O livro dos mortos
A extensa obra de um autor tem sempre momentos menores, mas um bom número de livros publicados ajuda qualquer escritor a consolidar uma carreira. Estranho é que alguém que escreveu quase nada sobreviva ao tempo e sirva de modelo a tantos outros. Este foi, pode dizer-se, o caso de Juan Rulfo, autor mexicano de umas meras trezentas páginas que comoveram, influenciaram e deslumbraram os seus confrades, de Borges a García Márquez, de Onetti a Neruda. Diz-se até que foi ele o pai do «realismo mágico» com o seu magnífico Pedro Páramo – um desses romances em que, por atropelos constantes da vida, só agora pude pousar os olhos (e deixá-los lá). Mas nunca é tarde para milagres. O princípio do livro é tão intenso que – tenho a certeza – nunca o esquecerei; e empurra-nos literalmente para a leitura de centena e meia de páginas tão desconcertantes que uma vez por outra até voltei atrás, convencida de que talvez tivesse estado distraída por segundos. Porém, o magnetismo depressa me devolveu à obra, onde os mortos ratam na vida alheia, são tão bisbilhoteiros e maledicentes como eram em vida e quase nunca perdoam a Pedro Páramo – o homem de quem o narrador vai à procura depois de saber que é o seu próprio pai. Um livro sem «senãos», excepto, talvez, o texto da badana chamar sul-americano a alguém que nasceu no México…