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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

29
Out10

O poderio alemão

Maria do Rosário Pedreira

No ano em que Portugal foi o país convidado da feira Internacional do Livro de Frankfurt, trabalhei como directora de publicações no escritório que organizou a presença portuguesa; fizemos vários livros nesse ano e tínhamos de estar constantemente em contacto com os nossos colegas da Alemanha que traduziam os textos para esclarecermos tudo até à exaustão. Embora tivesse aprendido alemão durante quatro anos, não tinha a noção de quão descritiva era aquela língua e que dificuldade sentiam no escritório de Frankfurt os tradutores para verterem para alemão textos aparentemente tão simples. Só para terem uma ideia, em Portugal temos as palavras “doente”, “hospital” e “ambulância” (todas de raízes diferentes) que, numa tradução literal, têm os correspondentes alemães “doente”, “casa do doente” e “carro do doente”... Numa tarde em que precisávamos de um texto sobre o stand de Portugal rapidamente traduzido, tivemos de andar com mensagens de fax para cá e para lá (sim, ainda era o tempo do fax) por causa da expressão “quiosque multimédia”. Parecia óbvio, mas para os alemães colocarem tudo numa palavra (ou em duas) tiveram de saber o formato exacto do quiosque, se servia café, se era de livre acesso, quantos computadores tinha e muitas outras ninharias que, pelos vistos, eram fundamentais para uma tradução correcta. Estivemos horas naquilo e, no fim, o resultado foi surpreendente: qualquer coisa como Kiosk multimedia (ou vice versa, agora já não me recordo). Tanta pergunta para quê?

28
Out10

Português de Portugal

Maria do Rosário Pedreira

Quando estava na Temas e Debates, a editora tinha um acordo com uma congénere brasileira – a Rocco – para vender em Portugal (depois de revistos ou retraduzidos) livros cujos direitos mundiais para a língua portuguesa pertenciam a essa editora – entre outros, os thrillers de John Grisham como O Cliente ou A Firma. Numa viagem ao Rio de Janeiro para a Bienal do Livro, pediram-me que me encontrasse com uma assistente do senhor Rocco, no sentido de tratar de alguns assuntos pendentes e ver os livros que queríamos publicar em Portugal no ano seguinte. A senhora chamava-se Ana Maria Bergin e, embora fosse bastante mais nova do que eu, não tinha com ela qualquer familiaridade. Como acho o tratamento por “você” bastante feio e até um pouco indelicado, dirigi-me a ela na terceira pessoa, usando, como é costume em Portugal, o seu nome próprio. Estive, assim, cerca de uma hora dizendo coisas do tipo “Como a Ana Maria bem sabe...”, “A Ana Maria não conhece o mercado português, mas...”, “Eu sei o que a Ana Maria pensa sobre esse assunto”, “A Ana Maria podia sugerir-me...” e por aí fora, até que, de repente, ela me interrompeu bruscamente e perguntou: “Desculpa, mas quem é Ana Maria?” Fiquei, como podem imaginar, aparvalhada de todo. E, no abismo que se criou entre ambas, continuo a achar que não há acordo ortográfico que nos valha...

27
Out10

Dá Deus nozes...

Maria do Rosário Pedreira

Há muitos anos, fui convidada pelo Instituto Português do Livro e da Leitura (que depois se tornou a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas que acaba de ser, quanto a mim, escandalosamente extinta) para ir a uma Feira do Livro em Cabo Verde. Porque nessas paragens não abundavam livrarias, a feira era um acontecimento nacional e, antes mesmo de as portas se abrirem, havia uma multidão que aguardava, ansiosa, por tocar, cheirar, folhear e comprar livros – desde histórias infantis ilustradas a dicionários e livros de Direito, passando por romances, biografias e livros práticos. Ao final do primeiro dia, já só havia meia dúzia de exemplares nas mesas e escaparates, e os que tinham chegado tarde partiam acabrunhados e de mãos vazias no meio de queixumes surdos e um encolher de ombros. As crianças que tinham apanhado um livrinho pareciam exultantes, mas muitas havia que, à porta, choravam a sua pouca sorte. Nesse tempo, discutia-se muito em Portugal o desinteresse dos jovens pela leitura e fiquei deveras impressionada com a franca desilusão sentida por aqueles meninos. Quando perguntei a um deles – desdentado, com seis ou sete anos – se gostava tanto de ler como parecia, ele respondeu-me que sim e que, à falta de outra coisa, lia todos os dias o jornal e guardava as páginas de que mais gostava. Na semana passada, soube que Cabo Verde tem mais de 90% da sua população alfabetizada e lembrei-me imediatamente deste episódio. E ainda há gente que vive em cidades cheias de livrarias e nunca entra em nenhuma – e, pior, que nem lê o jornal...

26
Out10

Sexo, mas pouco

Maria do Rosário Pedreira

Nós, os Portugueses, somos um povo algo contido em matéria de sexo, talvez por força da repressão que a Igreja católica exerceu sobre nós ao longo de muitos anos; e, quando a revolução abriu as portas a uma certa libertação e tirou a prática sexual da lista dos pecados a merecerem castigo divino, o estado de graça não durou nem duas décadas, pois logo apareceu o vírus da SIDA, uma outra espécie de ameaça. Provavelmente por isso, na literatura portuguesa o sexo mostra-se pouco, mal ou muito discretamente; e, durante décadas, quem ousava dar-lhe corda raramente ultrapassava um efeito ridículo ou inverosímil. Lembro-me de um artigo publicado no Jornal de Letras há anos sem fim, em que Inês Pedrosa extraía dos romances nacionais cenas de sexo caricatas que, arrancadas ao contexto, podiam realmente fazer rir e chorar. Deve ter sido mais ou menos na mesma altura que li o belíssimo romance A Estação das Chuvas, de José Eduardo Agualusa, descobrindo um fôlego fantástico para as coisas do corpo e da sexualidade que nunca tinha encontrado num autor de língua portuguesa. É bem possível que a África, mais descontraída e quente, tenha a sua quota-parte de responsabilidade, mas lá que ali o sexo era bonito, ninguém pode negar.

25
Out10

O enciclopedista e o pretenso poeta

Maria do Rosário Pedreira

Quando tinha dezasseis anos, saiu-me num exame de Francês um texto delicioso. Contava a história de um jovem poeta que tinha ido encontrar-se com o grande Diderot para lhe mostrar o que andava a escrever e auscultar a sua opinião. O enciclopedista não se negou a dar-lha, mas pediu que deixasse os poemas e lhe desse tempo para os ler com atenção. Quando, ao fim de alguns dias, o jovem regressou, seguramente expectante, Diderot explicou-lhe que não só aqueles poemas eram maus como mostravam que o seu autor nunca seria capaz de escrever bons poemas... Como não sou Diderot – e embora às vezes me apetecesse –, não posso dizer nada de semelhante a alguns jovens (e não tão jovens) pretensos escritores que me mandam os seus livros (embora um dia destes Lobo Antunes me tenha dito que só se pode fazer um bom editing com crueldade). Tento, mesmo assim, ser frontal sem magoar demasiado na minha tentativa de dissuasão. Mas nem sei se chego aonde quero, porque, para ser franca, sei de muitos livros que recusei e foram, ainda assim, publicados por outras editoras. Alguns – pasme-se – até me incluíam nos agradecimentos... A propósito, O Poeta de Pondichéry, livro de poemas de Adília Lopes, refere-se a este jovem poeta que Diderot mandou passear.

22
Out10

De olhos em bico

Maria do Rosário Pedreira

Eu e o Japão não nos damos lá muito bem – mas tenho a certeza de que a culpa é minha, que não consigo entender, entre outras coisas, que, mesmo num país seguro, possam andar sozinhas crianças de quatro anos entre a casa e a escola. Quando estive em Tóquio há uns anos, achei demasiadas coisas estranhas (censuram os pêlos púbicos em livros, filmes e até anúncios de lingerie, tornando-os uma mancha indefinida, mas vendem uma manga horrorosamente violenta e não raro pornográfica); e perguntei-me – sem obter resposta – porque não têm as personagens dos desenhos animados «olhos em bico», e sim uns olhões verdadeiramente arregalados, quando se diz que os Japoneses nos consideram uma raça inferior. Não consigo alcançar o Japão, é o que é. E, ainda assim, há um escritor japonês que vive em Londres que leio com um prazer desmedido. Ganhou o Booker Prize com o magnífico Os Despojos do Dia (que deu um filme vencedor de vários Óscares), mas escreveu muitos outros romances de grande qualidade. Talvez seja um escritor já europeizado, mas a verdade é que, embora os seus cenários sejam frequentemente europeus, as suas histórias não deixam de estar impregnadas de valores tipicamente japoneses. Em Os Inconsolados, por exemplo, vê-se bem que Kazuo Ishiguro não podia ser senão japonês.

21
Out10

Braço de Prata

Maria do Rosário Pedreira

Mário Lúcio Sousa estará hoje na Fábrica e Braço de Prata, pelas 22h00, para apresentar simultaneamente o seu romance O Novíssimo Testamento, vencedor do Prémio Literário Carlos de Oliveira, e o seu novo CD, Kreol, no qual canta e toca com Milton Nascimento, Pablo Milanés, Harry Belafonte e Teresa Salgueiro, entre outros. Prometemos boas palavras e bons sons. Apareçam!

 

 

21
Out10

A eternidade ou um dia

Maria do Rosário Pedreira

Quando perguntam a um escritor porque escreve – e acontece frequentemente em sessões nas quais o público intervém –, as respostas variam, mas não ultrapassam normalmente meia dúzia de hipóteses. Há quem escreva porque quer e quem escreva porque tem de escrever; há quem escreva porque não sabe fazer mais nada e quem ache que nunca se teria tornado escritor se não tivesse uma vida para lá da escrita; há quem escreva para não morrer e até quem escreva para não matar; há quem escreva para dizer alguma coisa ao mundo e quem não saiba o que diz com o que escreve. Pensa-se desde sempre que os escritores, escrevendo, procuram sobretudo a imortalidade. António Lobo Antunes, por exemplo, numa recente entrevista ao Expresso, mostrou-se convicto de que a sua obra lhe sobreviverá e que ainda vai ser lida durante muitos anos (ele falou em séculos, creio eu). Não sei se sermos lidos depois de mortos é consolo maior do que sermos lidos em vida; talvez seja um certificado de qualidade, é certo, mas, em todo o caso, já cá não estaremos para ver os leitores pegarem nos nossos livros. Não será preferível um encontro com um leitor especial num único dia à desconhecida eternidade?

20
Out10

Desespero

Maria do Rosário Pedreira

Um dia destes, a olhar para as minhas estantes, apercebi-me de uma coisa assustadora: havia muitos livros que eu estava certa de ter lido e dos quais lembrava muito pouco ou coisa nenhuma. Já estou na idade em que me faltam os nomes dos actores que entraram em determinados filmes de que até gostei e, pior do que isso, na idade em que, quinze dias depois de ter visto um filme que não me agradou, já não sou capaz de recuperar senão vagos momentos da história. Isso até aguento. Mas com os livros fiquei preocupada, tanto mais que quero ainda ler todos os que puder e estou sem saber se, ao esquecer-me rapidamente deles, valerá realmente a pena lê-los. Ao mesmo tempo, sinto que a partir dos cinquenta entramos numa espécie de contagem decrescente, e não raro dou por mim a planear furiosamente leituras, com medo de que o tempo se acabe e eu não tenha conseguido pôr os olhos em metade do que queria. Disse-me recentemente alguém (o Manuel Jorge Marmelo, acho, mas com esta memória já não tenho a certeza) que, mesmo que estejamos sempre a ler desde pequenos, nunca, no tempo normal de uma vida, conseguiremos ultrapassar os três mil títulos. Não sei se haverá três mil livros imprescindíveis, claro, mas... como terão então feito aqueles que se gabam de ter mais de vinte mil volumes nas suas bibliotecas?

19
Out10

Uma espécie de loucura

Maria do Rosário Pedreira

Há uns anos, numa tarde inesquecível na Feira do Livro de Lisboa, Eduardo Prado Coelho comparava romancistas e poetas. Dizia que, enquanto os primeiros eram claramente neuróticos, os segundos eram, sem qualquer dúvida, psicóticos. Ou seja: ambos mentalmente doentes, embora o transtorno dos romancistas não interfira com o pensamento racional e o distúrbio dos poetas implique uma certa perda de contacto com a realidade. Também Eduardo Lourenço, numa sessão belíssima a que assisti na Casa Fernando Pessoa, avançou que os poetas raramente sabem donde lhes vem aquele primeiro verso que provoca o poema, havendo nisso uma espécie de transcendência que faz com que, tradicionalmente, se diga que estão mais próximos de Deus do que as outras pessoas – incluindo os romancistas, que costumam explicar com grande detalhe donde lhes veio a ideia para determinado romance. E, no entanto, Lobo Antunes fala de uma mão que escreve alheia à sua cabeça; e na semana passada, numa sessão em Leiria com, entre outros, o escritor cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, autor de O Novíssimo Testamento, este disse ao público que, na verdade, também não sabia bem donde lhe vinham as palavras quando abria o portátil e começava a digitar. Depois, pensando melhor, arriscou, porém, uma hipótese divertida: download cósmico?

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