O sentido artístico
Para escrever um livro decente, sabemo-lo bem, não é preciso ser um artista. Há por aí muitos títulos no mercado – e não estou a falar só, ou principalmente, de estudos e ensaios – que, por muito «correctos» que se apresentem ao leitor, não podem considerar-se exactamente objectos artísticos, mas são obviamente legíveis; enquanto outros, nem que seja por ruptura ou descontinuidade, inauguram novos caminhos literários que se aparentam, de certa forma, com as vanguardas na música e na pintura. Pergunto-me, aliás, se os seus autores, ao contrário de todas as outras pessoas que escrevem e publicam, não terão uma espécie de sentido artístico inato que acabou por se desenvolver na escrita, mas que, se as circunstâncias e a formação tivessem sido outras, bem poderia ter «degenerado» em outras formas artísticas igualmente interessantes. Digo isto ao descobrir que vários autores que publiquei (e outros que gostaria de ter publicado), muito embora se tenham tornado conhecidos através dos seus livros, se dedicam (ou dedicaram) – ainda que por vezes «domesticamente» – às artes plásticas, ao vídeo e ao cinema, ao canto, a um instrumento musical, à representação teatral. E fico a pensar que, se calhar, a arte já estava toda dentro deles antes de escreverem a primeira linha e que, não saindo por esse poro, sairia por outro qualquer, destacando-os, de qualquer modo, entre os seus pares. Afonso Cruz, por exemplo, de que acabam de sair duas obras – Jesus Cristo Bebia Cerveja e Enciclopédia de História Universal: Recolha de Alexandria –, é um desses casos: fez filmes de animação, é músico e ilustrador. Mas há mais, na vida de Afonso Cruz e na de outros escritores-artistas.