Este blogue vai de férias por uns tempos, porque eu vou de férias amanhã e, enfim, se levar comigo o blogue, não descanso o que tiver de descansar. Admito, porém, que não vou provocar grandes saudades aos leitores de Horas Extraordinárias, uma vez que a maior parte deles irão também de férias este mês – e, se ficarem agarrados à leitura de blogues, não aproveitarão para fazer outras leituras mais interessantes. Antes deste interregno, porém, quero dizer que nas férias se pode ler de tudo, e não, como às vezes nos querem fazer crer, apenas coisas levezinhas com praias como pano de fundo e histórias contentinhas como argumento. Eu, desde logo, vou com um calhamaço atrás: chama-se O Viajante do Século e foi escrito pelo argentino Andrés Neumann. Li as primeiras cinquenta páginas para me certificar de que queria mesmo levá-lo comigo e estou quase certa de que não me arrependerei. Com esse, levo também o romance de Herta Müller, Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo, recentemente publicado pela Dom Quixote, de que ouvi maravilhas a pessoas em quem confio. E, como não podia deixar de ser, um original de um jovem autor (que me pareceu bastante promissor quando o «apalpei» – ao original, entenda-se). A meio do mês, virei a Lisboa passar uma semana de trabalho e, nessa altura, conto recolher outras leituras e partilhá-las aqui. Boas férias!
O Manel tem um e-book e, mesmo sabendo que ele não resiste a uma novidade tecnológica, na altura em que o comprou aplaudi bastante a decisão. Tendo em conta a quantidade de PDF que os editores recebem hoje do estrangeiro, substituindo livros tantas vezes grossíssimos cujo envio por correio seria manifestamente dispendioso (e o que se estraga em papel, que as mais das vezes acaba no lixo), achei que era mesmo melhor haver um e-book cá em casa, que nos permitisse ter lá dentro todos os livros que precisássemos de levar para qualquer lado sem danos para as nossas colunas vertebrais. Mas a verdade é que, para mim, o instrumento não serve. Se se tratar de um livro que tenho de apreciar para publicação, gosto de lhe escrever em cima, de corrigir os erros, de fazer comentários à margem, de colocar setas, de circular e ligar duas palavras repetidas no mesmo parágrafo, de remeter para outra página que me parece contradizer o que acabo de ler; além disso, volto sistematicamente atrás para comprovar que tenho razão ou concluir que, afinal, estou enganada; e, quando me lembro de uma passagem anterior, se tiver um exemplar em papel, sei sempre se ela está em página ímpar ou par, na primeira ou na segunda metade da página (todos os que lêem o sabem, creio eu). Mas, pior do isto, é não poder ter todas as páginas visíveis debaixo dos olhos. Num e-book, é como se a página fosse apenas uma, uma única página que leva uma eternidade a passar. Sem a minha caneta vermelha, a minha memória visual e os meus hábitos, levaria mais do dobro do tempo com cada livro. E-book? Para as crianças levarem para a escola com todos os livros escolares lá dentro, sim. Para mim: não, obrigada.
Os escritores mais novos sabem, regra geral, quem são os escritores mais velhos. Amem-nos ou detestem-nos, já viram as suas caras em fotografias e cumprimentam-nos manifestando a sua admiração ou escondendo a sua impressão negativa e reduzindo-se a epígonos ou meros principiantes de uma arte comum. Alguns escritores mais velhos lêem o que os mais novos escrevem (poucos) e estimulam-nos (menos ainda), escrevendo textos críticos em suplementos literários e indicando as suas obras para prémios quando fazem parte do júri. Outros (a maioria) não fazem a mais pequena ideia de quem veio depois deles, nem mostram qualquer interesse em saber quem ficará a escrever no seu país quando, fatalmente, partirem deste mundo. É, por isso, irónico que sejam justamente os primeiros a criar, por vezes, situações melindrosas como a que conto a seguir. Quando o Salon du Livre de Paris dedicou o ano de 2000 à literatura portuguesa, deslocaram-se à Cidade-Luz para cima de 40 escritores lusófonos. Na primeira tarde, no hotel onde todos se instalaram, a inteligente Agustina apresentou-se positivamente a todos, um por um, ficando a saber quem era quem e imune a gaffes de qualquer tipo. Um outro escritor da sua idade foi, porém, menos hábil. Ficando eu sentada no autocarro que nos levaria do hotel à mairie entre ele e o Pedro Rosa Mendes (que publicara há pouco o seu primeiro livro), logo me perguntou se eu, como editora, não mandava ler livros fora, pois tinha uma filha que realizava essa tarefa para uma outra chancela, mas ela ainda ficava com tempo livre e poderia, quiçá, colaborar comigo. Tudo bem se não tivesse acrescentado: «Ainda agora ela leu um livro do Goytisolo, uma coisa tipo Baía dos Tigres, mas em bom.» Quem mais corou fui eu.
Conheço muitos escritores, não só dos livros, mas da vida – pois, como editora (e poeta às vezes), já estive com dúzias deles nas minhas várias salas de trabalho, em lançamentos, acontecimentos oficiais, festivais e encontros literários quer em Portugal, quer no estrangeiro. E há de tudo, evidentemente, porque, antes de serem escritores, são seres «humanos» como todos os outros e, portanto, não constituem excepção na diversidade. Alguns surpreenderam-me pela positiva, conservando uma admirável modéstia quando a obra já os consagrara como génios; outros, porém, apresentaram-se muito diferentes do que os imaginei enquanto lia os seus livros e revelaram egos tão gigantescos que quase senti ter sido melhor não chegar a conhecê-los pessoalmente. Mas houve uma história que me fez deixar de ler definitivamente um certo autor. Trabalhava eu então no escritório que organizava a presença de Portugal como país convidado da Feira Internacional do Livro de Frankfurt em 1997 quando fomos informados de que o poeta Al Berto (um dos convidados) tinha morrido. Pois no meio de uma consternação que durou semanas, se não meses, chegou uma carta de um escritor que não fora escolhido para ir à Alemanha, dizendo – vejam só – que, como Al Berto já não se poderia deslocar ao certame, ele próprio estava disponível para o substituir. Ficou em Portugal, bem entendido.
Há já alguns anos, a ASA publicou dois ou três livros de Hugo Claus – um dos maiores romancistas belgas (morreu em 2008, recorrendo à eutanásia) – que veio a Lisboa para o lançamento da tradução portuguesa de O Desgosto da Bélgica. Como os nossos jornalistas da área cultural não se interessavam especialmente pela literatura flamenga nem sabiam que o autor até já tinha sido indicado para o Nobel, foi difícil – para desgosto do belga – conseguir entrevistas junto da maioria das nossas publicações nessa sua passagem por Portugal. Contou-me o seu editor que, às tantas, já em desespero de causa, tentou convencer um jornalista com factos alheios à obra, confidenciando-lhe que Claus era um homem com uma vida invulgar e surpreendente, tendo inclusivamente vivido com – imagine-se! – Sylvia Kristel, a actriz do famoso filme erótico Emmanuelle. Pois bem, parece que o argumento dos gostos do belga em matéria de mulheres foi o que bastou para mudar o desinteresse em súbita curiosidade. A literatura ficou, pois claro, em segundo plano.
Diz-se que o jornalismo vai de mal a pior – e que o jornalismo cultural é cada dia menos culto. Claro que há excepções, mas conheço muitos episódios que corroboram a ignorância e a falta de profissionalismo de pessoas ligadas à comunicação social que cobrem a área dos livros. Contaram-me, por exemplo, que, quando Umberto Eco esteve em Portugal, os jornais e as revistas puseram-se todos em fila para entrevistar o grande mestre que, num hotel da capital, ia recebendo os seus representantes de meia em meia hora – e respondendo, provavelmente, às mesmas perguntas com a maior paciência do mundo. Mas parece que um dos jornalistas (penso que do extinto Independente) se sentou à frente de Umberto Eco e começou a entrevista por: «Que tipo de coisas é que escreve?» O grande senhor recusou-se, claro, a responder ao sujeito, podendo descansar meia hora até à entrevista seguinte. Mas há uma história ainda melhor (ou pior). Marie Darrieussecq escreveu um livro (Estranhos Perfumes) cuja protagonista, para abreviar, se transforma em porca – e a metamorfose, recordo-me, começa justamente pelo crescimento de oito tetas. Ora, estando a autora em Portugal para o lançamento da tradução, conta o seu editor que um jornalista que pedira para a entrevistar lhe terá perguntado se a obra era autobiográfica… Ecos da falta de leitura, suponho.
Gosto de livros de cozinha e sempre me relaxou ler de uma ponta à outra receitas que nunca me atreverei a experimentar – na verdade, só cozinho em última instância e sempre coisas triviais (cozidos e grelhados). Embora não seja também um bom garfo, delicio-me com as fotografias desses livros, admirando quem produz aquelas esculturas comestíveis sempre com o pezinho de salsa no sítio certo e legendas que falam de molhos, coberturas e caldos de um modo que se podia dizer quase sensual. Mas quem cozinha e gosta de comer garante-me que não há bíblia como o velhinho Pantagruel que, quando eu estava na Temas e Debates, se vendia às dúzias na Feira do Livro a todas as raparigas e rapazes casadoiros. E esse não tem retratos estimulantes, mas apenas – aqui e ali – uma pequena ilustração com um sabor antigo. O resto são receitas, acho que 1500 ou mais. A mecânica do livro é que não é imediatamente inteligível, porque, por exemplo, a receita de bacalhau gratinado no forno remete para o número da receita do molho bechamel (necessário para o gratinado); mas a maioria das cozinheiras julga que se trata de um número de página e nunca encontra à primeira o que procura. No tempo em que eu estava na Temas e Debates, houve uma senhora que não conseguia entender-se com as remissões e me telefonou tantas vezes na mesma semana com a mesma dúvida que a fiz prometer que me convidava para almoçar quando se norteasse. A verdade é que ainda estou à espera.
Estava a escolher um excerto para a badana de um romance que publicarei em finais de Setembro – O Novíssimo Testamento, do cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, de que já aqui vos falei abreviadamente – e, às tantas, já não sabia o que fazer: havia tantos possíveis que eleger um e sacrificar o resto tornou-se uma tarefa praticamente impossível. Pus então de lado os que me pareceram demasiado extensos, mas os quatro ou cinco que sobraram eram todos tão ricos, originais e divertidos que acabei por pedir a outra pessoa que escolhesse por mim. Agora, que a capa está já em execução, olho para esses excertos preteridos como para amigos que se despediram de mim e não voltarão. Então, lembrei-me de que melhor do que falar-vos do livro com palavras que nunca chegarão para o descrever, é deixá-lo falar. Espero, pois, que gostem do excerto que aqui reproduzo: «Djédji nunca fez caca na vida, nem sequer nos cueiros, como todos os nenés, mamou, tomou biberão, sopa na colherzinha, sumo na caneca, comida no prato, mas nunca fez, simplesmente aliviava-se arrotando fatias de luz como lua nova, acocorava-se como uma rã e, por cada coaxar, expelia uma lua, várias luas, que depois se amontoavam no céu como se fossem bolas de sabão, e sempre que o fazia, sobretudo depois das refeições, Djédji punha os cães da vizinhança a uivar como lobos aluados, à parte isso, Djédji foi durante toda a vida um relógio vivo para a comunidade, arrotava sempre na hora e, com o tempo, bastava que os cães começassem a ganir para o capataz anunciar a suspensão da empreitada e a hora da merenda, o sacristão badalava os sinos, no quartel rendia-se a guarda, no chafariz jorrava água das torneiras.»
Nós, editores, criamos empatia com os autores que publicamos e, com o tempo, essa empatia torna-se um laço menos lasso, mais apertado; por isso, quando a vida nos faz decidir mudar de editora, existe esse momento difícil em que perspectivamos ter de nos separar dos autores com os quais estabelecemos amizade. Quando saí da Temas e Debates em 2004, o Miguel Real foi mais ou menos forçado a lá continuar a publicar os seus livros, até porque uma cláusula do contrato que assinara assim o exigia; mas, para bem dos meus pecados, disse que, nesse caso, poria o livro numa gaveta e o filho lho publicaria depois da sua morte. Estou-lhe, obviamente, infinitamente grata. Até porque, além desta prova de amizade, continuo a ser provavelmente a primeira pessoa a ler os seus romances, o que considero um enorme privilégio. O próximo (que sairá em Setembro) chama-se As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia e conta a história de um manuscrito encontrado em Sófia pelo próprio autor (como foi esse manuscrito lá parar não posso dizer) em cujas páginas se podem ler as memórias de D. Amélia (que viveu, pasme-se, até 1951 e, por isso, assistiu, para além da morte do marido e do filho, à implantação da República, ao Estado Novo e a duas guerras mundiais). O início do livro é de um extraordinário fulgor, a descrição do 25 de Abril como um autêntico «rasgão no tempo». Está a perguntar-se o que tem a revolução dos cravos que ver com as memórias da rainha? Espere por Setembro. O romance vai responder-lhe a isso e a muito mais.
Já aqui vos disse uma vez que, embora não fosse nada dada às ciências, gostava bastante de botânica. Na verdade, lembro-me ainda do grande entusiasmo que pus na realização de um herbário (que a minha mãe ainda guarda religiosamente) para o qual me orgulho de ter encontrado, depois de aventuras indescritíveis, folhas uninérveas, peninérveas palminérveas e paralelinérveas, além de raízes de morangueiro, ervilhas-de-cheiro, lírios de três cores e muitos mais achados considerados praticamente impossíveis para quem sempre vivera na capital. Ora, parece-me que ainda não tinha aqui falado de um livro de poesia e há um que se casa bem com esta minha predilecção pela botânica (predilecção abstracta, pois não tenho o menor talento para cuidar de um simples vasinho com uma violeta) e, claro, com a minha paixão (maior) pelos versos. Chama-se Curso Intensivo de Jardinagem e é uma pérola recentemente publicada pela &etc. Escreveu-o Margarida Ferra que, talvez por ser casada com um poeta (José Mário Silva) e trabalhar numa editora (a Quetzal), tem andado na sombra como escritora, mas que espero venha a publicar muitos mais livros depois desta estreia discreta, mas fulgurante. A capa é belíssima, mas o recheio é francamente melhor. A vida para ser bem vivida precisa por vezes de um curso como o deste livro – onde não faltam ramos, raízes, pequenos rebentos e às vezes mesmo espinhos, tesouras e facas. Não deixe de frequentar este maravilhoso jardim-escola. A seguir, quererá inscrever-se no nível seguinte (que, ainda por cima, nem precisa de ser melhor).