Byron e os cães mortos
O senhor Coetzee não ganhou seguramente o Nobel – nem muitos outros prémios literários – por acaso. É um autor sul-africano notável, que entre outros romances escreveu Desgraça, no qual um académico branco, mulherengo e apreciador de Byron assedia Melanie, uma das suas alunas mulatas; a rapariga apresenta queixa (movida pelo namorado e pelos pais, mais do que por vontade própria) e David, não tentando defender-se sequer de um acto que seria capaz de repetir (respondeu a um impulso, eis como define a situação), acaba por ser expulso da universidade. Sem nada que fazer, resolve visitar Lucy no interior do país – a filha neo-hippie que deixou a Cidade do Cabo para se tornar proprietária de uma pequena parcela de terreno e vive de vender flores no mercado e guardar cães nas férias dos donos (mas muitas vezes é apenas de abandono que se trata e os animais ficam com ela). O reencontro entre pai e filha é franco e agradável e, embora os seus hábitos sejam diametralmente opostos e o professor gostasse mais de uma Lucy menos «campónia», a verdade é que acaba por se adaptar àquele ermo, ocupando os dias com trabalho braçal, o libreto de uma ópera sobre Byron e o apoio a uma clínica veterinária onde aprende a consolar os cães que vão ser abatidos (na maioria dos casos, porque os donos são pobres e não os podem manter). Porém, quando a sua vida estava a ganhar um novo rumo (ele até tinha ido para a cama com uma mulher da sua idade – e feia), um ataque violento à casa vira tudo do avesso e tem consequências devastadoras para Lucy e o seu futuro naquele lugar. Mas ela recusa-se a sair dali, doa a quem doer. Este é um livro sobre a África do Sul pós-apartheid, sobre as atrocidades e as feridas abertas de uma sociedade eminentemente racista. Duro, seco e desassombrado, fala dos que parecem conseguir adaptar-se ao inadaptável – como os cães cheiram a morte, mas se oferecem ao carrasco para uma última festinha. A não perder.