A Ática publicou recentemente a Antologia de Poemas Portugueses Modernos, organizada por Fernando Pessoa e António Botto em fascículos no ano de 1929, agora prefaciada pelo poeta Eduardo Pitta. Não se estranhe, porém, a inclusão de poesias de alguns dos heterónimos de Pessoa, uma vez que foi Botto, já depois da morte daquele, quem terminou a antologia que viria a ser publicada em forma de livro em 1944. Mas o que é curioso numa obra como esta – para lá do lado pedagógico apontado pelo prefaciador – é verificar que uma boa parte do que ambos os poetas consideravam moderno não chegou até nós; e, embora até hoje se leiam autores como Pascoaes, Camilo Pessanha, Cesário Verde, Guerra Junqueiro ou António Nobre (os dois últimos menos), muitos dos nomes constantes da antologia foram pura e simplesmente esquecidos (António Molarinho, Fausto Guedes Teixeira...) e outros arrumados na categoria de poetas menores, como Júlio Dantas, Afonso Lopes Vieira e Augusto Gil – que ainda faziam parte dos meus livros de leitura da velha instrução primária, mas de que recordo sobretudo poemas muito fáceis de decorar para as festas da escola, como “Balada da Neve” (Batem leve, levemente, / Como quem chama por mim. / Será Chuva? Será Gente? / Gente não é certamente / E a chuva não bate assim.). Quantos, pois, dos poetas do presente serão lembrados e lidos daqui a cinquenta anos?
As agências de viagens vendem férias em muitos paraísos de águas transparentes e recifes de coral, com praias de areias brancas e finas e um sol maravilhoso sempre suspenso de um céu sem nuvens. Mas estes paraísos têm o seu reverso. Há muitos anos, decidi ir passar férias aos míticos mares do Sul e aborreci-me terrivelmente com o mau serviço e o pouco que havia para ver e fazer. E a paisagem natural, embora absolutamente luxuriante e bela, estava vista ao fim de três dias e já não consolava. Sobre umas férias assim, tem David Lodge um romance fenomenal em tom de comédia que se intitula Notícias do Paraíso e mostra bem o inferno em que se podem transformar viagens a destinos ditos de sonho. Mestre da sátira, o escritor britânico não poupa os tansos, como eu, que andam milhares de milhas de avião para sofrerem uma das suas maiores desilusões de sempre...
O ser humano é, por natureza, curioso e acontece frequentemente, numa entrevista a um escritor, inquirir-se sobre a natureza autobiográfica da sua obra. Não interessa muito, na verdade, se o que lemos tem que ver com a vida do autor – e sabermos isso não muda muito o que sentimos com a leitura. No tempo em que eu era estudante universitária, caía-se até no exagero de não permitir uma análise da obra que recorresse à biografia do escritor, valorizando-se as interpretações formais e olhando-se o texto como entidade independente do seu criador. Mesmo assim, tenho a certeza de que, se Melville não tivesse trabalhado a bordo de uma baleeira, não teria escrito Moby Dick; que Primo Levi, não tendo passado o que passou em Auschwitz, nunca teria produzido uma obra como Se Isto É Um Homem; e ainda que o Dom Quixote – que é provavelmente o primeiro romance moderno – nunca seria o que é se Cervantes não tivesse tido a vida aventurosa que teve e que vale a pena conhecer em pormenor. Percebo que a obra não tenha de ser vista apenas como um reflexo da vida, mas, na maioria dos casos, se a vida não tivesse sido fascinante, ou horrível, os livros teriam sido seguramente diferentes.
Embora muita gente escreva e publique livros, continuo a pensar que o talento é a excepção, e não a regra. E, apesar de nem todos os livros que publico serem de autores inegavelmente talentosos, o que procuro é a excepção, o texto que há-de, como dizia o editor Michael Krüger de quem falei há dias, sobreviver ao autor. Hoje lemos ainda Kafka e Pessoa – que, na sua época, estavam talvez demasiado à frente para poderem ser entendidos... Mas também há os que publicam livros e estão, de certo modo, atrás do seu tempo. Contaram-me há uns dias que uma apresentadora de televisão com romances publicados perguntou a um senhor no seu programa qual era a capital da China. Quando este lhe respondeu Hong Kong (o que já de si é grave), ela afirmou logo a seguir: «Eu disse China, não disse Japão!» Foi, porém, na televisão que ouvi uma frase que só podia vir de um escritor. Numa série de documentários que a Maria João Guardão filmou em África, um deles foi dedicado ao meu autor-ministro caboverdiano Mário Lúcio Sousa, a quem pediram que regressasse à casa do Tarrafal onde tinha nascido. Chegando lá, reparou que esta se encontrava de novo ocupada e disse: «Ainda bem: uma casa de porta fechada é a morte de véspera.» Não se é escritor por acaso.
Confesso que ando um bocado deprimida com a situação que atravessamos. Custa-me que tenhamos o FMI portas adentro (presumivelmente por dez anos, o que é uma vergonha) e que tenha sido possível chegarmos a este ponto. E custou-me que um capitão de Abril dissesse numa entrevista que, se soubesse que o futuro era assim, não teria lutado pela democracia. Não sei exactamente o que falhou, mas tenho a convicção de que, entre outras coisas, os responsáveis pela educação não aproveitaram a liberdade senão para, de cada vez que mudava o partido do Governo, fazer tábua rasa de tudo o que os seus oponentes haviam feito, bem ou mal. E que, por isso, há gerações que fizeram quase toda a escolaridade num caos de mudanças que em nada contribuiu para que se lesse e escrevesse melhor em Portugal. Quando ouço alguns políticos falarem, pergunto-me se já terão lido um livro inteiro, de tal forma é pobre o seu discurso. Uma vez, no Dia Mundial do Livro, entrevistaram num programa de rádio vários políticos, inquirindo-os sobre o último livro que tinham lido. Muitos responderam Os Maias – e fiquei a pensar se ainda teria sido na Escola Secundária... Como dizia Padre António Vieira: «Quem não lê, não quer saber; quem não quer saber, quer errar.»
Conhecem-se mal os editores de outros países, mas muitos têm fama internacional e construíram catálogos e editoras que fizeram ou estão a fazer história. Embora nunca tenha tido grandes relações com editores de língua alemã, sempre ouvi falar de Michael Krüger, poeta, romancista e editor da Hanser, uma das editoras mais literárias em toda a Europa. Num dos seus poemas, sobre a memória, Krüger diz: «Às vezes, a infância manda-me postais.» Recentemente, li uma entrevista sua e fiquei tocada por este verso e muito do que ali afirmava. Entre outras coisas, que o texto tem vida própria, na medida em que pode ser lido de formas completamente distintas por gente culta, inteligente, burra e ignorante, e pelo facto de os livros durarem para além da vida do autor, com o qual se relacionam apenas porque o seu nome figura na capa. Acrescenta que, como organismos vivos que são, não podemos deixá-los morrer – e que os editores são os únicos que podem velar pela sua vida depois da morte do autor. Mais adiante, depois de confessar nunca publicar um livro com o qual nada aprenda, remata: «A vida de um ser humano é demasiado curta e, por isso, devíamos ler os bons livros que existem.» Confesso que às vezes sinto o mesmo.
Humilhação é o título do último livro de Philip Roth publicado em Portugal (na verdade, o seu penúltimo e trigésimo livro). Ainda não o li, mas, do que conheço da obra do autor e de tudo aquilo que li na imprensa e na Internet sobre o romance, não hesito em aconselhá-lo sem reservas. Depois de cinquenta anos a escrever e com 78 anos feitos, Roth – que confessou numa entrevista que agora prefere escrever a marchar como forma de luta – já merecia o Nobel, a par de outros grandes da literatura internacional, como Kundera, que acaba de ver a sua obra publicada na prestigiada Pléiade (e é também um feroz candidato). Repare-se, porém, que, apesar de trinta e um livros publicados, o grande senhor norte-americano não começou demasiado cedo, deixando-se amadurecer antes de se estrear, o que é um óptimo conselho contra a pressa de muitos principiantes que, ainda na Escola Secundária, já enviam livros às editoras. Só não lhes dizemos «Cresça e apareça» porque seria mesmo uma humilhação...
A edição tem, como qualquer outro negócio, um lado oportunista. Ouvem-se os factos do tempo, ausculta-se a temperatura dos desejos e produzem-se livros que se crêem necessários ou oportunos – e darão muito dinheiro a ganhar a quem os publica. Foi assim com tudo o que foi saindo sobre os dramas da Casa Pia, com o livro póstumo de António Feio e com muitos outros sobre temas escaldantes num determinado período. Li recentemente que a escritora J. K. Rowling, autora do famosíssimo Harry Potter, se prepara agora para «ajudar» os pais de Maddie na redacção de uma obra, cujas vendas contribuirão para procurar a menina desaparecida. Não consigo descortinar, porém, quem mais lucrará com isso – se a escritora, que há-de fazer vender milhares de livros e não creio que ofereça a totalidade dos seus direitos, se os pais, que têm nela um nome suficientemente forte e mediático para garantir receitas espectaculares, agora que, ao que parece, se lhes acabou o fundo que tinham para tentar encontrar a filha. O que sei é que o assunto está longe de se ter esgotado e o livro vai ser certamente um grande sucesso no Reino Unido… e em toda a parte.
Num ano de crise, em que não podemos simplesmente comprar todos os livros que gostaríamos de ler, aí está uma belíssima ideia conjunta da Assírio & Alvim e da FNAC para nos pôr a par da poesia de um ano inteiro. Chama-se Resumo – A Poesia em 2010 e o título é elucidativo. Trata-se de um apanhado dos livros e autores publicados no ano passado, dos quais são escolhidos por quatro poetas – José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas – alguns poemas que nos fazem crescer água na boca e nos consolam se não pudermos ler a obra inteira. Por outro lado, nem sempre é fácil encontrar nas livrarias volumes e revistas de poesia, sobretudo quando as editoras são pequeninas, e esta é uma forma simpática de chegarmos a poetas que se calhar não leríamos nunca. Além disso, as receitas deste Resumo revertem para uma ONG, o que é ainda melhor. E mais: a empresa promete repetir-se anualmente. Parabéns, pois, pela excelente lembrança.