2011 está quase a chegar e, como sabemos, será um ano difícil para todos e dificílimo para alguns. Logo à noite vai haver festa e champanhe, como sempre, e pediremos doze desejos comendo já as passas do Algarve. (Por tradição, também eu o farei, embora deva confessar que no dia 1 já não me costumo lembrar de nada do que desejei.) É, contudo, importante que não deixemos de ler no ano que aí vem. Pondo de parte uma certa ganância inerente à natureza humana (que alguns exacerbam e outros dominam), estou convencida de que, se todos fôssemos pessoas esclarecidas, o mais provável era não termos chegado tão longe. Além disso, mesmo que os livros sejam caros para muitos, a verdade é que os concertos estão sempre lotados e só dão umas horitas de prazer, enquanto um livro pode ser lido, relido, emprestado, consultado e, regra geral, oferece mais qualquer coisa que fica cá dentro, mesmo que não nos apercebamos disso imediatamente. Eu conto manter-me por aqui a falar de livros e espero que no ano que vem se mantenham também os que me lêem. Um feliz Ano Novo e obrigada pela vossa companhia.
Nesta época em que vivemos, parece que já está tudo inventado – e, em matéria de literatura, é de facto muito difícil fazer bom e diferente. O segredo está muitas vezes em «baralhar e dar de novo», uma vez que se trabalha com um material abstracto chamado linguagem que, graças a Deus, não é estanque e aceita constantes combinações. Mas, se muitos críticos dão primazia à linguagem em detrimento da história para definir o génio literário, a verdade é que houve muitos génios da literatura que vingaram com um pelo menos aparente despojamento linguístico. Os escritores norte-americanos, por exemplo, não são lá muito dados a rendas e franzidos, optando, frequentemente, por uma simplicidade quase comovente na escolha das palavras e na composição das frases e apostando quase tudo na estrutura e na temática. É, pois, a todos os títulos, admirável essa novela que todos os jovens deviam ler – e muitos lêem – chamada O Velho e o Mar, que vive com apenas duas personagens (e uma delas não fala) no mesmo cenário, do princípio ao fim da narrativa. Se, por mero acaso, nunca leu a pequena obra-prima do génio Ernest Hemingway, guarde umas duas ou três horas da sua vida para depois nunca mais se esquecer dela.
Os livros hoje têm uma vida curta e, como se publica excessivamente, ficam pouco tempo nas livrarias, o que condena muitos deles a uma morte prematura. Os que têm a sorte de sobreviver são poucos e arriscam-se a tornar-se uma espécie de clássicos, embora muitos dos verdadeiros clássicos morram em vez deles e tenham cada vez menos leitores. Quando gostamos muito de um livro, ficamos desesperados ao ver que, nas gerações que se seguem à nossa, já ninguém lhe pega; e, porque creio que seria realmente grave que alguns títulos fossem esquecidos e riscados das leituras actuais, hoje dedico o meu post a três grandes romances (dois deles até no tamanho são grandes) que estão, quanto a mim, entre os maiores da literatura portuguesa. O primeiro é Sinais de Fogo, o romance que Jorge de Sena deixou inacabado e teve já uma adaptação ao cinema; o segundo é Finisterra, uma peça literária única no género da autoria desse poeta maior (e a cair perigosamente no esquecimento) que foi Carlos de Oliveira. O terceiro é Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, que está desde há uns meses disponível em pequeno formato na BIS e tem, por isso, um preço simpático. Se os jovens portugueses só lessem estes três livros, pelo menos já teriam lido qualquer coisa de grande.
Normalmente, quando um autor encaminha o seu livro para uma editora, espera um sim, mas não estranha demasiado quando vem um não e até agradece, se for bem-educado, quando o editor lhe escreve a explicar porque sim e porque não. Às vezes, também recebe um talvez e, depois da conversa com o editor, tenta transformar esse talvez num sim que quer que chegue mais tarde. Há, porém, editoras que substituem a resposta (seja ela qual for) por uma mera tabela de preços. O pai de um amigo meu, a quem a reforma deu para escrever versos (não necessariamente bons), tendo inquirido numa livraria da vizinhança o que devia fazer para ver os seus escritos publicados, acabou a enviá-los para determinada editora que lhe aconselharam. E a resposta – que, quando é séria, frequentemente tarda bastante – não se fez esperar: x euros por cada caderno de 16 páginas e tem o seu livro publicado, além de que lhe fazemos um lançamento numa biblioteca da sua cidade! O senhor, orgulhoso da sua produção literária e ferido com o que considerou uma desfaçatez, não aceitou; mas acabo de conhecer uma rapariga que, noutra editora, concordou em pagar o que lhe pediam para ver o seu livro editado e nunca sequer se encontrou com uma pessoa de carne e osso: mandaram-lhe as provas do livro, puseram-lhe uma capa que ela nem viu e, em mês e meio, tinha o livro à venda... em quase nenhuma livraria, pois claro. Não sei se podemos chamar desonestas às pessoas que assim trabalham – não são, afinal, muito diferentes de uma simples gráfica e não diríamos essa palavra feia se fosse a gráfica a imprimir os versos do pai do meu amigo ou o romance da rapariga; e, porém, há qualquer coisa de feio neste negócio que, se fosse mais sério, teria um crivo e se recusaria a publicar o que não merece estar por aí nas estantes das livrarias (mesmo que sejam poucas). Bem sei que hoje até as editoras ditas sérias põem cá fora muitos livros que nunca deviam ver a luz, mas, pelo menos, arcam com os seus custos...
Faço um intervalo nas sugestões de livros para falar do filme José e Pilar. Fico, em primeiro lugar, muito feliz por, finalmente, terem chegado os filmes portugueses em que não há desencontro entre o som e a imagem e em que se percebe tudo o que as pessoas/personagens dizem. (Foram tantos anos disso que quase me tiraram a vontade de voltar a ver cinema português.) Em segundo lugar, fico contente com este filme em especial, que é um filme sobre a vida de José Saramago e Pilar del Río num momento particularmente difícil da vida dos dois: o período em que, estando a escrever A Viagem do Elefante, o Nobel da Literatura adoeceu gravemente e teve de ser internado (vê-lo-emos também recuperar e assistir ao lançamento desse livro). Com algumas cenas pungentes (como aquela em que o escritor faz uma declaração em que ouvimos sobretudo a sua dificuldade em respirar), outras muito belas (como a porta do quarto de hospital enfeitada com luzinhas de Natal emoldurando uma Pilar triste e preocupada), outras divertidas (Saramago e García Márquez dormindo numa mesa de um encontro de escritores), esta longa-metragem fala de um amor feito de dedicação e cumplicidade, mas também do dia-a-dia perfeitamente inimaginável de um escritor célebre, que tem de escolher entre trezentos convites porque ninguém o deixa em paz. A ver, absolutamente.
Hoje, que anda tudo atarefado com as últimas compras de Natal e a preparar-se para uma ceia em família (tudo, não, claro – e o nosso coração tem de estar também com os mais sós e desprotegidos), a minha sugestão tinha mesmo de ser natalícia. Sugiro, assim, que leiam ou releiam a história de Ebenezer Scrooge, o avarento que Dickens imortalizou em Cântico de Natal e se transformou numa pessoa melhor graças às visões bastante aterradoras do próprio futuro. Num ano difícil como aquele que se aproxima – e que será, se não estou em erro, o ano do voluntariado – vamos lá aprender com a moral desta história de Dickens e dar uma ajudinha a quem estiver em piores lençóis. Um feliz Natal para todos!
Quando era professora de Português nos anos 80, zangava-me muito quando os alunos absorviam como esponjas e utilizavam até à náusea palavras e expressões brasileiras – em vez das equivalentes portuguesas – por passarem demasiadas horas a ver telenovelas. Claro que muitas destas expressões eram tão deliciosas e certeiras que era difícil recusá-las («mentira tem perna curta» é obviamente mais redondo e eficaz do que «mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo»); mas eu, que passara a infância a ler o Tio Patinhas em traduções feitas no Brasil, com balõezinhos cheios de «grama» (relva), «bala» (rebuçado), «Oba!» e «bacana», nem por isso passara a utilizá-las no meu discurso (suponho que era por não as ouvir, e que isso muda tudo). Preferia, por isso, que os alunos lessem quadradinhos a que vissem telenovelas, até porque a banda desenhada é um excelente veículo de aprendizagem do mundo, ao contrário do que muita gente pensa e diz. Uma vez, em conversa com o Fernando Pinto do Amaral, hoje a dirigir o Plano Nacional de Leitura, chegámos inclusivamente à conclusão de que muito do francês que sabíamos o aprendêramos nos livros maravilhosos do Tintin, do Astérix e de muitas outras BD que, ao tempo, não estavam traduzidas (ou talvez nós nos recusássemos a esperar pela tradução). É pena que hoje, apesar das reedições destes clássicos, muita gente não faça a mais pequena ideia da sua profundidade e ache que são apenas livros para meninos preguiçosos que não gostam de ler...
Falaram-me há uns dias de um estudo que prova que a maioria das pessoas que compram e lêem livros não tem a mais pálida ideia da editora que os deu à estampa. Imagino que os leitores deste blogue sejam excepção, mas é bem possível que muitos dos meus amigos leitores – de outras profissões e, portanto, alheios às lides editoriais – não saibam efectivamente quem publica os livros que andam a ler (mesmo quando sou eu a editora). Poder-se-ia, pois, pensar que a chancela é coisa secundária e que tanto faz que um romance seja publicado aqui ou acolá. Mas não é bem assim. Estou na LeYa, como sabem, para publicar novos autores portugueses e, como já me disseram, «distribuir jogo», consoante os originais sejam mais populares, comerciais ou literários. E estou a aprender que para os autores, em primeiro lugar, a chancela não é mesmo nada indiferente e marca, por assim dizer, a dose de literatura de cada livro – e, queiramos ou não, a sua qualidade. Mas também já percebi que a crítica dedica uma atenção completamente diferente a um livro que traga determinado selo editorial e quase o ignora se o selo é da editora x ou y, que associa imediatamente a livros de não intelectuais. Por outro lado, uma equipa comercial formada para vender autores literários não vende necessariamente bem um thriller ou um romance mais leve, até porque está habituada a trabalhar pontos de venda distintos daquela que comercializa livros do género com uma perna às costas. Distribuir jogo implica, assim, muita ponderação e ginástica em busca do casamento perfeito entre livro e chancela. Mesmo que depois, como disse, a maioria dos leitores não ligue nenhuma a isso.
Há uns tempos, escrevi um post sobre a falta que me iam fazer num futuro não muito longínquo as presenças activas dos editores com quem fui aprendendo ao longo dos anos; e, na semana seguinte, um deles teve de ir desentupir uma carótida de urgência e outro abandonou na LeYa a chancela que dirigia há mais de vinte anos. Alguém me disse que esse meu post tinha qualquer coisa de premonitório e, se eu acreditasse em premonições, passaria a ter mais cuidado com aquilo que escrevo. Mas não acredito – e encontrei durante a vida um livro excepcional de um cientista – Carl Sagan – que desmistificava, entre outras superstições e crenças, os sonhos premonitórios, dizendo que basta fazer uma estatística sobre a quantidade de vezes que sonhamos coisas que não acontecem para ficarmos convencidos de que, quando acontecem, não estamos senão perante uma coincidência. A obra, recentemente reeditada, intitula-se O Cérebro de Broca, vindo este Broca do nome do homem que terá identificado a área do cérebro que aloja a capacidade de articular o pensamento com o discurso (deve ser mais complicado do que isto, mas corrijam-me os especialistas nestas coisas) e explica de forma acessível (como era usual em Sagan) as muitas fraudes ou falsidades bem construídas que, ao longo do tempo, convenceram milhões de ingénuos em todo o mundo. Feito de pequenos capítulos, aquele que mais me deslumbrou foi o que se debruçava sobre as experiências próximas da morte e os relatos dos que passam por isso e contam que viram uma luz branca e a imagem de Deus – e que o cientista interpreta como uma memória do nascimento (a expulsão do bebé que vem do corpo escuro para a luz e as imagens difusas do médico ou da parteira que o esperam cá fora). Lê-se como um romance e é muito bom para afastar crendices e pôr as coisas no devido lugar.
De há uns anos para cá, tenho assistido a uma mudança muito curiosa em Portugal: os jovens mais cultos e interessantes com quem me tenho cruzado são, regra geral, alunos de Ciências, e não de Letras, como acontecia no meu tempo, em que a gente mais ilustrada e profunda vinha sobretudo das Literaturas e da Filosofia. Talvez as médias requeridas para licenciaturas em Medicina, Arquitectura, Economia e outros cursos ditos técnicos sejam bastante mais elevadas do que as exigidas para as Humanidades e isso leve a que esses estudantes leiam mais, estudem mais e desenvolvam um gosto diferente pelo saber. Em todo o caso, é muito gratificante falar hoje com um jovem físico, médico ou biólogo e ouvi-lo acerca de grandes romances, correntes de pensamento, poetas-mitos e escritores marginais com um à-vontade que falta aos que estudam justamente literatura. Aconteceu-me recentemente com um autor cujo romance publicarei no ano que vem (é cedo para falar disso, mas prometo fazê-lo oportunamente) e que, por detrás de uma carreira científica (creio que o conheci em Pisa a fazer um mestrado ou um doutoramento há dois anos), se vê que tem uma cultura literária e artística apreciável e a usa para dar largas ao seu génio e talento incontestáveis (mas estes nasceram de certeza com ele). Não é caso único, tenho recebido mais romances interessantes de gente de ciência, e a Madalena – que trabalha comigo e de quem falei há dias – também se iniciou nos estudos na área científica e só mais tarde emendou a mão. Será que todos aqueles para quem a Matemática é um papão têm, na verdade, medo apenas do que parece difícil?