Quando, por vezes, recuso originais e aponto os erros que neles encontrei (de inverosimilhança, estrutura, previsibilidade, incongruência), falo também, se for o caso, de uma ortografia que deixa muito a desejar e até de uma pontuação deficiente. Alguns autores já me têm respondido que isso da pontuação é irrelevante, pois corrige-se facilmente, e que sou um bocado exagerada ao mencioná-lo. É óbvio que nunca recusaria um bom livro por ter simplesmente as vírgulas mal postas, não me interpretem mal, mas acho que saber pontuar faz parte do saber escrever – e uma vírgula no sítio errado pode inclusivamente mudar todo o sentido de uma frase. Que o diga o presidente da Câmara de Leiria, que acaba de ser brindado com uma queixa-crime num caso que se prende com a recolha de lixo no concelho. É que, segundo leio na imprensa, a uma deliberação da câmara foi, no contrato que se lhe seguiu, acrescentada uma vírgula – só uma – que alterou tudo e obrigou o município a prolongar a concessão da recolha do lixo a uma determinada empresa por mais cinco anos, o que implica o dispêndio da módica quantia de… quinze milhões de euros! E ainda acham que a pontuação não tem importância?
Ou o Valter Hugo Mãe. Ai a mania de não usar maiúsculas a seguir ao final de uma frase. ;-) Afinal, o que é mais importante num escritor? O génio? Ou o estilo?
Eu acho que importante é a experiência de quem lê, o choquezinho no coração, os minutos contados até se voltar ao livro, o olhar demorado sobre a capa e o suspiro dedicado à última página. Se aprendemos? Melhor. Se tem estilo? Melhor. Se a virgula flutua com correcção? Melhor.
A verdade é que "inverosimilhança, estrutura, previsibilidade, incongruência" só servem de critério a escritores vivos, a alma e a paixão depressa se encarregam de os atirar pela complacente janela do prazer de quem lê.
Proust matou uma personagem que páginas mais tarde dança alegremente num bonito baile. Alguém conhece o "erro de Proust"? Pois não, de tão deliciados que nos encontramos com a recordação da madalena da tia Leonie.
A Agustina fá-lo constantemente: personagens que haviam morrido aparecem como se nada tivesse acontecido, as suas histórias de vida mudam sem aviso, passam de solteiras a casadas sem qualquer explicação. E a Agustina não está morta. Diz ela que tem toda a lógica que assim seja, que o livro se engane tanto quanto nos enganamos nós, que troque tantos dados quantos nós trocámos.