Quando estava na Temas e Debates, logo no início, publiquei na colecção de romances estrangeiros uma fábula que podia ser lida por jovens e adultos com a mesma facilidade e o mesmo interesse. Passava-se num reino imaginário e altamente democrático (utópico, bem vistas as coisas) em que era decidido organizar um torneio de religiões para escolher a que melhor podia servir aquele território. Os participantes eram todos altos representantes do judaísmo, do cristianismo, do islão, do budismo, do hinduísmo e, se a memória me não falha, também um ateu. Tinham de apresentar as grandes vantagens da sua religião em relação a todas as outras e ser confrontados com acusações dos seus concorrentes ou rivais. Intitulava-se O Rei, o Sábio e o Bobo, assinava-o Shafique Keshavjee – um especialista em questões interconfessionais – e dava, em duzentas páginas, informações de base (crenças, livros sagrados, rituais, etc.) sobre as principais religiões do mundo embrulhadas numa história que incluía atentados, raptos e outras peripécias. Narrado como o relato de um concurso, era de leitura fácil e aliciante, ideal para quem quer aprender o que não sabe e só gosta de falar de determinados assuntos com conhecimento de causa. Não digo, como é óbvio, quem ganhava o torneio – estragaria por certo o prazer a quem o quiser ler.
Tenho uma grande atracção pela psiquiatria e pela psicanálise e muita fé em terapias que curem estados de alma cheios de escuridão sem recurso a químicos. Sei que não servem para toda a gente e que é preciso – como com um livro – que a combinação entre sujeito e objecto (melhor: entre paciente e médico) funcione. No entanto, não consegui deixar de apreciar a sátira a estas práticas numa grande comédia de David Lodge, que teria dado um fantástico filme realizado por Woody Allen se os argumentos dos seus filmes não fossem sempre ou quase sempre do próprio. Numa altura em que andamos todos cabisbaixos com as notícias de um país à beira da bancarrota, faz bem à alma ler um romance inteligente, informado e divertido como Terapia. Inesquecível desde logo a cena em que o protagonista recebe da mulher um pedido de divórcio e chega à conclusão de que nem sequer tinha a noção de que se davam mal; mas mais hilariante é a tentativa de o mesmo capar com uma tesoura de podar o professor de ténis por quem crê que a sua mais-que-tudo está loucamente apaixonada. Para quem gosta de livros bem-dispostos, muitos dos romances de Lodge são aconselháveis, mas alguns talvez excessivamente britânicos. Este, porém, sobre as fraquezas humanas, não podia ser mais universal.
No mesmo dia em que a revista Única dedicava um número aos luxos dos mais e menos conhecidos, participei daquilo a que se pode chamar um lançamento de luxo. Tratava-se da apresentação pública de Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares – um livro em verso-prosa que narra a viagem de um português (estranhamente chamado Bloom, como o Bloom do Ulisses) até à Índia, partindo de Lisboa e parando em Londres e Paris, no século XXI. Escrito de certa forma à sombra d’Os Lusíadas, com os mesmos cantos e estrofes e também algumas glosas em versos precisos (para quem conheça bem o poema de Camões a leitura deve ser ainda mais extraordinária), este é um livro que vai dar que falar cá e em toda a parte, hoje e daqui a cem anos. E, embora não o tenha ainda lido (mal lhe pus a mão, para ser sincera), a verdade é que me sinto desde já à vontade para o recomendar. E porquê? Pois bem: não só a apresentação de Vasco Graça Moura foi suficientemente elucidativa e aliciante, mas também – ou sobretudo – a leitura de vários excertos por Pedro Lamares (um grande, grande diseur) mostrou que o texto é absolutamente genial e tem de ser lido com todo o tempo do mundo. Em época de mediania, como aquela em que vivemos, este é um luxo irrecusável – e a ele voltarei neste blogue para confirmar, com toda a certeza, as minhas suspeitas assim que terminar a leitura.
Na véspera do lançamento público do romance Rio Homem, de André Gago (AG), foi o autor informado por uma jornalista que o entrevistara na véspera de que Francisco Duarte Mangas (FDM), jornalista e escritor, enviara para a redacção uma nota acusando André Gago de ter, grosso modo, plagiado uma novela que escrevera em 1993 intitulada O Diário de Link, tantas eram as coincidências e semelhanças que encontrara. Conheço, embora superficialmente, Francisco Duarte Mangas, por quem tenho respeito enquanto autor (acho pena, aliás, que nunca tenha tido o reconhecimento que merece) e estima enquanto pessoa. Também por isso a acusação me pareceu estranha: o romance de AG já passara, no Prémio Leya, o crivo de um júri com nomes de respeito (entre eles, Manuel Alegre, Nuno Júdice ou Pepetela), fora objecto de uma crítica por Miguel Real no JL (que o inseriu numa tradição literária portuguesa, enumerando muitos outros autores, mas nunca FDM) e ia ser (já foi) apresentado por Lídia Jorge em sessão pública. Além disso, as razões invocadas para o «plágio» no comunicado eram demasiado gerais, entre elas o facto de a acção decorrer na mesma aldeia em ambos os romances e haver «uma história de amor arrebatadora»… Porém, porque não gosto de me pronunciar sem ter os dados todos, dei a FDM o benefício da dúvida. Subi então à escada em demanda do seu O Diário de Link nas estantes lá de casa, pois o Manel garantiu-me que possuía um exemplar (e porque só tem 85 páginas, na confusão, foi mesmo difícil de encontrar). Li-o e gostei; mas, com toda a franqueza, não encontrei mais semelhanças entre ele e Rio Homem do que as que existiriam entre dois romances passados em Paris com resistentes ou em Coimbra com estudantes... Pontos de contacto, sim, mas os evidentes em autores que se preocupam e escrevem sobre os mesmos assuntos. FDM apresentou, tanto quanto percebi, uma queixa à SPA; AG diz que fez muito bem.
António Lobo Antunes é, segundo me dizem, um amante de poesia – um apreciador e um conhecedor. E há uma ou duas semanas, tendo ido autografar exemplares do seu último romance à editora, parece que deu um espectáculo fantástico a quem lá estava para ouvir, recitando de cor imensos poemas portugueses de várias épocas. Há uns dias, quando me encontrei com o escritor Mário Cláudio para agendar a saída do seu próximo romance, ficámos a conversar sobre Yeats e Robert Frost no fim da reunião e, de repente, também ele me recitou ali mesmo, em inglês, do pé para a mão, um poema lindo de Frost sem a mais pequena hesitação. (Podia ter-lhe retribuído com outro, mas fiquei intimidada e não fui capaz.) Era, porém, bonito juntar estes «craques» num lugar qualquer e deixá-los recitar para nós. Tenho a certeza de que fariam mais pelos poemas e os poetas do que algumas (quase todas) livrarias que temos, onde a poesia está sempre escondida ou nem tem existência. Bom serviço à poesia prestam também João Gesta e os seus diseurs nas Quintas de Leitura do Teatro do Campo Alegre, no Porto, uma vez por mês, fazendo um trabalho magnífico. Se nunca assistiu e vive na cidade Invicta, não falte da próxima vez.
O meu «compadre» (como se dizia antigamente) é canhoto (creio que o termo correcto é esquerdino, mas acho que ele não se ofende por eu usar uma palavra, ao que julgo, pejorativa); parece que ainda lhe tentaram ensinar a escrever e comer com a mão direita, mas não deu resultado, e isso não o impediu de adorar fazer riscos e desenhos e ser há muito director gráfico em agências de publicidade. Ainda assim, sempre o ouvi queixar-se das tesouras e das facas de peixe que, pensadas para quem faz tudo com a mão direita, incomodam bastante quem usa a esquerda e, sobretudo, de pouco ou nada servem, porque ficam com as lâminas viradas para o lado em que não há nada para cortar. Sempre me impressionou bastante na infância a forma como os colegas canhotos colocavam a folha de papel sobre a mesa e escreviam – todos torcidos – e, um dia destes, ao ver na televisão um árabe a escrever da direita para a esquerda, pensei que, se calhar, nesses países onde a direcção da escrita é diferente da nossa há mais esquerdinos e os destros são a excepção. Na verdade, também no Japão os livros começam pelo (nosso) fim e a capa está onde nós, por norma, colocamos uma sinopse, críticas e outro material promocional. Será que lá também os canhotos são privilegiados?
Há muitos anos, numa aula de Literatura Inglesa na Faculdade de Letras, um certo professor declarou, assim sem mais nem menos, que O Último Tango em Paris era um filme sobre a pintura americana. Estranhei, claro, pois o que ouvira dizer do filme nada tinha que ver com a pintura; mas, como na altura não o tinha visto, achei melhor reduzir-me à minha insignificância. Vi-o mais tarde e, mesmo tendo aquela declaração presente e já sabendo mais sobre a pintura americana e sobre outras coisas nessa altura, a verdade é que (mea culpa) não consegui atingir o statement do meu professor. Contudo, ao terminar há dias a leitura de A Beleza e a Tristeza, do japonês Yasunara Kawabata (ouvi alguns conselhos que me deram aqui no blogue e insisti um pouco mais na cultura nipónica), ficou-me a sensação de que, além do enredo, o romance é de certo modo uma obra sobre a pintura japonesa. Claro que trata de outras coisas, do amor quase sempre – magoado, preterido, ciumento, lésbico e vingativo, estados de alma que, descritos por um japonês que ganhou o Nobel em 1968 e se matou em 1972, têm um sentido quase pictórico, sobretudo na cena em que Keiko, a apaixonada e estranha discípula da pintora Otoko, confessa que tem um mamilo insensível e não permite que ninguém o toque. Não foram das horas mais extraordinárias que passei, mas não se pode querer tudo e aprendi muitas coisas sobre o país do Sol nascente e... a sua pintura.
Amanhã é lançado publicamente Rio Homem, o romance do actor André Gago que publico na Asa, fruto de muitos anos de investigação e finalista do Prémio Leya no ano passado. Ao contrário do que costuma acontecer com livros de gente que aparece na televisão – quase sempre escritos por mãos alheias ou simplesmente mal escritos –, este é um livro bonito e profundo que cruza duas histórias magistrais: a de um jovem galego foragido da Guerra Civil de Espanha que perdeu as suas referências e a da aldeia comunitária que o acolheu – Vilarinho da Furna – e que hoje jaz submersa na albufeira de uma barragem. O link para o booktrailer (onde o autor fala do romance com a belíssima voz do actor) aí vai. O convite para que apareçam no lançamento também.
Quase sempre se escreve na contracapa de um livro um texto que resuma o seu enredo ou avance o assunto de que trata. Nem todos os livros têm badanas (eu gosto dos que têm porque as uso como marcadores), mas, geralmente, quando estas existem, são, entre outras coisas, usadas para proporcionar aos leitores um cheirinho da vida do autor (e por vezes até um relance da sua cara, mais ou menos bonita, tanto faz). As pessoas são curiosas e gostam de saber pormenores sobre quem escreve. O problema é que, de vez em quando, esbarramos numa badana biográfica totalmente disparatada... E já nem falo do número de filhos ou da raça dos cães (detalhes que os norte-americanos adoram acrescentar), mas de dados distribuídos pelas linhas à má fila, sem o mínimo bom senso. Um dia destes, por exemplo, caíram-me os olhos numa badana que começava logo por dizer que a autora era escritora. Ora, se tínhamos um livro dela na mão (e sei lá quantos mais escreveu ao longo da vida), seria mesmo preciso dizê-lo? (Quase me apetece sugerir que faria mais sentido explicar em certas badanas que quem assina o livro NÃO é um escritor.) E a verdade é que não dizia que “era” escritora, mas que o “fora” – mais estranho ainda, porque depois das datas de nascimento e morte entre parênteses a seguir ao seu nome, já tínhamos certamente concluído, se também não o soubéssemos já, que a senhora partira deste mundo. Não bastando isso, a frase seguinte informava-nos de que tinha sido casada com determinado escritor, como se isso lhe conferisse um estatuto que, solteira, nunca atingiria (e há muita gente entendida que sempre a achou muito melhor do que o marido, ainda por cima). Pois bem, parei de ler ali mesmo. Como o Joaquim Namorado disse ao Manel quando ele era estudante em Coimbra, os escritores são para se ler, não para se conhecer. Badanas para quê?
Publiquei no virar do século um livro de Bill Gates onde este declarava que o mundo tinha mudado mais nos últimos cinquenta anos do que nos trezentos anteriores. Talvez seja verdade. Quando comecei na edição, no final dos anos 80, escolhia livros nos catálogos que recolhia nas feiras internacionais, pedia os direitos por carta, às vezes respondiam-me que quem os detinha era um agente, voltava a escrever, mandavam-me finalmente um exemplar e concediam-me dois meses para me pronunciar, após os quais eu desistia ou fazia uma oferta (mais uma vez por carta), que normalmente era aceite três semanas mais tarde. Uf! Nunca um livro saía simultaneamente em todo o mundo, como hoje acontece, mas também raramente havia leilões ou tínhamos de fazer ofertas um ou dois dias após a recepção de um ficheiro em Word ou PDF de determinado romance. Pois é verdade que os tempos mudaram e muita coisa foi facilitada e agilizada. Ainda bem, pois já não conseguiríamos viver sem tudo o que a tecnologia nos trouxe. O Manel não resistiu ao iPod, ao iPhone, ao E-Book e agora também aguarda, ansioso, um iPad que há-de chegar de França nos próximos dias; e eu não escreveria isto nem seria lida sem as maravilhas desta modernidade. Mas, se um dia destes me queixava da memória a seguir aos 50, pois a verdade é que os mais novos também se queixam do mesmo e já ninguém sabe um simples número de telefone de cor, porque a máquina ajuda e não vale a pena exercitar os neurónios em coisa tão comezinha. Por outro lado, com os chats e as redes sociais, tenho ideia de que as pessoas se vêem menos e andam mais sozinhas. Ainda na Gradiva, nos primórdios do vírus da Sida, ajudei a publicar um livro (Vox, de Nicholson Baker), que era uma conversa telefónica sobre sexo entre um homem e uma mulher, respectivamente das costas leste e oeste dos EUA, que usavam as linhas eróticas por constituírem uma forma segura de ter relações sexuais. Acabava bem, porque ambos alcançavam o orgasmo, mas não será um orgasmo melhor em presença do outro? E as centenas de amigos que todos temos no Facebook poderão ajudar-nos quando precisarmos deles?