros e que o nosso stress aumenta em conformidade. E, se não acreditam, aqui vai o link, com o qual se podem entreter no fim-de-semana. Até segunda!
Uns dias antes de sair para as livrarias um livro maravilhoso cuja acção decorre numa escola de elite da Opus Dei (escreverei aqui sobre ele oportunamente), falo de um artigo que guardei sobre a quantidade de livros portugueses que estão proibidos por esta instituição e só tive tempo de ler agora. Os livros sempre foram malquistos por certas organizações e muitos deles, como todos sabem, foram queimados pela Inquisição e, mais tarde, pelos nazis que deles fizeram fogueiras públicas. A Igreja também chumbou a leitura de obras que a ofendiam ou iam contra os seus dogmas, e a escola fascista que frequentei durante a ditadura censurava os «fi de puta» de Gil Vicente nos livros escolares. Mas eu desconhecia que a Opus Dei em Portugal tivesse um index tão extenso (mais de 30 000 livros!) de proibições e que, entre as mais ou menos evidentes, como o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, ou A Relíquia e o Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, constassem obras de Lídia Jorge, como A Costa dos Mumúrios ou O Dia dos Prodígios,não se terão mesmo enganado? Faz-me lembrar há muitos anos uma livraria católica em Évora que não quis comprar exemplares de O Primeiro Éden, de David Attenborough, por achar que o Éden era outra coisa, e os censores do Antigo Regime que confiscaram uma biografia de Nijinski só porque lhes cheirou a russo. Brinco, mas não devia...
Já aqui falei de Os Dias de Saturno, de Paulo Moreiras, um romance escrito há uns anos que o autor quis aperfeiçoar e que regressou às prateleiras das livrarias no mês passado pintado de fresco. Como tudo aquilo a que o Paulo Moreiras nos habituou, não só a história é admirável, cheia de peripécias e reviravoltas surpreendentes e tragicómicas, misturando personagens reais e fictícias, amor e comida, como a linguagem é incrivelmente cuidada, com expressões deliciosas que ele resgata da literatura pícara e das centenas de dicionários que consulta. Amanhã será o lançamento desta nova versão em Lisboa, e a apresentação caberá a um outro escritor, João de Melo, que é um autor que, ao contrário de muitos, sempre leu as gerações de escritores que lhe sucederam, e é também um excelente orador, pelo que vamos ter de certeza um bom momento! Vemo-nos lá? Aqui fica o convite.
«Todos os anos, a 16 de agosto, Ana Magdalena Bach apanha o ferry que a leva até à ilha onde a mãe está enterrada, para visitar o seu túmulo. Estas viagens acabam por ser um convite irresistível para se tornar uma pessoa diferente durante uma noite por ano. Ana é casada e feliz há vinte e sete anos e não tem motivos para abandonar a vida que construiu com o marido e os dois filhos. No entanto, sozinha na ilha, Ana Magdalena Bach contempla os homens no bar do hotel, e todos os anos arranja um novo amante. Através das sensuais noites caribenhas repletas de salsa e boleros, homens sedutores e vigaristas, a cada agosto que passa Ana viaja mais longe para o interior do seu desejo e do medo escondido no seu coração. Escrito no estilo inconfundível e fascinante de García Márquez, Vemo-nos em Agosto é um hino à vida, à resistência do prazer apesar da passagem do tempo e ao desejo feminino. Um presente inesperado de um dos melhores escritores que o mundo já conheceu. A tradução é de J. Teixeira de Aguilar.» Assim anuncia a editora o inédito de García Márquez, de que Saramago ouviu ler ao vivo umas páginas num encontro de escritores e nunca mais esqueceu. Um livro que o mestre colombiano andava a burilar havia muito e não chegou a publicar em vida, mas que os herdeiros acharam que não desmerecia o Senhor Nobel e que acaba de ser editado em todo o mundo. Eu cá vou ler, mais alguém?
Sei que a maioria dos leitores deste blogue não costuma ler poesia. Sei-o até pela ausência de comentários quando é sobre poesia ou livros de poesia o post que aqui escrevo, mas não desistirei nunca de a mencionar, até porque acho que, em muitos casos, existe apenas preconceito e que a leitura de certos poemários tirarariam da boca de muitos o tal «não gosto de poesia» que tantas vezes vejo escrito ou ouço. O livro que hoje vos trago é, de resto, obrigatório para quem queira passar uma horas boas ou simplesmente espreitar de vez em quando. Porque reúne o melhor, a nata da nata, de muitos pequeninos livros dispersos por editoras várias e nem sempre fáceis de encontrar. Falo de Taludes Instáveis (Poemas Escolhidos), de José Carlos Barros (autor que já ganhou o Prémio LeYa com o romance As Pessoas Invisíveis), que foi prefaciado por Francisco José Viegas, outro autor de poesia e prosa e, além disso, um conterrâneo, uma vez que ambos os escritores são transmontanos e entendem muito bem a Natureza de que falam. José Carlos Barros, que foi um do autores descobertos pelo DN Jovem (como Riço Direitinho, José Luís Peixoto e tantos outros) é, quanto a mim, um dos poetas mais significativos da contemporaneidade e foi um prazer poder fazer este livro com ele. Já está, de resto, na minha cabeceira. Para ler e saborear aos poucos. Imperdível. Deixo-vos a capa e um cheirinho:
Pedia-te apenas
Lembro-me desse tempo em que dizias
«faço tudo por ti meu amor».
E eu pedia-te apenas que te suspendesses das nuvens
Apesar deste ambiente quase perfeito, ocasionalmente ouvia alusões a conflitos passados, situações que haviam sido, na opinião da maioria das pessoas, criadas pelas alunas. Uma vez, soube, uma aluna grávida e prestes a abandonar o colégio – os pais queriam obrigá-la a ter a criança e a viver fora do país – atirou-se do primeiro andar do edifício do BGU. A rapariga e o feto sobreviveram, mas uma professora que já lá não trabalhava denunciou à direção que Alan Cabrera passara muito tempo a discutir com a aluna e as suas colegas os pecados do aborto. A rapariga grávida saiu tão consternada de uma das aulas de teologia que pouco depois se atirou do primeiro andar. A professora que denunciou o caso também se queixou nas redes sociais das políticas institucionais do Delta e acusou-os de perpetuarem a violência contra as mulheres. Essa professora, obviamente, foi despedida, mas houve mais algumas professoras que sentiram a beligerância do discurso de Alan Cabrera nas suas salas de aula, apesar de não se atreverem a comentá-lo para além dos corredores do colégio. Em situações destas, pensava Clara, não se podia fazer nada: os pais das alunas apoiavam o tipo de educação que ali recebiam e, por essa razão, todos os anos pagavam enormes quantidades de dinheiro para a celebração de cerimónias e atividades da Opus Dei. «Este é o lugar ideal para trabalhar», disse-lhe Ángela no dia em que tomaram café juntas. «Desde que de vez em quando saibas fazer de surda, cega e muda.»
Recuso muitos convites porque mos fazem em cima da hora e já não consigo corresponder. Mas um dia destes esqueci por completo que tinha um compromisso (vá lá, o Outlook lembrou-me a tempo) porque, na verdade, a conversa sobre o assunto já tinha sido há quase um ano. Sobre a antecedência «excessiva», conheço, aliás, uma história deliciosa. Um escritor em princípio de carreira é convidado por uma biblioteca de província (passa-se em Espanha) para fazer uma leitura dos seus poemas daí a oito ou nove meses. Porém, no início do ano, o bibliotecário reforma-se, vem uma pessoa nova substituí-lo, essa pessoa entra de baixa por doença uns meses depois, e desaparece de certo modo o rasto de sessões agendadas no ano anterior. Mas, no dia aprazado, o escritor novato mete-se no carro, leva a velha pasta que herdou do pai, e aparece à hora indicada na biblioteca, de pasta na mão. Dirige-se ao balcão e diz que está ali para fazer a leitura. Então, a senhora sai de trás do balcão e leva-o até um corredor, dizendo-lhe: «É aqui.» Confuso em relação a qual das portas pertence à sala onde deve entrar, ele indaga: «Aqui onde?» É quando a funcionária abre um armário de parede, deixando à mostra o quadro de electricidade. «Não disse que vinha fazer a leitura?» Bem, isto nunca me aconteceu, ainda bem, mas um autor meu já fez uma viagem intercontinental para participar de um festival que, afinal, não tinha sido diivulgado nem tinha público... Ele passou uns dias de praia e turismo óptimos, ganhou o cachet sem ter de fazer nada e voltou à pátria. Histórias dignas de Vila-Matas.
Ontem falei de adaptações cinematográficas e hoje volto à carga, pois um dos meus autores, pessoa sempre atenta ao panorama editorial em Portugal e lá fora, sugeriu-me que visse um filme que até certo ponto descreve bem o estado de coisas a que se chegou. Trata-se de uma longa metragem candidata a vários óscares (cinco, creio), baseada num livro de Percival Everett (já aqui falei deste autor que foi finalista do Man Booker Prize a propósito de um documentário sobre escrita criativa). Tem por título Ficção Americana e fala de um autor negro, médico e professor do Ensino Superior, admirado pela academia e pelos pares, mas cujos livros são cada vez menos lidos. Decide então escrever uma autêntica estopada politicamente correcta de ataque ao poder branco na América, que acaba por ser vendida em todo o mundo, incluindo para uma grande adaptação cinematográfica (a conversa com o futuro realizador é hilariante). Para isso contribui igualmente o facto de o agente inventar que se trata da obra de um criminoso que está preso e não poder, por isso, revelar a sua verdadeira identidade. Pelo meio, é-nos contada a história da família do escritor, cuja mãe começa a revelar os efeitos da Alzheimer e cujos irmãos viveram pelos vistos bastante afastados da estrela intelectual. Vale a pena ver, claro, nem que seja para percebermos o que o mundo dos livros está a atravessar.