O livro do Lopes
Lopes foi, curiosamente, um dos apelidos usados por Ricardo Araújo Pereira para uma das suas figuras (o Lopes da Silva, lembram-se?), e é de novo um humorista, Luís Afonso (o autor de Bartoon), quem o vai buscar para nomear um "escritor pós-moderno" que, antes mesmo de publicar o livro que escreveu, chama um realizador para o adaptar ao cinema, esperando, afinal, que o filme acabe por fazer vender o livro e ambos lucrem com isso. O objecto é singular: chama-se O Comboio das Cinco e tem na sobrecapa um círculo recortado que deixa ver um relógio marcando as 12:10, o mesmo que, na capa, pertence à fotografia de uma estação ferroviária na qual um passageiro (o actor e diseur Pedro Lamares) aguarda, entediado, um comboio. Lá dentro está a história escrita pelo tal Lopes, propositadamente desconexa e desengraçada (o escritor pós-moderno não é especialmente dotado), entremeada com cartoons que reproduzem a conversa sobre a adaptação cinematográfica entre Lopes e o realizador, este bastante mais lúcido e naturalmente desconfiado em relação ao sucesso do empreendimento. O enredo envolve um casal desavindo, sempre às turras, que espera um comboio que talvez não venha (ele professor universitário, ela jornalista), mas o mais original é que Lopes assinala várias passagens do texto, identificando-as como de qualidade literária, de crítica social, de profundidade, de superioridade intelectual do narrador ou simplesmente como lugares-comuns. Não nego que prefiro o Luís Afonso das tiras diárias no jornal Público, mas vale a pena espreitar este livrinho que se lê em duas horas, nem que seja para reflectir no papel do escritor nos dias que correm.