Quando aqui falei há uns dias dos livreiros informados que praticamente desapareceram, recebi muitos comentários. Quero então contar-vos uma história engraçada de um livreiro pouco informado do tempo em que eu era adolescente (só para não culpar o presente da falta de informação, porque as coisas não necessariamente boas são, afinal, de todos os tempos). No meu 7.º ano (hoje 11.º, julgo eu), a minha professora de Filosofia mandou-nos ler As Mãos Sujas, de Sartre. E, quando entrei na livraria e perguntei ao senhor que me atendeu se tinha As Mãos Sujas, a sua reacção foi simplesmente olhar, horrorizado, para as próprias mãos…
Quando Maddie desapareceu e, durante meses, não se falava de outra coisa em Portugal, estranhei que não tivesse renascido nas livrarias essa maravilha intitulada A Criança no Tempo, de Ian McEwan. Li tudo do autor (menos Solar, mas já o tenho) e, se me puser a pensar, continuo a dizer-me que não há outro livro do autor tão bom como esse. É certo que poderá ser um texto um pouco datado – e que quem não tenha vivido a era Thatcher, dificilmente atingirá na sua plenitude; é certo também que, apesar da tradução belíssima de Fernanda Pinto Rodrigues, o livro em português fica aquém do original (até porque Prime Minister não tem sexo – e em Portugal tem, e é masculino). Mas a história do homem que vai ao supermercado com a filha de três anos e a perde para sempre num instante de distracção é só o ponto de partida para um dos mais profundos romances que li sobre desespero, culpa, educação, tragédia, remissão, amor e política. No tempo em que o livro foi publicado, os computadores ainda estavam na pré-história e não apresentavam retratos aproximados de crianças desaparecidas ao longo dos anos; mas este pai de A Criança no Tempo nunca desiste de procurar a filha nos rostos de todas as crianças que têm a idade que ela vai tendo na sua ausência. E, simultaneamente (que ironia!), a sua ocupação é colaborar na realização de um manual estatal para a educação das crianças, que é um logro no qual um pai dilacerado não merecia ter caído. Sublime em todos os sentidos.
Casei-me com um editor (muitos sabê-lo-ão) mais velho do que eu (mas muito mais jovem do que eu). Na nossa casa há, como podem calcular, estantes cheias de livros: as dele, as minhas e a nossa (mais dele do que minha porque eu, dada a falta de espaço, já só compro livros que tenho a certeza de vir a ler). No fim-de-semana passado, durante um telefonema da minha mãe demasiado longo a que já não conseguia prestar atenção, reparei que os livros das nossas estantes contam muita coisa sobre nós, incluindo a diferença de idades (que não nos separa). A estante do Manel tem imensos livros franceses (é a geração que aprendeu com a cultura francesa), a minha tem inegavelmente mais autores anglo-saxónicos (muitos são poetas). A do Manel tem todos os clássicos portugueses (e lidos), a minha é de uma pobreza confrangedora nesse sentido (vê-se bem que já havia televisão quando eu era adolescente, com séries à hora de almoço e tudo). A do Manel tem um sem-número de ensaios políticos (muitos pró-soviéticos e hoje datados e ilegíveis) que denunciam o seu passado interventor, na minha alinha-se uma série de títulos de divulgação científica (género que teve o seu apogeu nos anos 90 a par da transmissão de séries televisivas como Cosmos ou O Homem Verde e que também revelam os meus primeiros passos na edição, pois foi na Gradiva que comecei). A do Manel tem prateleiras só de teatro, a minha está cheia de guias turísticos dos tempos em que eu andava por aí a coleccionar países desenfreadamente. Temos, claro, livros repetidos (esses são as nossas afinidades). De vez em quando, dizemos um ao outro que todos os livros que existem nesta casa (e o resto) são dos dois; mas alguém um bocadinho mais culto, se olhar as estantes com atenção, saberá imediatamente de quem é o quê.
O Guardianpublicou há tempos, em dois números separados, um conjunto de regras elaboradas por escritores sobre o que deve ou não fazer quem queira ser um deles (agradeço ao Francisco Agarez ter-me enviado o link). Lembro-me de que uma dessas regras inibe a criação de listas de personagens. Percebo a ideia (para quê, realmente, criar mais personagens do que aquelas que um leitor é capaz de reter?), mas li um romance há muito, aconselhada por um amigo, que incluía uma longa lista de figuras e não deixava de ser admirável. Falo de Casa de Campo, de José Donoso, que tenho numa edição da Difel, mas foi reeditado recentemente pela Cavalo de Ferro. Quase todas as personagens nesse livro são primos ou irmãos (os adultos desaparecem quase no princípio, caindo numa armadilha que os próprios filhos e sobrinhos lhes lançam) – crianças e jovens que criam na tal casa de campo algo muito parecido com um território em conflito. A minha personagem favorita (e nem preciso de ir consultar a lista) é Arabela, a intelectual da família, que vive sempre com o nariz metido nos livros e raramente sai da biblioteca. É óbvio que é a ela que todos recorrem quando precisam de uma mãozinha. Não sabem, claro, que essa biblioteca não é bem o que pensavam. Para saber como é, leia o livro – a surpresa vale bem o «esforço» e o dinheiro que der por ele.
Numa livraria do meu bairro, em vésperas de início de mais um ano lectivo, um adolescente perguntou ao «livreiro» se tinha, por acaso, um livro de Filosofia chamado Siddharta. Eu sorri para logo me arrepender: o livreiro disse-lhe que não havia nenhum livro de Filosofia com aquele nome e que o rapaz devia ter copiado mal a lista de livros escolares a comprar… Bem sei que hoje também há muitos leitores que nem sabem o autor do livro que andam a ler, mas, se os professores de Filosofia da Escola Secundária aconselham a leitura deste livrinho de Hermann Hesse, não deveriam sabê-lo os que vendem livros, até para se apetrecharem e poderem facturar? Ajudei o aluno, mas o livro não estava disponível. Em todo o caso, esta história serve-me para duas coisas: a primeira para confessar que, apesar da tradução estranha (onde se encontram palavras como «amorável» e outras esquisitices), prefiro claramente Narciso e Goldmundo a Siddharta – um livro que também é sobre a amizade (e que serviria aos professores de Filosofia para ensinar muita coisa, garanto); a segunda é que tenho saudades dos livreiros cultos. Agora existem poucos assim – e dizem-me que um deles está na Pó dos Livros (parece que é especialista em Camilo, ainda por cima). Vão lá e aproveitem para conversar – e, se nunca leram Narciso e Goldmundo, aproveitem também para o ler.
Prometi falar de outro livro com gémeos de óvulos diferentes e cumpro a promessa. No ano passado, a melhor surpresa em forma de livro que me veio parar às mãos foi, sem dúvida, A Solidão dos Números Primos, do jovem italiano Paolo Giordiano. É tão raro encontrar um talento tão óbvio num escritor de apenas 26 anos que achei que me tinha enganado na idade do autor. Mas não: o rapaz, para além de escritor, é físico e está a concluir o doutoramento… Quem faz um doutoramento tão novo (mesmo que as coisas da educação tenham sofrido enormes mudanças e agora quase só seja preciso pagar, ir a umas entrevistas e fazer uma tese curta), tem de ser uma pessoa muito especial. E é, senão não teria escrito este livro magnífico, que só podia ser de um cientista (se lerem, perceberão porquê), onde duas personagens vão crescendo até se encontrarem (ou não) diante dos nossos olhos deslumbrados. Uma delas é um gémeo perdido da sua metade, a outra não.
Depois de iniciar este blogue, a Cecília Andrade – minha colega na Leya e editora da Dom Quixote – deu-me uma excelente notícia: a de que A Tia Júlia e o Escrevedor, de Mario Vargas Llosa, de que aqui falei com entusiasmo, vai ser reeditado ainda este ano. Para os que queiram lê-lo e tenham paciência para esperar, fica a informação. E, a propósito de reedições, há mais uma notícia boa: um dia destes vi na sala da Dulce Reis, que é quem trata na Leya da produção dos livros da BIS (a colecção de bolso), as provas de outro livro há muito desaparecido que vai finalmente estar de novo disponível, mesmo que apenas em pequeno formato. Estou a falar de O Deus das Pequenas Coisas, um romance genial de Arundhati Roy que ganhou o Booker Prize nos anos 90 e é dos livros mais belos e inteligentes que li. Uma história de amor com o problema das castas na Índia como pano de fundo e dois gémeos biovulares inesquecíveis (não digo «biovulares» por acaso, o romance usa o adjectivo sempre que fala deles). Com gémeos de dois óvulos, há também outro livro que destacaria, mas fica para amanhã.
Sim, custa-me um bocado dizer isto, mas tenho esta fraqueza imperdoável: adoro as personagens más dos bons romances. Não, não estou a falar em personagens que o autor tenha deixado por incompetência a duas dimensões, estou mesmo a falar de maldade pura e dura. A maldade de uma personagem, sobretudo quando é subtil e inteligente – que querem? –, apaixona-me como leitora; e admiro os autores que conseguem pôr-nos logo do lado dos maus, porque os desenham tão geniais que não somos capazes de resistir-lhes. Em Uma Barragem contra o Pacífico, de Marguerite Duras – livro que toda a gente devia ler a par de O Amante (os dois, aliás, confundem-se na minha memória) –, a mãe da protagonista é uma má admirável (e a protagonista também não é muito melhor). Inesquecível a cena em que a mãe atrai um amante para a filha – porque precisam desesperadamente do seu dinheiro – mas, no dia em que ele lhes traz um presente enorme (na verdade, um gramofone), este fica durante toda a visita embrulhado e pousado numa mesa, sem que nenhuma delas pergunte sequer o que é.
Por razões que não interessa aqui explicar, veio parar-me às mãos um pequeno livro de bolso dos anos 50, de um senhor chamado Paul Morand que, apesar de ter pertencido à Académie Française, é praticamente desconhecido em Portugal. Desse livro não falarei, porque mal iniciei a leitura; mas no prefácio encontrei algumas pérolas em defesa da novela (contra o romance?), que era, pelos vistos, o género em que este autor pontificava. Aí vão algumas:
«Ao organismo invadido pela celulite [o romance], prefiro o corpo magro e seco da novela.»
«Um romance, mesmo medíocre, pode conter boas páginas; uma novela não; como na arte do fresco, por menor que seja, um erro é sempre irrecuperável.»
«A novela é como uma noite num motel americano; recebe-se das mãos do porteiro as chaves do bungalow e depois é tudo self-service e cash and carry. O leitor recebe o tempo e o espaço na mesma embalagem.»
«Num romance a personagem instala-se, deixa de ser o inquilino para se tornar o senhorio. Numa novela, não, a personagem está sempre acampada. A novela é um móvel, o romance um imóvel.»
Se gosta de novelas (ou romances mais curtos), não deixe de ler um maravilhoso livro de Olivier Rolin, Porto Sudão, que a ASA publicou há muitos anos. Procure-o, se for preciso, num alfarrabista.
Chama-se A Vida Verdadeira e vai estar nos escaparates a partir do dia 12 de Junho com a chancela das Publicações Dom Quixote. É um romance de Vasco Luís Curado e, se não fosse importante por outras razões, para mim sê-lo-ia desde logo por se tratar do primeiro livro que edito na Leya. Mas há outras razões pelas quais vale a pena falar dele (e, claro, lê-lo). Em primeiro lugar, o autor tem uma maturidade literária rara nos dias que correm: é profundo sem nunca se tornar aborrecido, culto sem ser pretensioso, imaginativo sem delírios, inteligente sem complicações. Em segundo lugar, as suas personagens são finíssimas – nunca se tornam arquétipos e, porém, ficamos com a sensação de que as conhecemos de qualquer lado. Por fim, somos tocados pela tragédia sem sairmos magoados e pela comédia sem termos de nos rir à gargalhada. Já o li várias vezes e gosto sempre mais.