Narrativa em suspenso
Há muitos anos, ainda na Temas e Debates, publiquei um autor das Bermudas, cujo romance – Se Ninguém Falar das Coisas Maravilhosas – fora finalista do Booker e arrebatara dois prémios importantes. O escritor chamava-se Jon McGregor e construía uma narrativa em permanente suspensão que, desde as primeiras páginas, nos avisava de uma ocorrência que só no desfecho se esclarecia. É assim também o romance que tenho agora em mãos – O Dia de Amanhã, de Ignacio Martínez de Pisón (de quem já li outras obras, entre as quais Maria Bonita, uma pequena maravilha). Neste, falam muitas vozes e todas elas sobre a mesma personagem controversa – Justo Gil, um pobretanas ambicioso muito ligado à mãe, que sobe na vida de formas supostamente ínvias e trama, claro, muita gente. E digo «supostamente» porque são suposições o que os relatos sempre nos oferecem, pistas, avisos, venham eles do tipo que deu a mão a Justo quando ele chegou a Barcelona com uma mão à frente e outra atrás, da rapariga que foi sua sócia num pequeno negócio e ele deixou cheia de dívidas ou mesmo da colega de trabalho que tem um fraquinho inconfessado por ele mas os olhos bem abertos às suas manigâncias. Brilhante retrato de uma figura através de olhares alheios, esta é também uma história da Espanha nos anos 1960 e 1970, mais atraente porque, entre Franco e Salazar, as semelhanças são, apesar de tudo, bastantes e não conseguiremos deixar de nos rever em muita coisa. A tradução – muito boa – é de Maria Manuel Viana.