No fim-de-semana passado estivemos a celebrar o Dia Mundial da Poesia no CCB com várias actividades. Março é mês de Poesia e de Primavera e lá fora, especialmente nos países francófonos, há muitos lugares onde se festejam ambas com um festival chamado Printemps des Poètes, como é o caso do Luxemburgo, aonde irei no fim do mês. Enquanto não chega a data, estou a deliciar-me com uma antologia que tem organização do poeta Rui Lage chamada Filhos da Época e dedicada ao 25 de Abril, na qual 50 poetas portugueses escrevem poemas políticos. De Manuel Alegre às muito jovens ainda Beatriz Almeida Rodrigues ou Inês Francisco Jacob, passando pela minha geração, com Fernando Pinto do Amaral, Jorge Sousa Braga ou Rosa Oliveira, esta é uma antologia que representa bastante bem a poesia contemporânea e conta com um prefácio de Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República aquando da ideia e da encomenda aos poetas. Aliás, a edição é da própria Assembleia. Espreite e deguste.
Conheci o poeta Paulo Teixeira em 1996, já lá vão quase trinta anos, num encontro de poetas que surgiu por iniciativa de João Soares, então presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Nesse mesmo dia, travei também conhecimento com a querida Ana Luísa Amaral, de quem fiquei amiga, e de Fernando Guimarães e da mulher, tradutora de poesia (Maria de Lourdes); jantámos no Hotel Mundial (que parece que vai mudar de nome e de mãos) e ficámos na mesma mesa. O Paulo esteve que tempos sem publicar e há um ou dois anos publicou a Poesia Reunida que inclui um livro novo; o que eu desconhecia era que também escrevia prosa e acabo de saber que o seu primeiro romance será lançado amanhã no Âmbito Cultural do El Corte Inglés de Lisboa, às 18h30, com apresentação de António Carlos Cortez. Segundo a contracapa é um livro cheio de humor, coisa bem rara na literatura portuguesa contemporânea (o que me provoca ainda maior curiosidade). Chama-se Não Digas O Que a Baiana Tem e trata dos vários encontros que Isabel, uma jovem portuguesa, estabelece em Salvador da Baía. Como ainda nem espreitei, reproduzo o que leio na apresentação: «A narrativa regista os rituais do encontro, os diálogos ferinos, as letras de pagode, as coreografias ousadas. A festa surge como um espaço de realização pessoal, onde as personagens se vingam da rotina e da violência sempre presente. O que o leitor tem em mãos é um romance lúdico e hilariante, que retrata as vivências da juventude e reproduz a rica e inventiva linguagem popular.» Eu cá vou ler. E os Extraordinários?
Ao anoitecer a cidade mergulhava numa névoa espessa que, mais do que descer do céu, parecia surgir do rio, supurada pelas suas águas pestilentas. Uma névoa que se arrastava pelas ruelas e adquiria uma tonalidade amarelenta como se se impregnasse, ao passar, da sujidade das docas e dos subúrbios portuários, por mais que os últimos raios de sol conseguissem arrancar-lhe às vezes enganadoras centelhas de cobre. De madrugada, a sua densidade tornava-se sufocante e apenas com a chegada da manhã começava a transformar-se, sem pressas, numa ténue neblina que só desaparecia já bem entrado o dia. Londres tornava-se então corpórea, real, tão real que podia chegar a ser insuportável. Talvez por isso os habitantes dos bairros mais pobres apreciassem, no fundo, a neblina que envolvia as noites. Ela era a mãe severa que os aconchegava e que ocultava a miséria das suas vidas, uma ardósia onde podiam desenhar sonhos até o sol voltar a levantar o véu a cada dia e a urbe, populosa, febril, fervente como um caldeirão que as águas do Tamisa não conseguiam arrefecer, mostrar o corpo feroz. Uma cidade de onde emanava um halo de corrupção que flutuava com particular densidade sobre os edifícios enegrecidos pela fuligem do bairro de Soho, como uma segunda neblina invisível ao olhar mas perceptível na alarme da pele, que se eriçava perante o espectáculo das ruas.
Ódio, de José Manuel Fajardo, Tradução de Miranda das Neves, Teodolito
Um das vantagens de aprendermos várias línguas é a graça das associações que vamos fazendo ao longo da vida. Um dia destes, já nem sei bem onde, ouvi uma pessoa num balcão de uma loja tratar a funcionária por «minha senhora» e, passaram apenas uns minutos, li a legenda de uma pintura italiana de Caravaggio chamada «Madonna di Loreto». Na verdade, a expressão «Madonna» é formada por «ma» (forma arcaica de «mia», minha) e «donna», que quer dizer senhora em italiano (nós usamos também a palavra «dona» como forma de tratamento ou para aristocratas e rainhas, por vezes abreviada D.). Assim sendo, «madonna» é equivalente a «minha senhora», o que tem alguma graça, porque o «minha» é um tanto ou quanto possessivo, ou não? Já aqui na nossa terra traduziríamos «Madonna di Loreto» por «Nossa Senhora do Loreto», ou seja, usando nossa somos mais altruístas, dividimos a senhora com todos, não a queremos só para nós. Donde virá esta diferença é que não sei... No entanto, ao lembrar algumas performances da cantora Madonna quando estava no auge, dou razão aos italianos e não deixa de me ocorrer a expressão: Minha Senhora!
Naquele dia, Griselda acordou com uma dor de cabeça insuportável e não se conseguiu levantar da cama. Teve de ser Flavia, a filha de seis anos, a lembrá-la de que tinha de ir para a escola. A mãe levou-a a custo e, já em casa, sentou-se ao espelho e maquilhou-se exageradamente, enquanto os filhos pequenos brincavam por ali. Mas a dor persistiu e, quando abriu a porta para dizer ao marido que não se sentia nada bem, Claudio ignorou-a (detestava vê-la maquilhada), desconhecendo a surpresa horrorosa que o esperava no regresso a casa. Griselda e Claudio, argentinos fugidos da ditadura e exilados em França, eram porteiros de uma escola onde a autora deste livro, sua conterrânea, os visitou em criança; e foi com a recordação da sua incredulidade perante os factos acontecidos naquele dia que, mais de trinta anos depois, resolveu contar esta história improvável de um homicídio e entrevistar todos os implicados: Griselda, Claudio, a pequena Flavia, a professora, até a advogada... E é pelas vozes de todas essas pessoas que saberemos como uma mulher que passou por tantos contratempos e desgostos desde a infância se tornou um monstro naquele dia e, ainda assim, depois do crime hediondo que cometeu, foi para a filha uma mãe amorosa. Baseado numa história verdadeira, Naquele Dia, de Laura Alcoba (que virá no final do mês a Portugal), é o relato incrível das causas e consequências de um acto inominável e da forma como por vezes basta uma palavra para desviar alguém do seu destino. Um livro que não se consegue parar de ler.
Há prémios que não me dizem nada, mas tendo a confiar no Booker Prize, pois provavelmente a maioria dos romances que chegaram à final ou venceram esse prémio foram livros de que gostei bastante ou de que gostei muito. Nos últimos anos, claro, houve algumas excepções (Bernardine Evaristo não é a minha praia, devo dizer...) e o Booker, como todos, teve alturas em que fugiu mais para as questões fracturantes do que para a literatura, o que me desiludiu; ainda assim, a média manteve-se muito alta em termos de qualidade. E não é que este não tenha qualidade, mas o penúltimo vencedor do Booker Prize Internacional publicado em Portugal pareceu-me na verdade aborrecidíssimo: repetitivo, pretensioso, cheio de filosofices e com referências muito óbvias a peças de música clássica, não sei explicar, mas li-o arrastando-me ao longo de muitas páginas e suspirei de cansaço em alguns capítulos, quase iguais a outros que tinham aparecido umas quantas páginas antes. Calculo que o problema não seja do livro, mas meu; afinal, os encómios lá fora e cá dentro a este livro (Kairos, de Jenny Erpenbeck) repetem-se, e a badana até sugere a ainda jovem autora como obviamente nobelizável (expressão retirada de um artigo de um jornal bastante respeitável); por isso devo ser eu que ando sem grande ânimo para leituras do tipo. Aos que já o leram pergunto se gostaram, talvez isso me possa dar uma ideia clara sobre o meu estado actual, mesmo que não sobre o romance. Um autor que publico, ao entregar-me o seu último original, perguntou-me se ainda estaria bem de cabeça e podia continuar a escrever. Eu pergunto a quem já leu se a minha cabeça ainda estará boa para apreciar originais...
Nota: este post foi escrito na quinta-feira, para adiantar, porque vou ter uma semana de loucos. Está fora de prazo, como poderão perceber, mas não vou escrever outro pelas razões indicadas. Serve de qualquer maneira para dizer que, quando o assunto é um, o comentário não deve ser a outra coisa...
Na semana passada fui um pouco brusca com um dos Extraordinários. Teve de ser. E hoje escrevo este post para lhe agradecer ter vindo assumir-se como «culpado», ou «retractar-se» simpaticamente, pois imediatamente a fúria me passou. No entanto, acho que devo fazer aqui um esclarecimento: comecei este blogue sozinha e, quando me reformar, provavelmente ainda estarei a escrevê-lo. É um blogue que fala de livros e edição com comentários abertos (por enquanto), mas não é um blogue profissional nem da LeYa, é meu. Até posso comentar livros de colegas (se só lesse os que publico, a minha vida não seria o que é), mas não é por trabalhar na LeYa que conheço as motivações dos outros editores e muito menos algumas celeumas e polémicas que de vez em quando acontecem. De resto, tento meter-me o menos possível nas propostas e decisões de quem trabalha ao meu lado porque também não quero que me façam o mesmo. E, para quem não sabe, é enorme a quantidade de pessoas desde 2021 que faz teletrabalho e vem à editora apenas uma vez ou duas por semana; nem conheço o nome de todos os assistentes editoriais. Por isso, quando me vieram aqui ao blogue falar do caso de um livro recusado pela LeYa, eu tinha estado uma semana fora e não sabia de nada. Perguntei e deram-me a resposta que vos dei. Não li o livro e sei o mesmo que toda a gente. Os jornais já disseram tudo o que havia para ser dito. E quando saírem outras notícias, saberemos todos ao mesmo tempo. Deixem-me por favor em paz com o livro do Germano Almeida que (sabe-se já) vai ser publicado pela LeYa porque quem se queixou afinal não se queixou (e ainda bem).
Daqui por uma semana é Dia Mundial da Poesia (21 de Março, dia da Primavera também), mas eu cá vou comemorá-lo no dia 22, sábado, que é quando terá lugar a programação que começa logo de manhã no CCB. Este ano, convidaram-nos, à Filipa Leal e a mim, para programarmos um dia inteirinho de actividades poéticas e, claro, dissemos que sim! Haverá uma oficina para miúdos de todas as idades (uma espécie de poema-harmónio); uma homenagem ao poeta Nuno Júdice, com testemunhos de amigos próximos e um filme inédito sobre o seu fazer poético; leituras por actores profissionais de alguns dos cerca de quinze poetas que perdemos desde 2020 (e este ano começou logo com a grande perda de Maria Teresa Horta); um podcast de Inês Maria Meneses (quem se aventura a ir até lá ler um poema?); uma instalação de vídeo com leituras de mais de 40 poetas contemporâneos de várias gerações ao longo de todo o dia; um miniconcerto com conversa sobre a poesia do fado com Aldina Duarte e, entre outras coisas, um incrível espectáculo do grande João Gesta, autor de uma série de recitais no Porto que esgotam há anos, recital esse que atravessará a poesia portuguesa ao longo de mais de cem anos. E (o melhor) é que é tudo com entrada livre. Então, vêm? O programa detalhado fica abaixo.
Quem Tem Medo dos Santos da Casa, de Sara Duarte Brandão, é a história de Maria Teresa, uma mulher que cresceu numa pequena vila piscatória entre a austeridade familiar e a liberdade que encontrava nos livros e numa paixão clandestina. Condenada a viver à sombra do que o pai e o marido haviam sonhado para ela, resolveu pôr em causa as ordens e as tradições, tomar as rédeas do seu destino, deixar para trás uma vida de conforto e atravessar o rio em busca de emancipação. Hoje encontramo-la a tecer tapetes numa casa escura que ninguém sabe o que esconde e é considerada uma espécie de bruxa; porém, é numa amizade improvável com uma menina que aprende com ela a amar os livros, que Maria Teresa encontrará a redenção. Com um ritmo poético e introspectivo, a narrativa desenrola-se em pequenos fragmentos belíssimos que reflectem as superstições de uma comunidade marcada por um episódio com consequências dramáticas. Mas onde todos veem horror Maria Teresa vê beleza e possibilidade. Terão, ela e Joana, medo dos santos da casa? Romance inspirado na história dos santos do escultor Altino Maia que foram retirados da Igreja de São Pedro da Afurada, é na ficção que esta obra desafia algumas verdades. Vencedor do Prémio Cidade de Almada.
Falei aqui há cerca de uma semana da solidão com que se escreve (a partir de uma frase de Paul Auster) e da leitura como possibilidade de ficarmos menos sozinhos, de percebermos as personagens como alguém que sofre ou se alegra ao nosso lado. Mas há outro tipo de solidão para um escritor, a da incapacidade de partilhar a vida seja com quem for, porque escrever está sempre primeiro, escrever é a própria vida. Li um dia destes num post de um amigo espanhol no Facebook que o romancista norte-americano Philip Roth está entre os solitários deste tipo. Parece que disse uma vez numa entrevista: «Vivo sozinho, sem ninguém por quem seja responsável ou com quem dividir o tempo. A minha agenda é inteiramente minha. Escrevo todo o dia e, se me apetecer, volto para o meu escritório depois do jantar. Não tenho de me sentar a entreter quem quer que seja. Se acordo às duas da madrugada com uma ideia, acendo a luz e vou escrever. Estou de serviço, como um médico nas urgências. Eu sou a emergência.» Percebo que a escrita às vezes é tão absorvente que não deixa espaço para outra vida. Mas essa outra vida não é o que oferece matéria ao escritor?