Incompreensão inteligente
Lembro-me, na idade do armanço, de ir ao cinema Quarteto e ao Estúdio 444 ver filmes difíceis (sobretudo de línguas esquisitas) e, em muitos casos, não perceber patavina, mas achar mesmo assim que tinha valido a pena, pela beleza, pela imagem, por me fazer pensar. Mais tarde, um amigo que foi comigo ver Os Livros de Próspero, de Peter Greenaway, saiu a dizer que não tinha pescado nada, mas que as imagens eram tão belas que, naquele caso, buscar um sentido para o filme era completamente secundário. Um dia destes contaram-me uma história muito bonita que tem algo que ver com este tipo de «incompreensão». O escritor Vitorino Nemésio tinha, no início dos anos 1970, um programa de televisão chamado Se bem me lembro, no qual divagava sobre, basicamente, o que lhe apetecia (alguns dos leitores deste blogue devem lembrar-se, outros não terão nenhuma ideia de como era, mas vale a pena procurar no YouTube). Ora, parece que ia um dia Nemésio na rua e uma mulher se aproximou dele para lhe dizer que não perdia um só dos seus programas; e, no entanto, acrescentou: «Claro que não percebo nada, mas gosto muito.» Esta história foi-me contada por António Manuel Baptista, o físico que também tinha na época um programa televisivo chamado Física Moderna, e a quem aconteceu o mesmo num mercado alentejano: as peixeiras vieram todas cumprimentá-lo e disseram que saíam da praça a correr para irem assistir ao seu programa; não percebiam nada, mas isso não tinha importância, porque ouvi-lo era maravilhoso.