Quando hoje se fala na nova literatura portuguesa, os nomes que vêm à baila são quase sempre os mesmos: José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, valter hugo mãe, João Tordo. Tive a felicidade de poder dar à estampa os romances de estreia de três deles, mas, naturalmente, não deixo de considerar um escritor enorme o único que nunca publiquei: Gonçalo M. Tavares. O seu Jerusalém, que venceu vários prémios cá dentro e lá fora, é um romance absolutamente notável e único no panorama das letras portuguesas, tão próximo da tradição da Europa Central como Tordo está da anglo-saxónica. Enquanto o lia, tinha sempre um aperto no coração, como se soubesse que o mal estava à espreita e havia de se mostrar cedo ou tarde – um mal que era inevitável porque inscrito numa espécie de linhagem histórica que o determinava. As personagens – médicos, loucos, deficientes, traumatizados da guerra, prostitutas – ficam connosco muito para além de o livro fechado, mesmo que algumas delas tenham morrido nas suas páginas. E as ideias por detrás da história pareceram-me, por vezes, tão geniais e novas que, enfim, tive ainda mais pena de não ter sido eu a publicar este livro, mas muito feliz por ele existir.
Hoje, no Diana Bar, na Póvoa de Varzim (adoro esta terra!), o jornalista e escritor Manuel Jorge Marmelo apresenta O Novíssimo Testamento, de Mário Lúcio Sousa. Amanhã, haverá nova sessão de apresentação na FNAC do NorteShopping (obrigada, querido Manel Jorge).
Agora há poucos jovens que queiram fazer cursos de Letras, provavelmente por falta de saídas profissionais, mas nem sempre foi assim e houve anos em que muita gente foi parar a estes cursos porque as médias de entrada não eram muito altas, e era melhor um curso na mão do que outro a voar. Contaram-me a história de uma aluna do curso de Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa que mostra bem o equívoco de se ir estudar uma matéria para a qual não se tem a menor vocação. Na primeira aula de Literatura Portuguesa (julgo que assim se chamava a disciplina, mas tanto faz para a historia), a professora Clara Rocha estava a comunicar aos alunos todas as obras que iriam estudar ao longo do ano e, entre elas, referiu a poesia de Sá Carneiro. Para admiração da docente e de muitos dos colegas (foi uma delas que me contou o episódio), houve uma aluna que se mostrou admiradíssima e, com a desfaçatez própria da ignorância, inquiriu: «Sá Carneiro?! O quê? Esse também escrevia versos?»
Hoje, em Leiria, pelas 18.30, na Livraria Arquivo, João Tordo, Vasco Luís Curado, Mário Lúcio Sousa… e eu (a editora dos três) vamos participar numa conversa, animada com música e boa companhia. Se estiver por ali, apareça!
Trabalhar num grande grupo editorial tem algumas vantagens (mesmo que muita gente não acredite, tem mesmo); uma delas é podermos aceder a certos livros antes de os terem as livrarias – e foi isso que me aconteceu recentemente com o novo Lobo Antunes, Sôbolos Rios Que Vão: alguém mo ofereceu sem eu sequer ter pedido. A verdade é que não o ia comprar – tenho demasiadas coisas que ler e sinto há muito que é preciso disposição e disponibilidade para um autor de peso como ele – coisas que habitualmente me faltam. Mas... sim, puseram-me o livro na mão e era um desses exemplares fininhos que, apesar do que exigem, se lêem em relativamente pouco tempo. Foi mais forte do que eu, como se aquela mão que o autor diz que escreve os livros por ele tivesse esticado um dedo acusador como a dizer-me que já não era sem tempo. O romance fala de um homem às voltas com um ouriço bicudo (também podia ser um caranguejo, uma vez que se trata de um cancro, mas o ouriço é bastante mais apropriado) e da sua suposta salvação pelo recurso a memórias de infância junto da nascente do Mondego num tempo em que as botas não lhe duravam mais de um Inverno, o pai abusava da empregada, o avô desdenhava os jornais na varanda, o tio supostamente impotente o ensinava a fazer oitos com a bicicleta, uma estrangeira aparecia nua no hotel dos ingleses, a mãe contava como conhecera o pai e o jovem Virgílio o acomodava numa carroça até à vila entre sacas de batatas que o incomodavam como... ouriços? Depois, havia a avó, pedindo-lhe que não espalhasse o peixe no prato e perguntando-lhe se não ouvia os gatos. A avó, o melhor de tudo. Que dizer? As memórias de infância são quase sempre o que nos salva. E aqui também.
O primeiro livro que aconselhei quando criei este blogue foi justamente uma obra de Mario Vargas Llosa, o vencedor do Prémio Nobel da Literatura deste ano. Na altura, A Tia Júlia e o Escrevedor, um romance notável confessadamente autobiográfico, encontrava-se esgotado, mas foi reeditado há pouco e está aí de cara lavada para quem nunca o leu. Esse meu post foi dos que mais comentários teve desde que o blogue começou. Acredito, pois, que muitos gostarão de saber esta notícia.
Andava atarefada, sempre à procura de bocadinhos livres para me agarrar às capas de um determinado livro, quando o Manel me perguntou que andava eu a ler com tamanha sofreguidão. Respondi-lhe que andava a ler o Livro, mas ele não percebeu imediatamente. E, quando deixei o exemplar num sítio qualquer da casa e não o encontrava, perguntei-lhe se ele por acaso tinha visto o meu livro e ele perguntou outra vez de que livro se tratava. Respondi: o Livro. Ficou confuso, mas, finalmente, lá se fez luz. Este título de José Luís Peixoto presta-se a confusões e tem, realmente, muito que se lhe diga. O Livro também – e com ele passei muitas horas extraordinárias nos últimos tempos. Quando estava a chegar ao fim, até veio aquela tristeza que temos quando nos separamos de alguém que amamos. A primeira parte é absolutamente magnífica, com muitas passagens e personagens que me recordaram Nenhum Olhar, mas com uma leveza nova e até alguns apontamentos de humor (um surdo que «se descuida» diante de toda a gente porque não ouve os próprios puns, por exemplo). A segunda parte – de que a crítica gostou menos – é uma forma de o autor ser moderno, para não ser apenas clássico. Não tenho nada contra nem acho de forma alguma que esteja a mais, até porque tem dados importantes sobre o desfecho da história do Ilídio, da Adelaide e de outras pessoas. Como eu supunha, é mesmo um senhor livro.
Há muitos anos li um livro admirável que passou completamente despercebido, mas faria certamente as delícias de todos quantos amam a filosofia. Decorria a sua acção num país sem nome, que podia ser Espanha ou Portugal, no tempo da Santa Inquisição; e contava a história de um náufrago que dava à costa numa praia perto de um mosteiro, vindo de um lugar estranho onde ninguém ouvira nunca falar de Deus. Para salvar a pele da fogueira, tem este homem culto e atraente de explicar porque não pode acreditar no que não conhece a um inquisidor inteligente que tenta provar-lhe, com a ajuda de uma menina que foi encontrada entre os lobos, que a ideia de Deus é inerente à criatura humana e anterior a qualquer aprendizagem. Os diálogos entre os protagonistas são de uma riqueza extraordinária em termos de argumentação e desafiam permanentemente o leitor a pôr-se no lugar ora de um, ora de outro. Chama-se esse romance O Conhecimento dos Anjos e foi escrito por uma inglesa, Jill Paton-Walsh, que – tanto quanto sei – não voltou a ser traduzida em Portugal. Mas é uma pérola a procurar nos «baús» dos alfarrabistas.
Não sou especialmente impressionável – o sangue nunca me afligiu, mesmo em criança, e posso ouvir histórias realmente nojentas à mesa sem perder o apetite. Também raramente choro em filmes e livros (excepto se já estou deprimida), porque, mesmo que me identifique com alguém ou alguma coisa, nunca deixo de sentir que tudo aquilo é ficção. (O defeito é meu, claro, mas tenho de viver com ele, como com todos os outros.) Há, porém, algumas coisas que me comovem – e normalmente têm mais a ver com velhos do que com crianças (talvez por nunca ter sido mãe). Mas foi, curiosamente, por causa de uma cena com bebés que tive um dia de interromper a leitura de um livro, tal era o aperto na garganta e no estômago. O romance chamava-se As Cinzas de Ângela (deu, de resto, um filme terrível) e era construído a partir das memórias de um irlandês, Frank McCourt, que emigrara para os EUA. Ainda na Irlanda, a mãe do autor ia tendo filhos no meio de uma pobreza irremediável e, como não podia deixar de ser, ia-os perdendo quase ao mesmo ritmo a que nasciam. O problema maior (para mim, que me fui abaixo) foi quando a dita senhora teve um par de gémeos e um deles, dois anos depois, não resistiu à grande fome. A reacção do irmão que sobrevive à sua ausência, a procura constante da metade que se foi, é – garanto – demasiado pungente. Mesmo para gente que não se impressiona habitualmente…