Criação e criatura
Antes que me esqueça – até porque devemos sentir-nos gratos pelo seu bom trabalho –, a tradução do livro que hoje me ocupa é de Francisco Agarez (ou, melhor, do extraordinário Francisco Agarez). A obra, absolutamente genial, é assinada por Philip Roth, o decano dos romancistas norte-americanos. Chama-se Engano e tem letras gordas e páginas arejadas, pelo que parece de leitura relativamente rápida; mas não nos iludamos: a sua aparente acessibilidade tem os minutos contados, tratando-se de um livro bastante complexo que só podia ter sido escrito por um craque. Falar dele é perigoso, porque tudo o que se diga ajuda ou desajuda o leitor (e ele tem mesmo de partir sozinho nesta aventura). Por isso, referirei apenas que é um romance sobre a criação literária (não por acaso, uma das principais personagens é um escritor norte-americano chamado Philip) e as criaturas (ficcionais, bem entendido, embora não haja nada tão real como elas – ou talvez eu me ou vos engane dizendo isto, mas faz parte do jogo do autor). Dois amantes (um homem e uma mulher, ela inglesa) encontram-se num estúdio em Londres onde não há sequer espaço para uma cama – razão talvez para que o orgasmo seja provocado não pelo sexo, mas pelas conversas, que são inteligentes, algo angustiantes, desarmantes e, como não podia deixar de ser em Roth, também sobre os judeus e o preconceito que existe em relação a eles. Este é um daqueles livros que se podem ler e reler toda a vida e que têm essa rara virtude de constantemente nos enganar, como os dois protagonistas enganam os respectivos cônjuges (ou talvez não). Só lendo. E deve ser lido.