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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

31
Jan12

Lixo e Lídia

Maria do Rosário Pedreira

As agências de rating classificam Portugal como lixo, para não dizer outra coisa pior. Bem sabemos que são americanas e que, num momento como este, faz bem aos Estados Unidos desviar as atenções do seu próprio estado calamitoso e cascar todos os dias nos países do Sul da Europa (até a França já começou a comer). Em todo o caso, não é a primeira vez que vejo a palavra «lixo» associada a Portugal. Num ensaio francamente interessante que a escritora Lídia Jorge escreveu há tempos para uma colecção dirigida pelo jornalista António José Teixeira (e que, tanto quanto sei, está mais ou menos parada), o ponto de partida era precisamente uma placa colocada num lugar onde Espanha deixa de ser Espanha para avisar quem vem que mudou de país. Ora, por baixo da palavra Portugal, alguém rabiscara a preto-preto, ao que parece, a palavra «lixo», e nem vale a pena perguntar se de lá, se de cá, porque não era basura que ali se podia ler. É esta a circunstância que serve de motor de arranque a Contrato Sentimental, um livro que fala sobre a nossa identidade e os nossos problemas com a pátria e não omite aspectos como a língua, a educação, a imprensa e as cidades que temos, entre muitas mais coisas. Se ainda aqui não tinha falado dele – o que é provável, dado que o livro saiu ainda eu não usava blogue e é dos que ainda está num limbo-estante para ser arrumado – aqui vai a sugestão. De qualquer modo, a acusação de lixo recordou-me uma bela frase que uma personagem diz na comédia cinematográfica Bem-Vindo ao Sul: Quando um habitante de um país do Norte vem viver para um país do Sul chora quando chega. Mas chora mais ainda quando se tem de ir embora...

30
Jan12

Tarde demais ou em modo minúsculo

Maria do Rosário Pedreira

Ouvi recentemente numa reunião com o director comercial da LeYa que um livro tem uma esperança de vida média de sete semanas. Sete semanas durante as quais, com ou sem ajuda, terá de se vender e sair da livraria, pois, de contrário, sairá também, mas devolvido e para os armazéns da editora – e é quase garantido que não voltará a pôr lá os pés (na livraria, entenda-se). Tratando-se de um livro de um estreante, português ou estrangeiro, é preciso, pois, torná-lo minimamente conhecido ou «badalado» antes da saída, ou tentar que as críticas cheguem em cima da publicação para que alguma atenção recaia sobre ele durante essas míseras sete semanas. O problema é que há muito pouco espaço para falar de livros na nossa comunicação social – menos ainda para livros de desconhecidos, sobretudo se a saída destes coincide com a de outros títulos mais sonantes com direito natural a uma ou mais páginas. Então, não é raro que os mais necessitados se vejam confinados a uma colunazita de nada que, por bem intencionada que seja, não ajuda muito; ou, o que é pior, a um espaço efectivamente mais amplo mas, sim, sete semanas depois do que era preciso... Ou mais. Já vi críticas que saíram um ano depois da publicação dos livros a que diziam respeito. Não serviram a quem as escreveu nem a quem publicou o livro. Talvez sejam iguais ao silêncio, enfim.

27
Jan12

As mulheres doentes

Maria do Rosário Pedreira

Dizem que as mulheres são boas doentes: metem-se na cama e querem é que as deixem em paz. Percebem que a febre é uma coisa passageira. Não fazem ondas nem chateiam especialmente os maridos, filhos, pais, quem com elas viva, enfim. Exceptuando as hipocondríacas, bem entendido. Já dos homens se diz o contrário, embora eu tenha sorte com o Manel, que é, até ver, um óptimo doente, inclusive porque recupera quase sempre com uma rapidez estonteante (uma aspirina e fica como novo). Mas, na generalidade, um homem com gripe é uma dor de cabeça para a família inteira, e quem o diz é o nosso Lobo Antunes, que escreveu estes versos deliciosos e muito a propósito:

 

Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes, que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte, nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças,
Tigres sem listras, bodes sem tranças,
Choros de coruja, risos de grilo,
Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo.
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão-de-ló,
Não te levantes, que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer.

26
Jan12

Genialidade e destreza

Maria do Rosário Pedreira

O meu pai era um homem muito inteligente – e estou à vontade para o dizer porque levei a vida toda a ouvir quem o conheceu dizer-me a mesma coisa. Ainda hoje, quando alguém olha para o meu apelido e me pergunta se sou filha dele, à resposta afirmativa segue-se quase sempre uma frase atestando a genialidade do progenitor. Mas, apesar dela, o Luiz Pedreira tinha alguns problemas em atravessar ruas (levava uma eternidade), guiar automóveis (ia em segunda uma eternidade) e levantar dinheiro num multibanco (pedia à minha irmã). Conheci muita gente inteligente que nunca conseguiu tirar a carta de condução e acabo de ler no El País que Vargas Llosa não usa telemóvel nem correio electrónico (duas das razões que apontou para não poder aceitar o convite para dirigir o Cervantes). Cá em Portugal, lembro-me, por exemplo, de que Eduardo Lourenço continua a escrever à mão e já aqui contei uma história sobre ele e um fax que mostrava o seu pouco jeito para as máquinas. Um dia destes, contaram-me que Lobo Antunes só viaja sozinho se os voos forem directos, porque receia escalas e transbordos e não quer ficar perdido no meio do mundo; e o escritor Juan Goytisolo confessou num artigo que li recentemente que não fazia a mais pequena ideia do que era um iPad ou um iPhone e ainda escrevia com caneta, não tendo sequer passado pela máquina de escrever. É divertido ver como a inteligência tem tão pouco que ver com a destreza de carregar em botões... Assim, quando vemos um piolho ganhar um jogo de computador logo à primeira, não quer dizer que seja necessariamente inteligente.

25
Jan12

Gripe e futilidade

Maria do Rosário Pedreira

Tive uma gripe dos diabos na semana passada: febrão, dores no corpo, a garganta arranhada, falta de apetite, enfim, uma incapacidade de ser eu mesma por alguns dias – e, quando digo «eu mesma», estou a falar de uma pessoa que lê habitualmente coisas de jeito. Assim, os dias em casa não puderam ser aproveitados em grandes leituras, os olhos fechando-se ou lacrimejando a maior parte do tempo. Ao fim de quarenta e oito horas melhorei ligeiramente, mas ainda mantinha os sentidos embotados: consegui ler as gordas de um jornal diário sem absorver grande coisa e, percebendo que não valia a pena insistir, tirei do saco de jornais que o Manel trouxe da rua uma revista que, pelos vistos, vem com o El País aos sábados e é dedicada à moda e às mulheres (o Babelia teria de aguardar tempos de maior lucidez). Pois foi uma boa surpresa: embora se trate de material com pouco que ler, a dita revista, chamada S Moda (imagino que o S venha de sábado, mas não tenho a certeza), é um primor em termos de produção e fotografia de moda. Num artigo de fundo sobre os grandes da moda espanhola nos últimos vinte anos (Zara incluída), um conjunto de fotografias protagonizadas por estilistas, sapateiros, joalheiros e modelos arrumados como personagens em cenários belíssimos fez-me lembrar cartazes de bons filmes franceses, italianos e americanos de há décadas, baseados de preferência em bons romances. Uma outra secção, dedicada desta feita a chefs de cozinha, parecia recriar personagens de livros bastante conhecidos – da Recherche à Origem das Espécies, de Tintim às aventuras de Verne. Tenho de confessar que nunca tinha folheado a S, porque ela não costuma sair do saco (tira-se o Babelia e já está), e fiquei impressionada com o aspecto gráfico e a qualidade de impressão. Para a semana, vou ver se a coisa se mantém, se foi tudo um delírio da febre. É que ver arte e literatura numa revista para mulheres pode ser excesso de optimismo ou simplesmente miopia gripal...

24
Jan12

Dilema

Maria do Rosário Pedreira

Os artigos a favor e contra o Acordo Ortográfico, vindos de quem usa a caneta profissionalmente e de quem nada tem, à partida, que ver com as questões da língua, mas quer, mesmo assim, dar a sua opinião, têm-se multiplicado nas últimas semanas. Só para dar dois exemplos, no mesmo sábado escreveram sobre o assunto nos jornais Pedro Mexia e Bagão Félix, ambos contra o dito. Não escondo que também não me agrada o acordo e continuo a escrever à maneira antiga (as coisas antigas têm certo charme, de resto, mas não é por isso), embora a publicar alguns autores que já usam a nova ortografia. Mas agora fui colocada perante um dilema. Encomendaram-me um livro para crianças (de que falarei oportunamente), e o meu computador, que reclama actualizações semanalmente, começou a corrigir-me os "supostos" erros. Era realmente meia dúzia de palavras que perdiam o C (como espectáculo e electricidade) e pouco mais; mas, antes de lhes devolver a consoante desaparecida, pus-me a pensar que as crianças daquela idade já têm os manuais e livros de leitura com a nova ortografia e se calhar só lhes vou arranjar sarilhos numa idade em que precisam é de aprender a ler e escrever com o mínimo de ruído possível. Devo ser consistente ou volátil? Egoísta ou altruísta? Reservar a ortografia do meu coração só para quem a aprendeu nos bancos da escola e usar a nova para os fedelhos? Que fazer, em suma?

23
Jan12

História de família

Maria do Rosário Pedreira

Prometi voltar quando tivesse o livro lido e cá estou eu. Os Malaquias – assim se chama o romance vencedor do último Prémio Literário José Saramago – ainda não está disponível em livraria, mas, se por acaso é sócio do Círculo de Leitores, não hesite, pois, além de uma leitura de qualidade, terá um objecto bem bonito nas mãos. Partindo de um episódio real que aconteceu na família da autora, Andréa del Fuego – a história de três irmãos que ficam órfãos na noite em que um raio fulmina os seus pais num casebre da Serra Morena –, a obra mistura a vida difícil de três miúdos que acabam por separar-se (e cujo futuro se adivinha penoso e triste) com um toque de realismo mágico que, entre outras coisas, faz viajar no corpo de um deles gente que morreu e acabou por transformar-se em partículas de pó, gás, suor, o que for. Escrita de forma muito especial, poética, ternurenta, mas também cruel quando é preciso, esta saga – autobiográfica ou não – convence e é mais parecida no tom com o Jorge Amado dos Capitães da Areia do que com a literatura brasileira contemporânea, mais desprendida e desconcertante. Mesmo achando que o fim precisava de um jeitinho, recomendo.

20
Jan12

Fado meu

Maria do Rosário Pedreira

Fiquei extremamente feliz quando a Unesco considerou o Fado Património Imaterial da Humanidade há pouco mais de um mês – e só não escrevi logo um post entusiasmado porque na altura estava no México, na Feira do Livro de Guadalajara, e no meu hotel as tecnologias funcionavam mal e às vezes precisava de esperar 40 minutos para receber um email. Tenho desde pequena uma grande ligação e amor ao fado, sobretudo porque o mau pai era um boémio e levava-nos muitas vezes a ouvi-lo ao vivo. E, na medida do possível, vou acompanhando o que se faz e ouvindo o que sai. Foi com muito medo que fiz as minhas primeiras letras para o Carlos do Carmo e a Aldina Duarte, mas agora tomei-lhe o gosto e tenho um prazer imenso em escrevê-las, mesmo que umas me saiam melhor do que outras. Há algumas semanas, estive a «produzir» para o António Zambujo, que tem uma voz belíssima e uma afinação invejável, e estou mortinha por ver o resultado. Neste ano, também sairá um disco da Mísia, para quem fiz a letra de um fado que, afinal, não é um fado, mas uma espécie de tango. Dei ainda algumas letras ao Ricardo Ribeiro, que pensava fazer um álbum com o Pedro Jóia, mas ainda não sei se o projecto – ou as letras – vai para a frente. A fadista Carminho também mostrou interesse em que, no próximo disco (gravou um agora mesmo), eu trabalhe para ela. Enfim, se a edição deixar de precisar de mim, talvez o fado me queira.

19
Jan12

Romance em imagens

Maria do Rosário Pedreira

Conhecia romances gráficos – até Paul Auster escreveu um – e, no fundo, não são muito diferentes da banda desenhada. O que não conhecia até à data era um romance em imagens, fotografias sobretudo, que compõem uma colecção com ar de poder ser vendida em leilão. E é exactamente assim o livro que tenho na mão, intitulado Artefactos Importantes e Objetos Pessoais da Coleção de Leonore Doolan e Harold Morris, Incluindo Livros, Roupa e Acessórios, publicado como um catálogo dos Leiloeiros Strachan & Quinn (quiçá os nomes são os dos autores). Folheando-o brevemente, parece o que anuncia: um catálogo com grafismo de catálogo, muito cuidado, com fotografias de pessoas, objectos, roupa, bilhetes de amor e respectivas legendas classificativas. Mas, bem vistas as coisas, é um romance, a história de amor entre duas pessoas. Ainda não li de fio a pavio, mas parece-me uma ideia inegavelmente interessante e original, se não mesmo a explorar. Parabéns a quem a teve, evidentemente. Espreitem, que vale a pena, e não se fiquem por ver, pois a leitura muda tudo.

18
Jan12

Ventos do Brasil

Maria do Rosário Pedreira

Sou conhecida por alguns como a editora que, até hoje, mais Prémios Saramago arrecadou para os seus autores. Não é auto-elogio, porque em Portugal não são assim muitos os editores que se dedicam a procurar, como agulha em palheiro, a voz que faça a diferença; e, como eu adoro fazê-lo, é também natural que some mais autores novos do que conhecidos e consagrados. De qualquer maneira, na mais recente edição do prémio, não pude concorrer por não ter editado nos dois anos anteriores nenhum autor com menos de 35 anos. Fui, de qualquer modo, saber em directo quem era o premiado, não fosse algum colega ter começado a passar-me a perna. E fiquei a conhecer Andréa del Fuego, brasileira, autora de Os Malaquias, romance que mereceu o galardão e é inspirado num episódio que ocorreu na família da autora, como ela fez questão de avançar ao receber o prémio. O Círculo de Leitores lança-o para o mercado em Janeiro, mas logo depois ficará disponível em livraria com a chancela da Porto Editora. Ofereceram-me carinhosamente um exemplar antes de estar à venda e vou a meio. Lindíssimo, a lembrar um pouco um Jorge Amado dos nossos tempos. Quando acabar, decerto farei um post mais detalhado a propósito. Mas, para já, fiquem atentos.

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