A vida e a obra
Há muitos anos, ainda na Temas e Debates, tivemos a trabalhar connosco uma rapariga que estava a fazer o mestrado em Teoria da Literatura. Tendo-se posto a ler Borges, encontrava-se absolutamente fascinada com o génio argentino (como é, de resto, perfeitamente justificável). Porém, a sua admiração ficou bastante afectada quando lhe falámos da pessoa por detrás do escritor e das suas posições um tanto ou quanto discutíveis. Talvez não o devêssemos ter feito, porque, naquele caso, ferimos o deslumbramento genuíno pela literatura do mestre e, diga-se o que se disser, uma obra pode ser lida e apreciada independentemente da vida do seu autor. Vem isto a propósito do grande Céline – o escritor – que, ao que se sabe, também não era, enquanto gente, flor que se cheirasse. E, contudo, quão absurdamente admirável é a sua Viagem ao Fim da Noite, um grito de arte numa noite que não podia ser mais escura do que a da Primeira Guerra Mundial, na qual tudo é podre, e fede, e está cheio de vómitos, sangue e merda. Esqueçamo-nos da vida de Louis Ferdinand, o homem, e concentremo-nos em Bardamu, a personagem, um soldado borrado de medo, assistindo à destruição e pilhagem de aldeias, à morte de soldados e civis, à frieza das altas patentes militares numa guerra de chacina, metido depois na África colonizada, e na América da indústria automóvel, e atirado, no fim, para um subúrbio da pátria a trabalhar num manicómio. A narração visceral desta vida, em linguagem certamente revolucionária para a época (ainda hoje rasga o ouvido e incomoda), tem de ser lida sem se pensar nos actos de Céline, mesmo que ele tenha dado os mesmos passos do protagonista e saiba, por isso, do que está a falar. E, com Borges ou qualquer outro, idem! Leiam-se as obras ignorando as vidas.