Nunca falho um Philip Roth quando aparece um novo e fico sempre com água na boca enquanto não arranjo tempo para ele. Desta vez arranjar tempo foi fácil, pois estava a terminar outro livro e meti-o logo que o terminei, à frente de uma data deles que esperavam na pilha. Tratava-se ainda por cima de A Orgia de Praga, escrito há quase cinquenta anos mas um dos livros da tetralogia Zuckerman Acorrentado, de que já lera os outros três. Como o título indica, passa-se maioritariamente em Praga, no tempo do comunismo, e fala de como os artistas e escritores checos aí vivem permanentemente espiados pelos soviéticos, vigiados e mesmo castigados, quantas vezes impedidos de escrever e publicar. Olga, por exemplo, passa a vida a pedir a Zuckerman que fornique e se case com ela e a liberte do ostracismo e da violência a que é votada pelo seu país. Tentando reagir a uma vida de opressão, muitos artistas acabam por se vingar em orgias e festas lúbricas nas quais o nosso Zuckerman participa quase sem querer. Não tão interessante como os outros três (O Escritor Fantasma, A Lição de Anatomia e Zuckerman Libertado) e bastante mais curto (lê-se em duas ou três noites), é apesar de tudo um Philip Roth.
No âmbito do FOLIO, o festival literário na bela vila de Óbidos que foi transformada numa enorme livraria pelo saudoso José Pinho, teremos hoje às 18h00 a primeira mesa do FOLIO Autores. Nela participam Hanna Bervoets e Eleanor Catton e a moderação ficará a cargo de Ana Daniela Soares. O tema do FOLIO este ano é "Inquietação", e ninguém mais apropriado para falar dele do que Hanna Bervoets, autora holandesa de um romance elogiadíssimo por Ian McEwan e intitulado Tivemos de Remover Este Post. Trata realmente de coisas muito inquietantes, pois tem como personagens um grupo de jovens com empregos precários que resolvem tentar melhorar o nível de vida aceitando trabalhar para uma poderosa empresa dona de uma rede social muitíssimo frequentada. As suas funções consistem em moderar conteúdos, ou seja, retirar o que é ofensivo segundo as normas da empresa, que na verdade pouco têm que ver com as nossas. Mas saberiam eles, quando aceitaram o trabalho, a dose de violência e inquietação que lhes seria servida a cada hora? Eleanor Catton, por sua vez, foi a vencedora do Man Booker Prize em 2013 com um romance chamado Os Luminares, passado na Nova Zelândia, que trata de outras inquietações, como o tráfico de ópio e a prostituição. Eu vou a Óbidos ouvi-las. Venham também. Até segunda.
David Machado, autor que escreve para crianças, adolescentes e adultos, que já viu um dos seus romances adaptado ao cinema e já venceu o Prémio Literário da União Europeia, entre outros, publicou há menos de um mês Os Dias do Ruído, uma ficção fascinante sobre a actualidade, em que as redes sociais têm um papel preponderante nas reacções de algumas das personagens, que assim se sentem amadas, acompanhadas, admiradas, mas também ameaçadas e agredidas, ao ponto de terem de recolher-se num esconderijo com medo das palavras e de alguns dos seus autores. O lançamento público ocorre hoje na Cinemateca, sob a forma de uma conversa entre o autor e dois jornalistas, Marta Anjos e Ricardo Alexandre, para a qual quero convidar-vos, se estiverem por Lisboa. Senão, não percam de qualquer forma o livro, que vale muitíssimo a pena e, sobretudo, fica a ecoar durante muito tempo dentro de nós.
Embora alguns editores estejam periodicamente a trazer ao de cima autores portugueses desaparecidos (como Agustina, Jorge de Sena, Fernando Namora, Alves Redol...), num mundo em que «quem não aparece esquece» existem excelentes autores que tendem a ficar esquecidos (eu, por exemplo, acho que o genial Carlos de Oliveira é um desses casos e aconselho a todos a leitura das suas obras). Mas, além da publicação, há outras coisas que ajudam ao «renascimento» dos escritores, e este ano Vergílio Ferreira teve sorte. Na semana passada, durante o festival Em Nome da Terra foi inaugurada em Melo (Gouveia), terra serrana natal do professor, a Casa Vergílio Ferreira - Para Sempre, que, tendo sido a casa dos seus pais, será um novo espaço cultural que celebrará a sua obra e servirá do mesmo modo de lugar literário inspirador para outros autores, que ali poderão fazer residências literárias com uma bela vista. O festival, que vai na sua 3.ª edição, passará doravante por esta casa, onde se fará também anualmente a entrega do Prémio Vergílio Ferreira. O projecto da «Casa Amarela» teve curadoria de Valter Hugo Mãe e conta com muitos objectos oferecidos pelos netos do escritor, como um relógio «napoleónico», segundo leio no site da Rádio Renascença. A casa está cheia de livros, entre os quais seguramente o romance Para Sempre, no qual o protagonista recorda a sua vida durante uma tarde de Agosto numa casa que supostamente foi aquela. Mais um lugar para visitarmos.
Não escondo que amo profundamente a minha mãe centenária e que sempre tivemos uma boa relação, embora isso não nos tenha dispensado de várias discussões porque, sobre muitas coisas, pensamos de maneira diferente. Já a minha irmã foi sempre mais pai e o feitio da nossa mãe também nunca facilitou as coisas. A relação entre mães e filhas é em muitos casos difícil e não faltam filmes e livros a prová-lo, como A Pianista, de Elfried Jelinek, Carta à Minha Filha, de Maya Angelou, ou Beloved, de Toni Morrison, só para referir alguns. Às vezes, mesmo que o amor seja inegável, mãe e filha não conseguem estar juntas e uma briga acaba por separá-las para a vida. Ora, acaba de ser lançado um romance que fala justamente disto, Como Amar Uma Filha, da israelita Hila Blum, livro finalista do Prémio Fémina em França, no qual a protagonista (a mãe que apenas consegue ver os netos de longe porque não fala com a filha há muito) dialoga com as escritoras que a autora confessa gostar de ler: Susan Sontag, Margaret Atwood ou Alice Munro. A coisa promete e a capa é belíssima. Vou espreitar.
No início da minha carreira na edição, li muitos livros de divulgação científica e cheguei a traduzir um livro de Carl Sagan que falava da descoberta da área de Broca no cérebro de um Homo sapiens, aquela onde reside a capacidade de associar o pensamento ao discurso, de criar a linguagem. Mas há ainda muito por descobrir em termos do nosso cérebro... No ano em que nasceu Pessoa (1888), um espanhol de 36 anos, Santiago Ramón y Cajal, propôs-se desenhar o sistema nervoso central, célula por célula, em busca do cantinho do cérebro onde se escondiam as ideias dos filósofos, a imaginação científica e a fantasia literária, mas, claro, logo entendeu que a tarefa era inglória. O primeiro passo para esta missão quixotesca acaba, porém, de ser dado, tendo sido finalmente mapeado o cérebro... da mosca-da-fruta. Não se ria. Trata-se de um insecto com comportamentos quase tão complexos como o ser humano: interpreta canções durante a corte e a cópula; consegue observar, cheirar, ouvir, andar e voar; é capaz de orientar-se em distâncias longas e possui memória de longo prazo. O mapa do cérebro da larva destas moscas tem uma estrutura com 3016 neurónios e 548.000 ligações entre eles. É só preciso multiplicar isto por 100 e temos um cérebro humano adulto. Já não falta tudo para saber onde vão os escritores buscar as suas ideias e histórias... O artigo do El País onde descobri isto pode ser lido aqui:
Escrevo em cardinal e não por extenso, porque foi assim que este número nos foi gravado a fogo: o desenho de um punhal deitado que dobrava a lâmina para baixo para se enterrar nos nossos corpos espantados de criança. «7.» Depois desse sete-seta, nunca mais voltaríamos a acreditar na bondade dos adultos. Na primeira classe, aprendíamos que a nossa infância morreria, todos os dias, mais um pouco.
A mãe levou-me pela mão, estrada fora, com outras mulheres que iam acompanhar os filhos no primeiro dia. Riam-se muito e falavam alto, nervosas.
«Ficas com o senhor professor que logo venho-te cá buscar.»
Havia crianças que choravam, que se agarravam à saia das mães, que se despegavam a custo ou à bruta, conforme o caso. Eu, não. Sabia que não adiantaria nada.
Várias mulheres repetiam por delicadeza, bem alto, a voz sempre nervosa:
«E se ele se portar mal, bata-lhe, senhor professor. Arrime-lhe, que tem a minha autorização.»
Na cabeça de Steven, o avô paterno, que via sobretudo nas férias de Verão na aldeia, era igual a todos os avôs que conhecia, sem nada de estranho ou assinalável. Até ao dia em que, já depois da sua morte, lhe foram parar às mãos uns cadernos escritos por ele ao longo de muitos anos, que revelavam uma pessoa completamente diferente: um homem que estava longe de ser bom e que, pertencendo a uma família judia, conseguira a proeza de se tornar gangster, mercenário, espião e até oficial superior das SS durante a Segunda Guerra Mundial, acabando prisioneiro num campo de trabalho russo. E mesmo que se trate de alguém que cometeu crimes hediondos, é impossível aos leitores desta história não sentirem uma secreta admiração por este homem que, tendo vivido tantas vidas em tantos lugares, conseguiu afinal fazer-se esquecer. Steven Braekeveldt, apostado em tirar o avô do anonimato, entrelaça em O Homem Que Se Fez Esquecer ficção e realidade para nos contar uma vida única em episódios que recuam ao final do século XIX e que incluem personalidades conhecidas de todos, entre as quais o escritor John Steinbeck e o repórter Robert Kappa, de quem o protagonista foi amigo quando viveu em Nova Iorque. Uma narrativa alucinante com um ritmo incrível, a não perder.
Disse-vos anteontem que iria falar-vos de um autor bósnio, o escritor Velibor Čolić, recentemente dado a conhecer cá em Portugal através de O Livro das Despedidas, o seu primeiro livro escrito originalmente em francês. A França é, de resto, o lugar onde o autor se refugiou depois de ter desertado da guerra da Bósnia, depois de ter sido feito prisioneiro e depois de ter fugido da cadeia, apesar de pesar cento e tal quilos. Tal como ele diz, os editores chamam romance ao que escreveu, mas é só para vender melhor, porque não se trata de um romance. E tem razão, claro, o seu livro é sobre a sua vida, contada sem reservas, com muito álcool à mistura, com sexo, com todas as enormes dificuldades que sente um refugiado político em integrar-se num país novo, um país onde os que vêm de fora são olhados de lado e frequentemente maltratados. Mas talvez aqui a história de todas estas vicissitudes (atenção: o relato é tudo menos um «choradinho» porque este senhor não tem papas na língua e é tão bom a fazer crítica como autocrítica) nem seja o mais importante; o que este livro tem é uma linguagem avassaladoramente inventiva que me fez pensar que em todas as páginas há frases que eu gostaria de coleccionar. E, tratando-se de alguém para quem o francês é a língua do exílio, e não a sua própria língua, dá que pensar como consegue o nosso bósnio escrever tão maravilhosamente. Aconselho mesmo. Em algumas parte fez-me lembrar o filme Eu, Daniel Blake, não sei bem porquê. Mas mais cínico, mais autêntico e menos condescendente. Há bastante tempo que um livro de um autor desconhecido não mexia tanto comigo.
Terminei-o ontem e tenho de confessar que, apesar de se tratar de um romance que começa mesmo bem, que promete, que é diferente, acabou por não me convencer. A autora Deborah Levy já cá tem vários publicados e, se não me engano, foi finalista do Booker Prize duas ou três vezes. Porém, este Azul de Agosto não é o meu género de romance e arrastei-me ao longo das suas páginas: quanto a mim, nem constitui uma história bem contada, nem um livro sem grande história mas com uma linguagem ou uma estrutura poderosa. Na verdade, achei-o um livro sobre coisa nenhuma. Talvez o defeito seja meu, pois a autora é, segundo já percebi pelo que tenho lido, muito estimada e considerada, mas mais uma vez é aquele tipo de livro feito à medida para os tempos e as questões fracturantes, o que me parece sempre oportunista, até porque o assunto nada tem que ver com essas questões. Mas, enfim, posso ser eu a envelhecer e a gostar de cada vez menos coisas, e a premissa até é interessante: uma pianista que deixou o palco em Viena a meio de uma peça de Rachmaninoff e não voltou a tocar (e que gostaria de saber porque foi abandonada em criança e entregue a um mestre de piano, que a adoptou e está agora às portas da morte). Tem uma dupla, que encontra em vários países por onde passa e corre o risco de ser ela mesma. Leiam e dêem-me a vossa opinião.