Ler sem roupa
Há um quadro de Edward Hopper de que gosto muito (para falar verdade, gosto de quase todos, mas este interessa-se particularmente). Representa uma rapariga que lê em trajes menores sentada na cama feita de lavado de um quarto pequeno, no qual há ainda bagagem por abrir, um sapato derrubado e um chapéu pousado à pressa sobre a cómoda. Chama-se Hotel Room e sempre vi nele a urgência de, chegando a um lugar estranho, alguém terminar um capítulo de um livro que começou no avião (ou reler uma das epígrafes para a usar numa conferência que fará nessa mesma tarde) antes mesmo de desfazer as malas. A água estará a correr para a banheira nesse momento, preparando um banho de sais relaxante. Provavelmente, não é nada disso, mas a pintura de Hopper leva-me frequentemente a devaneios ficcionais, até porque a realidade anda bastante desagradável e há, aliás, coisas tontas a acontecer todos os dias. Uma delas (para não falar só do nosso país) tem que ver com a Amazon que, na altura em que se iniciou, era apenas uma livraria, mas, de repente, passou a loja virtual de basicamente tudo o que não seja perecível (e a ver vamos). Um dia destes, porque precisava de uma informação sobre uma edição específica de um livro, fui ao site americano e só me saltavam à vista vestidos e acessórios, não aparecendo um único livro na página de abertura. Talvez se pense que quem compra livros compra também roupa (e assinada por estilistas norte-americanos algo reputados) e que isso levará alguns leitores a, em vez de comprarem um romance, vestirem-se on line. Porém, no quadro de Hopper, está especialmente concentrada na leitura uma mulher quase nua. Para quê a roupa?