Belvedere
Delícia suprema é ler um escritor que, muito além de saber inventar uma boa intriga e de lhe dar o mais surpreendente desfecho, conhece e usa palavras estranhas e deliciosas, que precisam mesmo de que alguém as resgate do desuso para não fugirem dos dicionários nos próximos tempos (nestes em que vivemos, há uma pobreza nos discursos e nos escritos em geral que é de bradar aos céus). Estou a saborear Mário de Carvalho em duas novelas – O Varandim e Ocaso em Carvangel –, ambas no mesmo volume recentemente publicado (um 2 em 1 muito apropriado à época de poupança e falta de desafogo financeiro que atravessamos). E que felicidade é poder entrar assim, pela mão de um escritor que muito sabe e, ainda por cima, gosta de partilhar, na casa do senhor Zoltan, com dois filhos impossíveis e um sogro moribundo que ocupa demasiado espaço (até porque grunhe bastante), na qual um varandim quase esquecido (para o qual dão janelas que se encontravam entaipadas) se torna de um momento para o outro mirador privilegiado de fidalgos e matronas, decididos a não perder pitada de um castigo que o grão-duque, embora levemente contrariado, acabou por concordar em infligir a meia dúzia de anarquistas. Pobre homem sensato e discreto este senhor Zoltan, que é contra a pena de morte e o espectáculo do sadismo e com quem a sorte vai ser – pois claro – injusta, como seria de esperar da ironia de Mário de Carvalho, mestre na dita e noutros equipamentos literários para gáudio dos seus leitores. Agora, lambo os beiços, saciada, e guardo para amanhã Ocaso em Carvangel, sobre um jovem notário numa terra onde todos aguardam um navio (sei lá se virá), porque duas novelas tão boas num só dia podem habituar-me mal, e quem já leu o volume inteiro diz que esta segunda é ainda melhor. Em tempos de escassez, é bom conservarmos pelo menos um kit de sobrevivência para o dia seguinte.