Letra morta
A matéria-prima da literatura é a língua – e houve sempre quem se perguntasse como é possível, a partir de um número de vocábulos aparentemente limitado (é sempre possível criar neologismos, mas os dicionários não crescem assim tanto de um século para o outro), construir um texto com frases e expressões que, durante a leitura, parecem tantas vezes combinações nunca antes usadas por ninguém. É frequente surpreendermo-nos com a forma como determinado escritor inventa uma linguagem própria reinventando a língua, ao produzir, por exemplo, um efeito inesperado com duas palavras que não costumam aparecer juntas ou subverter uma regra gramatical para virar tudo do avesso, mas a seu favor. Há também a ideia (e em pintura, com a vulgarização das instalações, ela foi muito difundida) de que tudo está já criado e não se consegue ir mais longe em termos inventivos. O fim da literatura foi, de resto, anunciado várias vezes ao longo do século passado; no ano em que eu nasci, por exemplo, Maurice Blanchot defendeu que, ao tornar-se reflexão sobre si mesma, a literatura caminhava infalivelmente para a morte. Nesse mesmo século XX, porém, escreveram-se muitos romances que eram sobre a escrita de romances e também sobre escritores mortos e vivos e personagens de outras obras e, consequentemente, da obra que se estava a escrever. Alguns eram pura literatura e os seus autores até ganharam o Nobel... E cá estou eu, 53 anos após o vaticínio de Blanchot, todos os dias a ler literatura e todos os dias à procura dela. Será que vai chegar um tempo em que, por mais que passe páginas e páginas, nada do que leia caiba nessa palavra a que hoje chamo literatura?