O que ando a ler
Para além de andar a ler, também ando a tentar livrar-me de umas tendinites estuporadas com uma fisioterapia que tem um lado doloroso (a massagem, o exercício, as ondas de choque) e um lado entediante: o ficar ligada a umas maquinetas às meias horas, sentada numa cadeira sem fazer nada. Percebi que, mesmo que apenas com uma mão, conseguia ir passando páginas e ler um livro não muito longo em duas sessões. O último que foi comigo chama-se Tudo É e não É e assina-o Manuel Alegre, com quem o protagonista – o escritor António Valadares – tem algumas afinidades: desde logo, o facto de escrever, mas também alguma da matéria com que sonha. O sonho é, de resto, o grande tema deste romance, que nos traz um Valadares queixando-se a um amigo psiquiatra de ter sonhos recorrentes e algo obsessivos, sonhos que terminam quase sempre com o recepcionista de um hotel a telefonar-lhe para o quarto, dizendo-lhe que se despache, pois o autocarro vai partir (para onde, não sabemos – nem ele); mas o escritor perdeu o casaco, tem a mala por fazer e invariavelmente chega tarde demais. Do pedido do psiquiatra para que passe esses sonhos a escrito, nasce uma narrativa deliciosa, crítica e bem-humorada, na qual às tantas o sonho é matéria de ficção (ou já só ficção) e parece sonhar-se o que se deseja, e não o que o sonho quer que se sonhe, sobretudo quando o aparecimento em sonhos de uma mulher misteriosa é quiçá o reflexo da mulher que Valadares deixou um dia à sua espera quando teve de fugir para não ser preso. Com alguns pontos de contacto com Engano, de Philip Roth, de que falei aqui no blogue no mês passado, este romance muito actual vale bem a pena (e faz, obviamente, esquecer o tédio de qualquer fisioterapia).