Matéria-prima
Ouvi uma vez um crítico dizer que a ficção espanhola era muito mais rica do que a portuguesa porque os portugueses em geral tinham vidas demasiado pacatas – casa-trabalho, trabalho-casa –, conversavam pouco, estavam pouco com outras pessoas, ouviam poucas histórias. Não sei se é verdade, mas é lógico que uma vida cheia (e se for de problemas, ainda melhor) pode oferecer matéria-prima inestimável para a construção de ficções várias. Estive recentemente no Instituto Cervantes para assistir a um clube de leitura sobre um livro da chilena Andrea Jeftanovic, descendente de jugoslavos (quando os avós emigraram ainda havia e haveria Jugoslávia), e, ao ouvi-la, convenci-me de que a sua família era um programa completo de ficção. Em primeiro lugar, ela contou que havia judeus, católicos e ortodoxos convivendo na mesma casa, razão pela qual tão depressa festejavam o Natal cristão como a Páscoa judaica – e isto sem nenhuns problemas. Depois, quando houve a guerra dos Balcãs, aqueles jugoslavos todos que estavam há décadas no Chile passaram, de repente, a ser uns sérvios e outros croatas e, apesar da distância a que se encontravam do cenário de guerra, zangaram-se uns com os outros e alguns, inclusivamente, deixaram de se falar. Por fim, ela, que nascera já em Santiago mas de cabelos louros e olhos azuis, era sempre vista como uma espécie de estrangeira mas também não sentia pertencer a esse país europeu desmembrado aonde nunca tinha estado. Há vidas que, efectivamente, parecem histórias…