Quando Portugal foi o país convidado da Feira Internacional do Livro de Frankfurt, em 1997, nos últimos dois dias de feira puseram-se no chão do stand pilhas de revistas, catálogos e outros materiais para que os levasse quem por ali passasse e quisesse, pois mais caro ficaria trazê-los de volta ao País. Todavia, a agente alemã que trabalhava connosco na iniciativa alertou para o facto de os alemães desconfiarem do que é oferecido. Ignoro se isto é verdade e se outros povos pensarão da mesma maneira, mas li recentemente um artigo que me fez pensar que, se as sessões com escritores fossem pagas, talvez a intrínseca promessa de qualidade levasse mais gente a assistir. Preocupados com as espantosas vendas de livros electrónicos, os livreiros norte-americanos lembraram-se de que os e-books têm o handicap de não trazer autógrafo e que, mesmo que o venham a trazer, não passará nunca de uma assinatura digital. Vai daí estão a pensar (com muitos adeptos a favor) cobrar bilhete ao público (cerca de 15 Euros) nas sessões com autores, bilhete que pode ser trocado ou descontado no preço do livro que o escritor assinará in loco, ou simplesmente funcionar como garantia de qualidade da sua prestação. A ser verdade o que dizia a agente alemã, os seus conterrâneos ficarão mais confiantes a partir de agora.
Há um jornalista que nunca perde uma oportunidade para me atacar directa ou indirectamente, mas fá-lo tantas vezes que acabo por pensar que me dá alguma importância. O mesmo acontece com um dos anónimos que comenta este blogue: não gosta de mim, mas, afinal, vem cá ler-me tantas vezes que, pelo menos, lhe devo essa atenção. O problema está noutro tipo de pessoas, que são muito simpáticas connosco, mas fazem um trabalho lastimável, mesmo depois de as termos tentado ajudar. Um dia destes, num artigo sobre os novos escritores para o qual dei bastantes informações por telefone, o escritor Gonçalo M. Tavares apareceu como licenciado em Matemática (que não é), o último romance de David Machado era, por acaso, um livro de contos, a apresentação de um romance que ocorre hoje realizava-se durante o fim-de-semana passado e, apesar de ali se escrever «quem não conhece o Irmão Lúcia?», referindo-se a Pedro Vieira, a fotografia na página era, na verdade, de outro Pedro Vieira, que nem sequer pertence ao mundo da literatura. No dia seguinte, mais uma: numa crítica a um livro que acabo de publicar, eram atribuídas três estrelas, mas o texto revelava bem que o seu autor não lera mais do que dois capítulos e a contracapa, que praticamente parafraseava, pois falava sempre de duas personagens (nunca chegou a descobrir a terceira) e, sendo o livro sobre escritores conhecidos (muito conhecidos), nem por um instante se deteve a falar deles. Portanto: ou não passou da página 15, ou nunca percebeu de quem se estava a falar e, nesse caso, também não deveria poder escrever sobre a literatura. Enfim, prefiro que se irritem comigo.
Amanhã estarei em Coimbra para o lançamento do romance No Meu Peito não Cabem Pássaros, de Nuno Camarneiro. Conheci o autor em Itália há uns anos, onde estava a fazer um doutoramento na área da Ciência, e na altura não tinha a menor ideia de que escrevesse. E, contudo, este é seguramente um dos melhores primeiros romances que vou dar à estampa na minha carreira – e também um dos mais bonitos, porque Nuno Camarneiro tem um pendor lírico absolutamente empático e uma sensibilidade e cultura literárias raras em alguém da sua idade e com a sua formação. Em torno de três grandes autores (dois deles mais evidentes e um mais escuso, porque presente apenas através de uma das suas personagens), este é um romance sobre três vidas distintas e, apesar de tudo, afins, mas, mais do que isso, uma obra belíssima sobre a própria criação literária. valter hugo mãe apresenta o livro.
Nos primórdios das Correntes d’Escritas, foi convidado um autor argentino, Leopoldo Brizuela, cujo romance – Inglaterra, Uma Fábula – lancei então na Temas e Debates. Conhecera-o um ano antes em Lisboa, quando o seu agente, depois de eu fazer uma oferta pelos direitos do livro, me propôs que fosse ao seu encontro, já que ele estava por cá a fazer pesquisa para um segundo romance. Descobri que o Leo era um apaixonado por Portugal e pelo fado, sabendo dezenas de letras e melodias de cor. Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, consegui que ele regressasse no ano seguinte para o lançamento e ficasse cerca de dois meses para terminar a sua investigação. Ficámos irmãos e, na altura, levei-o aos fados à Parreirinha de Alfama com o meu pai, que era um boémio amigo de Argentina Santos, e tivemos uma noite inesquecível. Pouco depois, porém, o meu pai morreu e o pai do Leo também. Tornámo-nos, talvez por isso, na nossa orfandade, ainda mais irmãos do que éramos. Mas o romance do mano argentino sobre Portugal tardou e, por muito tempo, cheguei a duvidar de que alguma vez fosse publicado. Graças a Deus, enganei-me: porque Lisboa, Um Melodrama acaba de sair e fala da Lisboa durante a Segunda Guerra, como palco de espiões, resistentes, fadistas, refugiados, homens-de-mão do regime e, claro, os suspeitos do costume. O mais bonito de tudo, para mim, é que na dedicatória figura, entre outros, o nome do meu pai como parceiro de farras e noitadas. Irmãos para sempre, Leo.
Como há tempos aqui escrevi, citando o editor alemão Michael Krüger, os livros são organismos vivos e independentes do autor, na medida em que lhe sobrevivem por muitos e bons anos. Mas, após a morte de quem os pôs no mundo, precisam de alguém que tome conta deles e é, por isso, determinante o papel dos editores que vão ao «cemitério» onde se encontram e procuram de ora em quando ressuscitá-los. Vem isto a propósito de a editora Bizâncio ter recentemente tirado da morte um livro que fez furor na minha adolescência. Intitula-se Os Filhos da Droga e é assinado por dois jornalistas que fizeram uma longa entrevista à alemã Christiane F., uma jovem toxicodependente. Trata-se de um testemunho impressionante da adolescente, que começou pelas drogas leves como o haxixe e depois passou para a heroína, o que a conduziu a uma vida de tráfico e prostituição e a levou inclusivamente à cadeia. Nos anos setenta e oitenta, o livro vendeu como pãezinhos quentes, preocupados que andavam os pais com os casos de toxicodependência que, até então, eram não muito frequentes em Portugal mas começavam a aparecer sobretudo nas melhores famílias. Contudo, o assunto continua actual – e a lição de vida de Christiane F. pode ainda desmotivar alguns adolescentes de entrarem no mundo da droga pela violência e o negrume do seu relato.
Leio nos jornais que Peyo, o autor dos Schtroumpfs (ou Smurfs, ou Estrumpfes, como agora se chamam em português) foi, como já acontecera ao criador de Tintim, recentemente acusado de racismo e anti-semitismo. Hergé, de resto, também já tinha sido acusado de misoginia, tendo como única personagem feminina nos seus livros uma cantora de ópera completamente histérica. Este herói apaixonante merecer-me-á um dia destes um post independente por causa de uma tese em que pus os olhos há uns tempos, mas as acusações que li no jornal lembraram-me um episódio de infância tragicómico que resolvi partilhar neste blogue. Era eu miúda em pleno Estado Novo, ainda com Salazar ao leme, e ofereciam frequentemente às meninas os famosos livros da Anita, que tinham desenhos muito perfeitinhos e eram pretensamente educativos. Entre eles, havia um que supostamente fomentava as relações inter-raciais (que raça de coisa isso das raças…), colocando em cena na vida da dócil Anita uma amiga pretinha de olhos enormes que ela convidava para um piquenique no campo. Sinal dos tempos, na ilustração em que ambas se dirigiam ao local da patuscada, a Anita caminhava ligeira e saltitante por uma alameda de mãos abanar, mas a amiga seguia-a bastante atrás, carregando pesadamente os cestos com a merenda... Imagino que, se o livro ainda se publica, hoje as duas partilhem a carga…
Fui recentemente ao Porto para o lançamento do último livro de Mário Cláudio, no qual encontrei o jornalista Valdemar Cruz. Gostei de o rever e estivemos bastante tempo à conversa sobre um assunto que tem andado nas páginas dos jornais. Com José Pedro Castanheira, Valdemar Cruz foi autor de A Filha Rebelde, livro que editei há vários anos e que, abreviando, relata a rebeldia de Annie Silva Pais, filha do então director da PIDE, que fugiu para Cuba e se apaixonou por Che Guevara. O livro vendeu-se bem e não causou quaisquer perturbações de maior na época. Porém, mais recentemente, Margarida Fonseca Santos escreveu uma peça de teatro a partir desse texto e, de repente, caiu o Carmo e a Trindade! Os sobrinhos do falecido director da PIDE não gostaram e acusam-na de manchar o «bom» nome do tio que, ao que se sabe, até torturou muita gente, mas para a família continua um santo. A indemnização pedida à autora da peça é, de resto, tão miserável que ou os sobrinhos já sabem que vão perder a causa e querem pagar o menos possível pelas custas do processo, ou realmente a honra do falecido não vale mesmo mais do que isso – e nada vale, para sermos sinceros. Mas lá que o caso chegou aos tribunais e ninguém sabe como vai ser o desfecho isso não se pode negar – e parece incrível que, trinta e sete anos passados da queda do antigo regime, ainda haja quem peça segredo do horror ou, pior, que se faça vénia a um fascista. E ainda mais estranho é que aos sobrinhos o livro tenha passado ao lado, o que, em certa medida, deve querer dizer que as livrarias são lugares aonde nunca vão. Leia-se, pois, A Filha Rebelde para dar razão e apoio à dramaturga, que tem uma página no Facebook onde nos podemos indignar à vontade sem nos porem processos.
Estávamos com problemas de espaço para os livros – o que, numa casa de editores, é cíclico e há-de repetir-se muitas vezes ao longo da nossa vida. E eis que o Manel, meio à socapa, mandou fazer mais uma estante, transformando o nosso corredor numa autêntica biblioteca de chão a tecto. Mas como, mesmo assim, já não nos sobram paredes vazias, acordámos que o melhor seria juntar os trapinhos (neste caso, os livros) e escoar aqueles que fossem repetidos (com o cuidado de verificar dedicatórias ou anotações). Aproveitámos os feriados e o Manel começou com a poesia, que parecia mais fácil. E, porém, nem os dias de lazer foram suficientes para a tarefa, nem os livros repetidos são assim tantos como pensávamos, excepto no caso de dois ou três poetas: parece que o Manel tem poesia sobretudo até determinada década e eu a partir dessa mesma década... Enfim, quando chegarmos à prosa, talvez as nossas afinidades se tornem mais evidentes e arranjemos mais umas prateleiras livres para o que ainda há-de vir.
Logo mais à tarde, pelas 18h30, irei estar no Porto, no auditório da Ordem dos Médicos, para o lançamento do último livro de Mário Cláudio, Tiago Veiga – Uma Biografia. É obra de peso, não só pelas suas 800 páginas, mas porque Mário Cláudio é um digno sucessor de Camilo, já aqui o disse, e esta sua biografia de um poeta quase desconhecido (se não fosse Mário Cláudio já ter publicado alguns dos seus livros, era mesmo desconhecido) é assim uma espécie de cereja no bolo da vida literária do romancista. Se estiverem por lá, apareçam e não se arrependerão. Gonçalo M. Tavares faz a apresentação.