Amanhã começo as férias de Verão, embora só parta no domingo. Entre outras coisas, como fazer as malas, depilar as pernas ou comprar bronzeador, tirarei este primeiro dia de lazer para escolher os livros que me acompanharão. Tenho imensas leituras em atraso, livros que tive de interromper, livros que comprei e nem sequer consegui abrir, clássicos que não quero morrer sem ter experimentado. No ano passado, o saldo foi muito positivo, recordo-me dos livros de Andrés Neumann e Herta Müller, entre outros, de que aqui tive oportunidade de falar mais detalhadamente. Este ano ainda estou bastante indecisa, pelo que prefiro só falar das leituras no regresso das Horas Extraordinárias. Sim, perceberam bem: férias são férias e o repouso implica também fugir à rotina deste blogue. De resto, a maioria dos meus leitores, julgo eu, estarão também longe no mês de Agosto, a descansar, a apanhar sol e a ler outras coisas. E fazem bem. Voltamos a encontrar-nos em Setembro, se Deus quiser.
Um homem mudou de religião várias vezes ao longo da vida, pois pedia incessantemente ao deus de cada uma delas que o fizesse ganhar a lotaria, mas, como isso não acontecia, transferia-se para um credo diferente com a esperança de que a respectiva divindade lhe desse ouvidos. E reza a anedota que Deus (que, pelos vistos, era sempre o mesmo), fartinho de o ouvir, mandou um anjo ir ter com ele e dizer-lhe: «Deus já percebeu exactamente o que desejas, mas confessa que não pode fazer nada se não comprares pelo menos uma cautela.» Pois é, eu não costumo comprar lotaria (nem pedir a Deus para a ganhar), mas faço parte desse imenso grupo de pessoas que joga semanalmente no Euromilhões com a secreta esperança de um dia ganhar um dinheirinho que lhe permita ser independente e decidir o que fazer da vida. O Manel também faz parte do grupo e sei que, se um dia fosse bafejado pela sorte grande, faria uma editora só dele, na qual só publicaria livros de que gostasse muito, mesmo que não se vendessem por aí além. Eu, quando levada pelo mesmo delírio, concebo erguer uma fundação para a literatura, que educasse as crianças para a leitura inteligente e apoiasse escritores em dificuldades por todo o mundo. Claro que pode ser mais nobre auxiliar a investigação científica, o tratamento de doenças, a erradicação da fome. Mas uma vida longa sem bons livros é demasiado assustadora para me tirar do meu caminho.
O País vive tempos extremamente difíceis e vai de férias ainda relativamente anestesiado, pronto para queimar os últimos cartuchos antes do choque frontal que receberá no regresso e se fará sentir sobretudo no último trimestre do ano, com a «rapina» de parte do subsídio de Natal. Para os livros, a situação é má – já se diz que fecham livrarias icónicas, que as distribuidoras começam a não pagar às editoras e que as editoras mais pequenas não terão como subsistir (e isto sem falar no aumento do IVA no livro, do qual, se calhar, não nos livramos). Li algures que o segmento de mercado mais afectado será o dos leitores ocasionais, que vão ao hipermercado comprar bens de primeira necessidade e antes adquiriam um livro por impulso, mas, com a crise, já não o poderão fazer. E tinha, apesar de tudo, alguma fé nos que têm hábitos de leitura enraizados e que, quiçá fazendo parte da classe menos afectada, continuariam a frequentar livrarias e a não resistir a uma ou outra novidade. Parece, porém, que até esses estão a criar resistência aos gastos desnecessários, conscientes de que têm lá em casa imensos livros que ainda não leram e que lhes devem dar agora, com toda a justeza, uma oportunidade. Numa conjuntura como a que vivemos, também creio que qualquer leitor que só possa comprar um livro apostará mais depressa num autor consagrado – retorno garantido – do que num principiante. Ora, dedicando-me eu há doze anos a lançar novos escritores, nunca fui de férias tão preocupada. Com os meus autores, com o meu emprego, com o que o futuro me reserva.
Vem este post a propósito de um comentário muito acertado feito neste blogue na semana passada, no qual os editores eram responsabilizados pela fraca qualidade de alguns livros que andam por aí. Luís Filipe Cristóvão – escritor e livreiro (com uma livraria belíssima em Torres Vedras) – tem obviamente razão em apontar-nos o dedo, e nem todos os dislates em forma de livro que por aí circulam são apenas obra de revisores descuidados. Embora esse não fosse o principal objectivo do meu post (e, sim, o facto de se atribuírem prémios de monta a livros crivados de erros), a verdade é que os editores são provavelmente os grandes responsáveis pela quantidade de livros maus e medíocres que hoje estão à venda, muitos deles de gente celebrizada por qualquer outra actividade que não a escrita. Às vezes, pergunto-me como foi que isto começou, quando foi que se decidiu ignorar a qualidade do texto em detrimento dos resultados financeiros e, através da publicação de obras às vezes tão rasteiras, trazer para a leitura gente que nunca tinha lido um livro mas que, a partir destes péssimos exemplos, nunca conseguirá realizar uma experiência de leitura que seja, ao mesmo tempo, formadora, enriquecedora e agradável. Mas também penso que os editores nem sempre pactuaram simplesmente com um sistema em que a receita é mais importante do que os valores abstractos e que, por vezes, o que tentaram – quiçá até com boas intenções – foi disponibilizar leituras mais apropriadas a uma população leitora que apareceu com o aumento da escolaridade obrigatória, que tem tanto direito a ler como a classe intelectual e que, por mais que queiramos, nunca seria capaz de compreender e fruir os chamados autores literários. Pescadinha de rabo na boca, enfim.
Ainda hoje me lembro de ter tido um pesadelo no dia em que comecei L’étoile mystèrieuse, um dos primeiros livros de Tintim que li na vida. A aranha que fizera a sua teia na ponta do telescópio e, gigantesca, parecia fazer parte do planeta observado, abraçando-o, assustou-me. Era miúda quando comecei a ler o Tintim e os livros eram em francês, de capa dura e do meu irmão mais velho (que ainda os tem). Na altura, não tinha idade para me aperceber da dimensão dessa fascinante personagem (um miúdo de calções seguido por uma cadelinha, mas afinal já repórter e a investigar matéria de peso, portanto não miúdo, mas afinal sem namorada ou mulher, o que era estranho, mas...) nem das implicações políticas das aventuras de que era protagonista. Muito mais tarde, depois de reler várias vezes os livros, encontrei um ensaio esclarecedor, ainda que às vezes demasiado imaginativo, sobre Tintim, escrito como tese de doutoramento em psicanálise por um francês chamado Serge Tisseron e intitulado muito justamente Tintim no Psicanalista. (A epígrafe desse livro é, de resto, o título deste post e foi, como todos sabem, dita por Hergé, o criador da personagem, numa entrevista.) Nesta tese, o nosso querido repórter do caracol afastado da testa é psicanalisado e, entre outras coisas, descobrimos que o Professor Tournesol desempenha o papel de sua mãe e o Capitão Haddock de seu pai e que, afinal, a infância de Hergé tem muito que ver com uma certa orfandade da sua personagem. Bastante original.
Quando eu era pequena, os romances policiais vendiam-se em edições de bolso muito baratas com mau papel e letra pequena, como se não merecessem melhor. Apesar disso, a par da literatura pura e dura, eram lidos por muita gente culta e interessante, e conheço grandes vultos da nossa praça (escritores e tudo) que paparam a colecção Vampiro ao ritmo de um título por dia; talvez essas leituras estivessem, porém, ligadas ao «mero» prazer dos tempos livres e as outras a um processo de formação e aprendizagem que obrigava às boas encadernações, aos formatos mais sólidos e a uma cómoda mise-en-page. Hoje, pelo contrário, principalmente depois do sucesso de Stieg Larsson, os policiais estão a ganhar um espaço determinante – e já não é assim tão raro os suplementos culturais de jornais e revistas de grande tiragem dedicarem várias páginas a obras do género, com entrevista aos autores, tantas vezes convidados pelas suas editoras a vir a Portugal por ocasião do lançamento. Confesso que não sou uma apreciadora, e muito menos uma especialista, em literatura policial, mas não seriam os autores publicados na velhinha Vampiro mais literariamente interessantes do que estes que hoje proliferam como cogumelos? Ou será exactamente por isso, por valorizarem a intriga em detrimento da escrita literária, que têm mais público, mais vendas e, logo, direito a uma edição melhor?
Em Fevereiro publiquei um estupendo romance de estreia, Os Pretos de Pousaflores, assinado pela angolana Aida Gomes. Nele, relata-se o regresso, na sequência da guerra civil de Angola, de um português (com três filhos mulatos pela mão) à aldeia onde nasceu e que abandonou há quase quarenta anos. Aida Gomes escolheu o nome de Pousaflores sobretudo por lhe parecer bonito (e é), mas a vida tem destas coisas e existe mesmo uma aldeia chamada Pousaflores no concelho de Ansião que – nada é por acaso – ela descobriu ser também o concelho donde o próprio pai era natural. O Presidente da Câmara pôs os olhos no livro há uns meses e contactou-a; na altura, Aida Gomes estava na Guiné, pois é funcionária nas Nações Unidas, mas prometeu uma sessão assim que lhe fosse possível voltar a Portugal. Pois bem, vai ser hoje às 21h30, no Auditório Municipal de Ansião, com apresentação da jornalista Sara Figueiredo Costa. Teremos Pousaflores no horizonte. Se estiverem por perto, apareçam!
Todas as línguas têm regras e estas fizeram-se para ser cumpridas. Mesmo assim, um certo incumprimento pode ser visto como marca estilística de determinado autor, como o comprovam a pontuação nos livros de Saramago ou a ausência de maiúsculas em valter hugo mãe. Acredito que ainda seja uma opção consciente de António Lobo Antunes a supressão do «de» antes do «que» em expressões que o exigiriam (como «ter medo», «aperceber-se» ou «estar à espera»), uma vez que as suas obras são todas fixadas por Maria Alzira Seixo e não a vejo a perdoar esta falta (chamemos-lhe assim) por sua alta recreação, estando, pois, convencida de que o autor simplesmente não aprecia o «de» e exerceu a sua soberania. De qualquer modo, já li livros muito literários – alguns inclusivamente galardoados com prémios importantes – que não entendo como foram publicados e distinguidos com erros tão graves como o desconhecimento do verbo «posar» (as personagens «pousavam» todas para as fotografias ao longo do romance), a ortografia errada nas palavras inglesas («Okey» por «Okay» repetia-se até à exaustão) ou a sistemática confusão entre os verbos «vir» e «ver», que, num caso, produzia uma frase bastante sugestiva que nunca esqueci: «[...] bares onde se vêm bailarinas grávidas com batons escuros.» Neste romance, penso que não se tratou de soberania: já é grave que um autor não saiba coisas tão elementares, mas a pessoa que assina a revisão bem podia devolver o dinheiro que recebeu pelo serviço…
Os autores quase nunca abdicam de um lançamento público com convidados, em que, por regra, alguém conhecido, ou reconhecido no meio das letras, apresenta o livro em traços gerais. É sempre uma incógnita, claro, porque assistir a estas apresentações pode tornar-se extremamente útil e interessante, mas também poderosamente chato e até uma completa frustração. Recentemente, estive numa apresentação ímpar, na qual o orador segurou com inteligência e humor uma sala cheia de gente e nunca disse de mais nem de menos sobre a obra, aguçando o apetite dos presentes para a sua leitura; mas logo uns dez dias depois houve outro lançamento que me deixou de cabelos em pé, já que o apresentador gastou o tempo todo a falar de si próprio e dos seus livros em lugar de falar da obra que estava a ser lançada e brindou o público com uma série de graçolas de gosto duvidoso que, por mim, bem podia ter evitado (malgré tout, o autor achou que correu normalmente, e é isso que importa). Mesmo assim, não posso deixar de recordar uma apresentação de há muitos anos, ainda no bar Botequim, de Natália Correia, em que o professor convidado a pronunciar-se sobre a obra de um autor espanhol com mau feitio leu uma peça de crítica universitária durante uns bons quarenta minutos sem fazer pausas; quando terminou, não só o público estava a morrer de sono (era à noite) como o autor do romance logo atirou: «Céus, não tinha ideia de que o meu livro fosse assim tão chato.»
Sou da geração que viu aparecer e aplaudiu entusiasticamente Miguel Esteves Cardoso, que o leu nos jornais com um prazer imenso e reconheceu nele um estilo completamente novo de escrever e cronicar. E, embora ele ainda me delicie de vez em quando com a sua prosa (os textos que fez para o Público sobre a doença de Maria João, sua mulher, eram de uma beleza avassaladora), acho-o hoje bem mais acomodado, escrevendo sobretudo sobre o que come e bebe na zona de Colares sem que isso se torne especialmente interessante. Mas houve um tempo em que era de uma irreverência contagiante e lembro-me de uma história a este propósito elucidativa. Nesse ano – devíamos estar no final dos 80 – ganhou o prémio de romance da APE o livro Fora de Horas, de Paulo Castilho (que era também um texto bastante diferente do que se fazia então na literatura portuguesa). Ora, na altura, MEC dirigia a revista K, onde escrevia, entre outros assuntos, sobre livros; mas, ao contrário do júri desse prémio, não gostou do dito romance nem percebeu porque merecia tal distinção. Vai daí, resolveu escrever um artigo demolidor sobre o livro e não achou nada melhor do que intitulá-lo “Fora de Merdas”...