Regresso a um outro eu
Às vezes, há livros que nos chamam de outro tempo; e uma tarde destas, porque me pediram que recordasse um título que gostaria de voltar a ver circulando pelas nossas livrarias, comecei a olhar as estantes lá de casa e dei com um desses títulos que nos transportam imediatamente ao passado como máquinas do tempo: um romance de que gostara tanto quando o descobrira que nunca me atrevera a relê-lo, com medo, afinal, de que a magia se perdesse. Mas, enfim, agora ele parecia chamar-me da prateleira e era conveniente dar-lhe ouvidos. Li o texto das badanas e, tratando-se de um Prémio Planeta (coisa de que já não tinha ideia, confesso), se calhar a decepção nem seria assim tão grande – se chegasse a haver decepção, claro. Por outro lado, voltar a ele era um exercício engraçado de auto-conhecimento, de busca de um eu antigo e quiçá esbatido ou enterrado que me apetecia (re)conhecer. Bem, o romance é Resta a Noite, de Solelad Puértolas, e tinha-me mesmo enchido as medidas há uns vinte anos, até porque havia em mim qualquer coisa da protagonista, além uma viagem a um país exótico e muita solidão antes e depois dela. Não estava muito enganada quanto a isso, mas, excepto a solidão, essas memórias eram uma pequeníssima parte de uma intriga que, afinal, metia espiões ingleses e alemães, uma família aristocrata num palacete, um rapaz frágil e bastardo fugido para Honolulu, uma irmã farta do seu casamento e muitos outros factos adormecidos. E a tradução, ui, melhor nem falar, cheia de distracções em que, na altura, não devo ter reparado, até porque sabia muito menos castelhano do que hoje. O romance é ainda interessante, não me interpretem mal, mas o que me desiludiu a sério foi pensar que achei uma obra-prima um livro que agora consideraria apenas mediano, mesmo que galardoado com o Prémio Planeta. Reler tem estes perigos...