Viver, viver
Todos conhecemos pessoas que apetece abanar, lentas e permanentemente adormecidas; mas também já estivemos certamente com o oposto, gente que não se cala um segundo, que nos está sempre a interromper e a puxar pela roupa, que não pára de ter ideias e acaba por se tornar cansativa. A personagem do livro de que hoje falarei, Joana, se fosse uma pessoa de carne e osso das nossas relações, estou certa de que nos fascinaria terrivelmente tanto pela sua franqueza como pelo seu mistério, mas daria cabo de nós de alguma maneira, pelo menos como vai dando cabo de si e de todos ao longo da narrativa. Estou a falar da protagonista de Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector – um magistral romance da brasileira que nasceu na Ucrânia, mas sempre considerou o Brasil a sua pátria, escrito quando pouco passava dos vinte anos e de uma maturidade literária que merece o adjectivo deste blogue: extraordinária! A obra de Clarice é de uma vivacidade estonteante, mas esta Joana de coração selvagem é um bicho de sensações que não lhe fica atrás nem nos deixa descansar um só instante durante a leitura. Criança hiperactiva e hiper-pensante, adolescente rebelde, imaginativa e por vezes maquiavélica, adulta fascinante e ao mesmo tempo capaz do pior com os que dela se aproximam, Joana, se não pensar ou sentir um mísero segundo, é a criatura mais infeliz do universo – e o seu amor por Otávio, que poderia ser perfeito (e parecia mesmo perfeito), acaba por ser uma distracção que a afasta dessa pulsão de permanentemente ser ela própria, mesmo quando não sabe bem quem é. Com parágrafos que queríamos saber de cor, com repetições que emprestam um ritmo quase alucinante ao texto, com ideias belíssimas (e bastante vanguardistas se tivermos em conta que Lispector nasceu em 1920), este é um livro sobre a maravilha e o horror que pode ser viver, viver cada minuto da vida sem desperdiçar nada de nada. Altamente recomendável.