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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

11
Set24

À vontade do... escritor

Maria do Rosário Pedreira

Lembro-me perfeitamente de o meu pai nos contar que Balzac escrevia de pé, numa espécie de prancheta inclinada, semelhante a um estirador de arquitecto, e ia atirando para o chão as folhas que concluía, apanhando-as apenas ao final da jornada de trabalho. Onde leu ele isto, não sei, pois então não existia Internet, esse depósito de informações inúteis; provavelmente num livro sobre Balzac, ou nem isso,  num livro que apenas o mencionasse en passant, isto para usar uma expressão na língua do autor de A Mulher de Trinta Anos. Bem, a verdade é que foi num livro que li há muito pouco tempo (e também en passant, porque o dito livro não é sobre escritores) que Balzac não estava sozinho na opção de escrever as suas obras nessa estranha posição, pois escreviam igualmente de pé, apoiados numa escrivaninha alta, Hemingway, Virginia Woolf, Dickens, Lewis Carroll e o querido Philip Roth. E que escritores ainda mais excêntricos (em termos de postura a criar) escolhiam escrever deitados, sendo isso mais ou menos esperado num Proust sempre doente, mas já não tanto em Truman Capote, Mark Twain ou até George Orwell que se definiu, aliás, como um autor "completamente horizontal" e incapaz de pensar estando na vertical... Ele há coisas.

10
Set24

Leituras atrasadas

Maria do Rosário Pedreira

Quando tenho livres alguns dias seguidos, como nestas férias, procuro ler alguma antiguidade que me escapou, a par dos romances acabados de sair e muito badalados. Este ano aconteceu com Nós Matámos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, que recuperei da estante dos autores lusófonos mas foi relançado pela editora Maldoror recentemente. É uma colectânea de sete contos belíssimos, o primeiro dos quais dá nome ao conjunto, escrita originalmente em 1964 por um homem cujo talento foi descoberto por José Craveirinha, Rui Knopfli e Eugénio Lisboa, mas que lamentavelmente se separou muito cedo da literatura, casando-se decididamente com a política. Moçambicano, Honwana foi perseguido pela PIDE, torturado e preso, e este seu livro, que é uma denúncia do colonialismo, foi apreendido quando saiu. As actividades do autor como membro da FRELIMO não cessaram por causa disso e foi, além de uma personalidade bastante interventiva, um destacado jornalista e dirigente político, tendo, já com o país independente, desempenhado uma série de cargos nacionais e internacionais de grande relevo. Nós Matámos o Cão Tinhoso tem contos magistrais, sendo o meu preferido o que se chama "Dina" e que fala de uma rapariga negra que tem um encontro marcado com o branco que é capataz do pai. 

09
Set24

Os dias que correm

Maria do Rosário Pedreira

Dois anos depois de ter matado um terrorista islâmico evitando um atentado num café de Paris, Laura viaja pelo mundo contando a sua história e promovendo o livro em que relata o acontecimento. A fama em torno do seu nome espalha-se por toda a parte mas, nas redes sociais, o debate acerca do que fez levanta questões sobre racismo, xenofobia e todo o tipo de extremismos. Laura é glorificada por muitos, mas também alvo de ameaças de morte que, se a princípio prefere desvalorizar, acabam por obrigá-la a fugir e procurar refúgio no único lugar onde, contrariamente a tudo aquilo em que acreditava, se sente segura. É então nas pausas desse ruído virtual que enche o mundo, e de que ela também depende inexoravelmente, que Laura, nas suas múltiplas reflexões acerca do passado, da sua relação com os pais e com o ex-marido e da sua experiência como repórter de guerra, compreenderá as implicações do seu acto. Numa narrativa muito pessoal e emotiva, Os Dias do Ruído – o muito ansiado novo romance de David Machado, vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura – explora as complexas dimensões do mundo contemporâneo, profundamente dominado pelas redes sociais, em que as vozes se sobrepõem quase sempre numa estridência incompreensível.

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06
Set24

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

Festejávamos, com alguns meses de atraso, os dez anos da refundação do Instituto por Paul, ao mesmo tempo que prestávamos homenagem à pessoa do fundador. Ou, mais precisamente, celebrávamos o décimo aniversário da «unificação» do Instituto, na primavera de 1991, e o quadragésimo aniversário da sua criação em 1961. Mas tratava-se, acima de tudo, de uma celebração dos trabalhos de Paul. Acho que não faltava ninguém – dos históricos, os do Leste, estavam todos presentes; os novos membros, os colegas de Berlim e de outros lugares tinham quase todos aceitado o convite. Alguns, como Linden Pawley, Robert Kant e alguns investigadores franceses, até tinham vindo do estrangeiro. Este congresso flutuante intitulava-se Jornadas Paul Heudeber; estavam previstas dois sessões por dia, teoria dos números, topologia algébrica, assim como uma sessão de história da matemática na qual eu iria participar.

O único ausente era o próprio Paul.

Maja acabava de festejar o seu octogésimo terceiro aniversário.

Maja bebia litros de chá.

Maja estava alegre e triste e silenciosa e faladora.

Todos sabíamos que o lugar dela não era ali, a bordo do Beethoven num colóquio de matemática; todos sabíamos que ela era indispensável ali.

 

Mathias Énard, Desertar, tradução de Joana Cabral

05
Set24

Maravilhosamente original

Maria do Rosário Pedreira

Hoje há lançamento, e é na Figueira da Foz, onde vive o autor, António Tavares, que já foi finalista e vencedor do Prémio LeYa (e que ganhou muitos outros prémios com esses ou outros livros). É um escritor prolixo, que mexe vários cordelinhos; e, se me surpreendeu muitíssimo positivamente no ano passado com um pequeno livro de poemas chamado A Arte de Usar a Baioneta em Tempo de Guerra, que inclui também algumas ilustrações belíssimas e delicadas, surpreendeu-me mais ainda ao propor o livro de contos que hoje apresentamos, intitulado Mesmo não Indo, o Tempo Vai, a que o crítico João Lopes não poupou encómios numa excelente recensão saída no mês passado no Diário de Notícias, na qual fala da extrema criatividade, da diversidade e da capacidade ficcional e cinematográfica deste livrinho num tempo em que filmes, séries e livros estão a ficar cada vez mais planos e menos imaginativos. Se estiver por perto, acompanhe-nos, vai valer a pena ouvir o professor Manuel Portela falar deste livro.

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04
Set24

A culpa é dos jornais?

Maria do Rosário Pedreira

Todos os dias alguém se queixa de que as pessoas lêem textos cada vez mais curtos. As redes sociais, quando alguém publica um texto um nadinha maior, só mostra as primeiras linhas, seguidas de um «Ver mais...» em que é suposto clicarmos para ler o resto. Se o início não for suficientemente apelativo, esqueçam, ninguém se preocupará em ler a parte escondida. Os jornais, que estão sempre a queixar-se de serem cada vez menos lidos, também têm culpa nesta matéria: promovem um título em letras garrafais nas redes, mas, na maioria das vezes, quando clicamos, só há meia dúzia de linhas legíveis, mais meia dúzia que aparece em sombra e de repente o resto é só para assinantes. E, mesmo sendo assinante, tive um dia destes de gramar uma quantidade estúpida de anúncios entre parágrafos para conseguir chegar ao fim do artigo, sendo que, enquanto o lia, era sistematicamente bombardeada com interrupções sobre coisas que não me interessam absolutamente nada, mas das quais só me posso livrar x segundos mais tarde, quando, aparece a palavra «Avançar». Quem é que consegue realmente ler um texto mais longo e todo seguido num jornal online? Digo-vos que está cada vez mais difícil e temo que num futuro próximo os jornais só tenham títulos e leads, de tal modo é difícil chegar ao osso dos artigos e crónicas sem ter de ver reclames a carros e supermercados, cartazes de festivais de música, campanhas das operadoras telefónicas e promoções de imobiliárias jurando encontrar a casa dos nossos sonhos. Queridos jornais: neste caso, o meu sonho era poder ler um texto de ponta a ponta sem ser chateada. Percebo que a publicidade é o que paga o jornal, mas... essa coisa da leitura permanentemente entrecortada também não vos tirará leitores e não formará outros da pior maneira?

03
Set24

Boas notícias

Maria do Rosário Pedreira

Não votei PSD, mas tiro o chapéu a este governo por ter interrompido a entrada de mais turmas no programa-piloto de manuais escolares digitais que em Setembro entra no seu quinto ano de experiência. Depois de em outros países se ter chegado à conclusão de que o impacto foi claramente negativo, sobretudo no primeiro ciclo do Básico; depois de centenas de estudos científicos terem provado que, quando os ecrãs substituem o papel, a capacidade de retenção de conhecimentos diminui (e terem por isso voltado atrás), aqui em Portugal havia a intenção de juntar mais vítimas ao programa no próximo ano lectivo, mas graças a Deus o Ministério da Educação achou que já chegava de desgraçados para poder fazer o balanço e tirar conclusões. Mesmo assim, o projecto prosseguirá mais um ano para cerca de 24.000 alunos (começou em 2020 com cerca de 1050, triplicou no ano seguinte e foi-se sempre multiplicando por turmas e alunos que, coitados, segundo os especialistas, já tinham sido bastante penalizados com a escola online dos confinamentos pandémicos). No Norte da Europa, já abandonaram os manuais escolares digitais, reconhecendo que o papel torna mais fácil localizar e memorizar e que escrever à mão ajuda a pensar e é extremamente importante para estudar e reter a matéria. Livrem-se desta coisa de uma vez por todas, aprendam com quem já experimentou.

02
Set24

O que ando a ler

Maria do Rosário Pedreira

De volta, depois de um mês cheio de contratempos de que agora não vale mesmo a pena falar, venho desejar que tenham passado umas excelentes férias, durante as quais tenham, claro, lido bons livros que queiram partilhar com os outros Extraordinários. A minha primeira leitura de Agosto, recomendada pela minha irmã, foi uma tradução de um livro coreano que, pelos vistos, vendeu como pãezinhos quentes no país de origem e está publicado em variadíssimas línguas. Chama-se Amêndoas, mas estas «amêndoas» não são de comer, referem-se a amígdalas minúsculas que causam uma doença rara que impede o jovem protagonista de exprimir o que sente e que o faz passar muitas vezes por um tipo completamente frio e insensível, quando não  acéfalo e bruto. Temido pelos colegas da escola, é um solitário que a mãe e a avó educam com todo o zelo e imaginação que conseguem, mas, como um mal não vem só, uma tragédia completamente inesperada vai fazer a sua vida dar uma grande volta. Com uma livraria pelo meio (as livrarias nos romances estão decididamente na moda), Amêndoas, de Won-Pyung Sohn, fala-nos do que é esta doença, a alexitimia, e como dois rapazes que sofreram perdas e azares terríveis conseguem unir-se para vencer as suas próprias angústias e limitações. Interessante, mesmo não sendo especialmente literário, este livro adapta a tradução brasileira. Bom regresso e obrigada por estarem desse lado.

31
Jul24

Boas férias

Maria do Rosário Pedreira

Hoje é o final do mês e as Horas Extraordinárias despedem-se até Setembro. Vem aí Agosto, esse mês meio mole em que a maioria dos leitores deste blogue tira férias, viaja, vai para longe de casa, altera as rotinas, e eu faço o mesmo: descanso, leio, desprecupo-me, fico sem obrigações. Como também o mundo editorial fica meio parado e pouco há que noticiar, não vale a pena desperdiçar tempo e trabalho com o anúncio de umas meras feiras de livro nas praias do País, que em geral só vendem velharias em saldo e mau estado e, com sorte, têm um ou outro autor por lá a autografar. Assim, aproveitarei, isso é mais do que certo, o tempo para ler (clássicos, modernos e livros fora da caixa, seja lá o que isso for) e já comprei alguns no sábado passado, mas ainda aceito uma ou outra sugestão se a quiserem partilhar. Espero que façam o mesmo e que se ilustrem e divirtam com as vossas leituras de Verão e, no regresso, possamos falar delas por aqui. Boas férias a todos e até breve.

30
Jul24

No Chile

Maria do Rosário Pedreira

Conheci, já adulta, pessoas da minha idade ou à roda disso cujos pais tinham andado em fuga, ou na clandestinidade, alguns dos quais tão-pouco usavam o verdadeiro nome. Alguns destes relatos acabaram por tornar-se quase risíveis quando, por exemplo, um controlador do Partido Comunista não sabia que ia controlar o seu próprio namorado... Mas outros eram impressionantes, sobretudo para uma menina que os pais acordaram às tantas da noite, avisando que iriam andar bastantes quilómetros a pé durante a noite e que havia uma coisa estritamente proibida: chorar. Creio que ela nunca mais chorou por nada que não merecesse... Subtracção, de Alia Trabuco Zerán, é um livro sobre três membros desta geração marcada pela clandestinidade no Chile durante o período de Pinochet; é sobre o medo, a prisão dos pais, o trauma e muito mais, sendo que uma das raparigas conseguiu asilo numa embaixada e a outra nunca mais se conseguiu separar da mãe, enquanto o rapaz perdeu o pai e conta (subtrai) mortos a toda a hora. Gostei bastante mais de Limpa, de que aqui já falei também, embora tenha sido este a chegar à final do Man Booker International Prize. Mas, claro, vale a pena ler.

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