A música da fome
Prometi a mim mesma ler, durante as férias, Tudo O Que Eu Tenho Trago Comigo, de Herta Müller. Ninguém ganha o Nobel da Literatura por acaso e sentia-me verdadeiramente ignorante por nunca ter lido nada desta vencedora nem ter ouvido falar dela até à atribuição do prémio. Mas Portugal tem destas coisas e, embora sejamos bastante proficientes em termos de línguas estrangeiras, a verdade é que parecemos capazes de traduzir apenas do inglês, do castelhano e ainda (mas cada vez menos) do francês. A literatura de língua alemã contemporânea é, pois, uma perfeita desconhecida para nós – e isso justifica, embora apenas em parte (porque havia, afinal, alguma coisa traduzida), o meu completo desconhecimento desta senhora. Perdão: desta Senhora, com maiúscula, porque basta ler este romance para perceber que estamos diante de uma escritora notável. Ela conta, de uma forma belíssima e horrível ao mesmo tempo (se tem estômago de princesa, é melhor nem se atrever a esta maravilha), a permanência de um jovem durante cinco anos num campo de trabalho na União Soviética. Um jovem de dezassete anos que acaba de descobrir a sua homossexualidade e parte para um castigo que não merece, achando até que lhe fará bem distanciar-se da família e do seu pequeno mundo. Um jovem alemão que tem o azar de morar numa Roménia que capitulou perante a Rússia e declarou intempestivamente guerra à Alemanha e que é levado, como milhares de conterrâneos, a pagar uma factura que não deve. Tudo o que tem leva consigo, é certo, mas o que encontra nesses cinco anos é apenas fome, uma fome que nunca passa e se torna o tema recorrente de uma narrativa poética avassaladora. O livro podia, inclusivamente, intitular-se (como o romance do Nobel de 2008, Le Clézio) A Música da Fome – que também é muito belo, mas chega mais tarde ao corpo e ao coração. E, baseado no testemunho de um sobrevivente que a autora acompanhou ao longo de vários anos, fornece uma informação preciosa que muitos de nós desconhecemos e que é preciso sabermos para que não se repita.