Dar graxa ao amor
Juan Marsé é sempre garantia de horas extraordinárias – e O Amante Bilingue não foge à regra, embora assente numa história que custa a crer tivesse, na realidade, os efeitos desencadeados pela graça ficcionista do grande prosador espanhol (que já mereceu o Cervantes, o Quixote das Letras Espanholas e o Juan Rulfo, entre muitos prémios). E, se falo em graça, não posso também deixar de falar em graxa, porque é de verdadeiros e falsos engraxadores que se faz esta trama fantasiosa. O enredo envolve um pobre diabo, metido por engano numa greve de fome e transformado provisoriamente em herói por uma mulher míope da classe alta que acaba por se casar com ele. Mas a miopia não a impede de olhar para outros homens (vê bem ao perto), especialmente os morenos do Sul, e de trair o nosso protagonista com um engraxador que, depois de apanhado em flagrante com ela, se surpreende a ouvir desabafos do marido enganado enquanto lhe engraxa os sapatos todos lá de casa. Quinze anos mais tarde, ainda não passou a dor de corno a Marés (assim se chama o pinga-amor) e, numa noite de Carnaval, ele tem a ideia peregrina de se fantasiar de engraxador e assim tentar reconquistar a mulher da sua vida. Entre um caderno de memórias na primeira pessoa e um relato de um narrador externo na terceira, esta história deliciosa prova que até ao amor convém dar alguma graxa...