É quando se tem tempo livre que se deve ir à prateleira recuperar um clássico que estava a pedir uma oportunidade há séculos – e foi o que fiz nas férias, levando comigo o principesco romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa, que serviu de base a um filme de Visconti memorável. Enquanto o lia, não conseguia, de resto, afastar das personagens os rostos de Burt Lancaster, Claudia Cardinale e Alain Delon, mas isso não me impediu de apreciar cada pormenor de uma prosa muito cuidada, de um bom gosto inexcedível, cheia de ironia e sagacidade, às vezes muito cruel na análise dos factos e na descrição das pessoas. Passado na Sicília nos tempos da reunificação italiana, O Leopardo conta a história do Príncipe de Salina, Don Fabrizio, e da sua família (sobretudo o seu amado sobrinho, Tancredi) enquanto as convulsões políticas vão influenciando a sua vida de aristocratas e a vida dos burgueses, parecendo inverter os papéis, mas, de certa forma – como vaticina Tancredi –, deixando tudo mais ou menos na mesma. Primoroso também como romance histórico, não abusando de informação mas esclarecendo quanto baste, senti neste livro uma afinidade com alguns romances russos (por exemplo, de Turgeniev) escritos muitos anos antes, sei lá se por terem constituído leituras do autor a ponto de o influenciarem, se por os ambientes e situações aqui descritos pelo príncipe de Lampedusa se situarem, na verdade, na época em que viveram esses russos. A tradução é mesmo muito boa, de José Colaço Barreiros. Para quem aprecia um bom clássico, não falhe este.
Leio tantas coisas más e sofríveis ao longo do ano à procura daquela que fará realmente a diferença que considero ter ganho a sorte grande na escolha do pacote de livros que levei comigo para férias, pois fui acertando título a título (como se de algarismos se tratasse) até ver desenhado o número premiado. Sorte pura, pois os avisos da crítica nem sempre se casam com o nosso gosto pessoal. No monte, uma obra-prima que seria um festim para Almodóvar, se ele gostasse de basear os seus filmes em textos alheios. Rabos de Lagartixa, de Juan Marsé – o autodidacta (julgo que fazia jóias) que se tornou um dos maiores escritores espanhóis contemporâneos –, é notável a vários títulos, entre os quais a composição do protagonista, o genial David, de catorze anos, que adora vestir-se de rapariga e colecciona rabos de lagartixa com vista a curar as hemorróidas do seu amigo Paulino, aprendiz de barbeiro a quem o destino prega bastantes partidas. Passado no mesmo ano em que os Aliados lançaram as bombas atómicas, numa Barcelona refém do racionamento e vítima dos esbirros de Franco, a história – não se assustem – é contada por um feto (o irmão de David a quem este não raro chama rãzinha peluda, girino ou verme nojento e que manda agarrar à placenta quando quer pregar um susto à mãe) e inclui um leque de personagens que se agarram a nós para todo o sempre, entre vivos e fantasmas (sim, também há alguns). Francamente imaginativo, mas sem nunca perder o pé ao que realmente interessa, este romance, publicado originalmente em 2001, ganhou os principais prémios literários de Espanha e um lugar muito especial no meu coração.
Na Universidade de Verão do PSD, António Barreto disse que a Constituição da República Portuguesa devia ser revista (e até falou em referendo!). A afirmação fez correr muita tinta (muita gente afirmou que Barreto perdeu a cabeça e se passou para o lado do poder e quase toda a Esquerda se mostrou indignada). Este não é um blogue sobre política e quero que se saiba desde já que o que direi a seguir nada tem que ver com o que pretendia (ou pretende) o senhor professor. Mas aqui há tempos um instituto estatal lançou um projecto de publicação de uma Constituição Explicada aos Jovens e, entre outras pessoas, fui chamada a trocar por miúdos um dos seus artigos. Pois tenho de ser absolutamente sincera e confessar que a prosa era tão obscura e ambígua que me vi grega para entender e traduzir em linguagem simples e perceptível o conteúdo do dito artigo. Não é deste tipo de revisão que fala António Barreto, evidentemente, mas, se todos os Portugueses se tivessem de pronunciar sobre a Constituição, estou mesmo a ver os equívocos em que meio mundo ia cair...
O Manel costuma dizer que, quando acabar o mundo, os estrangeiros podem vir para Portugal, pois aqui as coisas costumam chegar com alguns anos de atraso. Foi isso que aconteceu com a edição da obra de J. Rentes de Carvalho, escritor português bastante conhecido na Holanda, onde vive, e em Portugal praticamente ignorado até há pouco tempo, quando a Quetzal resolveu começar a dar à estampa a sua obra. E eu, para que conste, estou cheia de ciúmes porque gostava de ter sido eu a fazê-lo, mas, para que também conste, andava na mesma ignorância dos outros (e tinha, ainda por cima, obrigação de estar mais desperta). Enfim, o que importa é que já nos podemos deliciar com os livros de Rentes de Carvalho e acabo de ler o primoroso La Coca, que daria um filme tão bom como Cinema Paraíso misturado com Às Segundas ao Sol e que trabalha a memória num sentido algo proustiano, mas (não me matem) bastante menos chatinho. Na contracapa chamam-lhe um pequeno romance por não chegar às 200 páginas de letra algo miúda, mas é um grande, grande, romance de formação que é imperioso ler. Tomando como ponto de partida uma investigação sobre o tráfico de droga no Minho e na Galiza para um livro ou uma reportagem que o narrador (o autor?) escreverá, este livro tem personagens absolutamente inesquecíveis e riquíssimas quer do ponto de vista humano, quer literariamente, entre velhos contrabandistas, traficantes, «brasileiros» ricos, uma preceptora francesa, um lorde enfiado numa quinta cheia de obras-primas impressionistas e até – a sério – o próprio Picasso. A não perder. E agora, assim haja tempo livre, o autor já não me escapa.
Os livros escolares já seguem todos o novo acordo ortográfico, a maioria dos jornais também, na LeYa as traduções adoptam a nova ortografia, sendo os autores lusófonos ainda os únicos que podem decidir ignorá-la. Há muita coisa nesse acordo com que não concordo, é bom que se diga, mas, como profissional da área do livro, não posso deixar de o ir conhecendo, até porque – estou quase certa – alguns dos autores que publico optarão por segui-lo em breve (sobretudo, aqueles que são professores do Ensino Secundário). Para nos pormos em dia, saiu um livro de três especialistas que é de grande ajuda, pois não só ensina o que mudou, como inclui exercícios para irmos praticando. Se anda perdido, não deixe, pois, de adquirir este Saber Usar a Nova Ortografia, de Edite Estrela, Maria Almira Soares e Maria José Leitão.
Já muito se disse por aí sobre o facto de a crítica literária ter desaparecido dos nossos meios de comunicação, substituída que foi por uma forma mais ligeira de falar dos livros – a que vulgarmente se chama recensão, mas que, frequentemente (sobretudo na imprensa regional), não passa de uma sinopse da obra junto da respectiva capa (e quantas vezes essa sinopse não é a da contracapa do livro, escrita pelo editor, mas escandalosamente assinada pelo jornalista que devia ler o livro para poder opinar, mas não esteve para isso). Mesmo assim, nós, editores e escritores, ficamos consolados quando os livros que publicamos e escrevemos são referidos num jornal ou numa revista, sabendo que, pelo simples facto de preencherem parte de uma página, a sua existência é menos solitária do que na mesa ou na prateleira da livraria. Custou-me, por isso, que o Diário de Notícias tenha acabado («descontinuado» era a palavra usada) tão abruptamente com a revista NS, que saía todos os sábados e tinha duas páginas exclusivamente dedicadas a livros. O seu conteúdo não era profundo, bem entendido, mas, para além de este desaparecimento poder originar mais um lote de desempregados, o que é grave, agora temos menos um sítio para divulgar e partilhar. E sábados, evidentemente, mais pobres.
Acaba de sair o novo romance de Miguel Real, A Guerra dos Mascates, que – no ciclo brasileiro – se situa imediatamente antes de A Voz da Terra (galardoado com o prémio Fernando Namora e finalista do prémio da APE) e não lhe fica nada atrás. Mais romântico do que de costume, a obra recupera algumas personagens já conhecidas dos leitores fiéis deste autor (Julinho Fernandes e Violante Dias) e pretende continuar um romance homónimo de José de Alencar do século XIX, no qual se descreve uma guerra entre as cidades de Olinda e Recife no início de Setecentos, mais concretamente entre os ricos detentores dos engenhos de açúcar (os mazombos) e os comerciantes pobres a quem esses obrigam a pagar avultados impostos (muito actual, parece-me). Mas, entre os intervenientes deste confronto, para além da invenção delirante de um Lula Aparecido da Silva, há personagens absolutamente deliciosas – do mais cândido ao mais maligno – e amor e ódio em partes iguais. Vamos lá ver se é desta que arrecadamos o prémio que ficou para trás.
Há muitos anos, acompanhei a uma sessão da Comunidade de Leitores da Biblioteca de Almada (a propósito de Morreste-me) José Luís Peixoto (de quem então era editora) e assisti à conversa. No final, soube que o livro a tratar na sessão seguinte seria As Velas Ardem até ao Fim e dele me falou entusiasticamente na altura o jornalista José Mário Silva, que ali fora também. Como na altura desconhecia a obra, comprei-a e li-a com bastante prazer, mas, sei lá porquê, nunca mais tinha voltado a Sándor Márai até este ano. Ora, caiu-me nas mãos o fabuloso A Herança de Eszter, uma pequena maravilha que gira em torno de Lajos, um canalha irresistível que regressa, viúvo, ao fim de vinte anos, a casa de Eszter, a mulher que o amou de forma definitiva (tendo recusado outros dois homens) e com cuja irmã ele se casou, depois de ter desbastado o que seria a herança de ambas, à excepção de um anel (embora sobre esse anel muito haja a dizer) e da casa onde Eszter ainda mora com uma velha prima que a ajuda na organização doméstica. E, por muito avisados que estejam, todos neste livro conhecem os próprios limites e o sem-limites que é Lajos e o que ele vem ainda buscar. Surpreendente até à última página, como uma vela que arde mesmo até ao fim, esta é uma daquelas pérolas que não se esquecem, escrita por um senhor que descobri ter-se suicidado (estranhamente) aos 89 anos.
Para quem gosta de thrillers, acção, séries movimentadas e intrigas policiais, já está publicado o segundo volume de uma série que estou a fazer na ASA, cujo autor é Pedro Garcia Rosado, intitulada Não Matarás, de que em Julho do ano passado saiu A Cidade do Medo. Neste novo livro, Vermelho da Cor do Sangue, revisitamos o Verão Quente de 75 e o golpe de 25 de Novembro (data em que, misteriosamente, desaparece em Lisboa um alto quadro soviético cujo passaporte é encontrado no cofre de um banqueiro) e assistimos à intervenção de um grupo de criminosos imigrados em Portugal (alguns ex-KGB) que assaltam casas, traficam jóias, batem bastante e matam por dinheiro e com certa regularidade. Mas o banqueiro (que faz lembrar alguns da nossa praça) é, pelos vistos, pior ainda. Só que, ao contrário dos outros, bebe Barca Velha…
Já aqui disse que, apesar de Agosto em Portugal ser aquele mês em que não acontece praticamente nada, nas minhas férias tomei conhecimento de que a Porto Editora assinara um «protocolo de colaboração» (a expressão não é minha) com a Assírio e Alvim, envolvendo edição e distribuição. Embora a assimilação de editoras independentes por grandes grupos já não seja novidade para ninguém, fiquei surpreendida com a notícia, pois ainda não me esqueci de uma entrevista de Vasco Teixeira (o «patrão» da Porto Editora) ao jornal Público no ano passado em que este dizia que daqui a dez anos não se editariam livros de poesia em Portugal, pois era um género que só vendia trinta ou quarenta exemplares... É bom saber que mudou de opinião entretanto, pois a Assírio e Alvim foi sempre uma editora essencialmente de poesia e a promessa de que manterá total autonomia na escolha do programa faz-me pensar que não deixará de o ser. E, mesmo com algumas reticências, estou disposta a acreditar que este «negócio» pode ser a salvação da Assírio e Alvim (que de outro modo talvez não conseguisse sobreviver) mais do que a sua condenação. O Jornal de Letras, porém, parece não estar tão convencido disso e teve um deslize bastante engraçado ao redigir a notícia na semana passada, avançando que foi assinado entre as duas editoras «um protocolo para as áreas de edição e destruição». Oxalá seja só uma gralha, e não o subconsciente a falar...