Há livros que nunca passam de moda e autores que são modernos em todas as épocas. Este ano, James Joyce entra no domínio público – e isto quer dizer que os seus livros passam a ser património de todos (com direitos gratuitos para quem publica), mas também que o escritor irlandês já morreu há setenta anos. E parece incrível, pois nestes setenta anos que o separaram fisicamente de nós não terá havido muitos autores que o possam igualar em criatividade, ruptura, vanguardismo e modernidade. Se pensarmos que Joyce só tinha 40 anos quando escreveu Ulisses (curiosamente no mesmo ano em que Eliot publicou o belíssimo The Waste Land, ficando só por isso 1922 para a história da literatura), ficaremos ainda mais admirados com o seu génio. (E, ao escrever isto, reparo que Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares, com o seu outro Bloom – ou o mesmo –, também saiu quando o autor tinha 40 anos). Sempre que a obra de um escritor entra no domínio público, multiplicam-se as edições de livros seus; e, se isso acontecer, são boas notícias, pois quem nunca tomou contacto com Joyce achá-lo-á, mesmo em 2012, muito mais moderno do que dezenas de outros autores, vivos e jovens.
Rui Zink é, além de escritor, professor universitário – e passam pelas suas mãos muitos estudantes que querem fazer carreira na edição (a Madalena, meu braço-direito cada vez mais indispensável, foi sua aluna de mestrado). E, apesar de ter uma imagem pública que se associa facilmente à paródia, à irreverência e à má-língua, diz coisas muito sérias que devem ser tomadas em conta sobretudo por quem escreve e deseja ver os seus textos publicados. Recentemente, deu uma entrevista muito interessante à revista Maxim (e eu que pensava, passe o preconceito, que estas revistas não tinham nada que ler) em que se colocava na tradição dos escritores portugueses que são simultaneamente criativos e críticos e que, portanto, fazem primeiro a parte criativa e a seguir são críticos de si mesmos, ou seja: escrevem, lêem e... reescrevem, pois claro! Provavelmente, para a maioria dos leitores, este percurso seria o normal, mas a verdade é que a ânsia de ver a obra nos escaparates e um certo amadorismo ou inexperiência impedem, frequentemente, o distanciamento necessário à autocrítica e à reescrita de textos que só lucrariam com esse segundo olhar atento e impiedoso e as consequentes tesouradas. Outra boa tirada de Zink: para escrever, é preciso ler muito primeiro. Totalmente de acordo.
Embora a capa da revista Ler mostre Abel Barros Baptista e Ricardo Araújo Pereira em pose digna de comédia (que é, de resto, o assunto da conversa entre ambos no interior) e isso dê logo vontade de a abrir, a coisa mais bonita deste número é a homenagem feita a Fernando Assis Pacheco, que teria hoje 75 anos (morreu em 1995, à porta da Livraria Buchholz). Aproveitando a saída de uma biografia intitulada Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco, da autoria de Nuno Costa Santos (autor também de um documentário que passou no dia do lançamento), todos os cronistas dedicam, sem excepção, os seus textos ao grande poeta e prosador (na literatura e no jornalismo) que, embora ao de leve, tive a felicidade de conhecer em Campo de Ourique, quando trabalhava na Gradiva, e que não tinha televisão em casa, apesar de ter vários filhos então pequenos. Mas, além das memórias e testemunhos alheios, a revista brinda-nos com inéditos deste artista bem-disposto e versátil, que foi uma espécie de mestre para muitos jornalistas e escreveu um grande romance intitulado Trabalhos e Paixões de Benito Prada, que tem das melhores e mais surpreendentes aberturas da literatura portuguesa. Obrigada, pois, por no-lo trazerem de volta e lhe darem o destaque que merece.
A minha irmã, que foi sempre a mais original no contexto familiar, conheceu de perto a mulher de Arnaldo de Matos na escola secundária e tornou-se simpatizante do MRPP, obrigando até a minha mãe a acompanhá-la em actividades da Associação de Amizade Portugal-China. Na altura, eu era demasiado miúda para perceber fosse o que fosse dessa espécie de militância, mas agora posso vingar-me da ignorância lendo uma obra de Miguel Cardina intitulada Margem de Certa Maneira – O Maoismo em Portugal de 1964-1974, dada recentemente à estampa pela Tinta-da-China. Trata-se de um estudo que ainda não tinha sido feito sobre os movimentos de extrema-esquerda de inspiração maoísta nos dez anos que antecederam o 25 de Abril, movimentos que foram muito críticos em relação às acções do Partido Comunista (ou à falta delas), ao colonialismo, à guerra em África (apelando à deserção) e ao capitalismo. Nascidos no meio estudantil, mas estendendo-se mais tarde a alguns sectores do proletariado, estes grupos constituíram uma oposição diferente e fizeram nascer para a política muitas figuras conhecidas que aí iniciaram o seu percurso.
Para os leitores deste blogue que gostam de poesia e me pedem que, uma vez por outra, aqui deixe um poema, informo que amanhã estarei no Instituto Cervantes com a autora espanhola Menchu Gutiérrez (poeta e romancista) para uma leitura poética, seguida de conversa com o público, ao longo de cerca de uma hora. A sessão começará às 18h30 e a entrada é livre.
Tenho lido aqui e ali que nem tudo é mau nos tempos que atravessamos. Ou, melhor, que o horror do que vivemos pode ter efeitos de algum modo positivos a médio prazo. Ao que parece, muitos dos que andavam adormecidos despertaram com a chicotada do desemprego ou do desaparecimento das bolsas de estudo e, se antes nem iam às urnas em domingo de eleições, agora manifestam-se na praça pública e lutam pelos seus direitos. Também se diz que é, normalmente, em tempos obscuros e difíceis que os criadores sobressaem, que se tiram coelhos da cartola vazia e as artes fazem das tripas coração – ou seja, que as ideias boas e bonitas dão a cara; e, finalmente, ouço pessoas afirmarem que as coisas precisam de bater no fundo para virem ao de cima outras melhores. Gostava de acreditar nisso, até porque, nos últimos anos, vi o declínio de muita coisa que achava válida e a ascensão da mediocridade em vários domínios – no político, então, nem se fala. Mas, lamentavelmente, estou um pouco céptica: é que, de há uns meses para cá, suicidaram-se quatro jovens que, não sendo próximos, eram próximos de pessoas com quem trabalhei ou a quem estive ligada por razões profissionais. Atiraram-se de pontes ou para baixo de comboios e viviam, pelos vistos, crises maiores do que esta a que assistimos na Europa. O último foi o poeta Rui Costa, que ganhou o prémio Daniel Faria e concorreu à direcção do P.E.N. Clube há uns três anos, de quem hoje deixo aqui um poema. Espero que não passe tudo de uma coincidência.
Ando com saudades de ver filmes de James Ivory, de quem sou admiradora incondicional; e um dia destes, olhando a estante dos autores anglo-saxónicos à procura já nem sei bem de quê, pus os olhos nesse romance esplendoroso que deu a Ivory a base para um dos seus melhores filmes (os Óscares foram quase uma dúzia). Falo, claro está, de Os Despojos do Dia, esse monumento literário de Kazuo Ishiguro, japonês very British que guardou algo de contenção oriental na escrita dos seus romances. Ivory soube pegar na história e transformá-la num filme inteligente, belo e muito classista, no qual os mordomos e criados do Lorde castelão não têm direito a opiniões políticas (e sabem disso). Enquanto não chega mais nenhum Ivory, eu, que nem sou nada televisiva, vou-me consolando com uma série britânica, Downton Abbey, que faz lembrar inevitavelmente a velhinha Família Belamy (Upsatairs, Downstairs no original) e tem alguma coisa do bom gosto e da subtileza do realizador britânico (embora menos do autor de ascendência nipónica).
A Teorema e o Círculo de Leitores lançaram há anos umas Obras Completas de Jorge Luis Borges em quatro volumes cartonados, nada fáceis de encontrar nos tempos que correm. Tinham, além disso, o senão de serem pesadotes para os lermos na cama confortavelmente. Mas eis que um autor que deve estar sempre disponível para os leitores de todas as gerações está de regresso aos escaparates pela mão da Quetzal – e agora em pequenos livros leves e discretos que se podem meter na pasta e ler em viagem de comboio ou autocarro. Os primeiros títulos são O Livro da Areia, com tradução de António Slaber, e História da Eternidade, vertido para a nossa língua pelo competentíssimo José Colaço Barreiros. Mas crê-se que o resto venha aí de tantos em tantos meses para deliciar os que nunca cheiraram o escritor argentino e encantar de novo, pois claro, os seus admiradores de sempre.
Já aqui escrevi uma vez sobre as Quintas de Leitura, um fenómeno de criatividade, organização e, o que é mais importante, público garantido em todas as sessões. O projecto, imaginado e desenvolvido por João Gesta e dedicado à poesia (mas com uma ajudinha de muitas outras artes), faz onze anos, e a sessão comemorativa avizinha-se. Se vive no Porto, ou suficientemente perto para se poder deslocar, não falte. Reserve já o bilhete, que as entradas não costumam chegar para todos, e tenha uma experiência única (mesmo que a queira repetir nas Quintas que se seguirem). Parabéns, João Gesta (e respectiva equipa). Queremos, pelo menos, mais onze anos do vosso trabalho.
O primeiro embate veio com a notícia de que a Livraria 107, nas Caldas da Rainha, ia fechar portas. Para quem está no mundo da edição há muitos anos e teve a alegria de conhecer livreiros a sério, gente que lê e sabe o que vende, foi um choque perceber que, afinal, se safa melhor no mercado dos livros quem os vende como bolos, detergentes ou T-shirts e só vê capas, brindes e campanhas onde outros, pelos vistos menos afortunados, vêem autores e textos. A Isabel Castanheira, com os seus gatos Gil Vicente e Florbela Espanca passeando entre as estantes da 107, merecia ter conseguido. E, a partir da notícia de que não conseguiu, começaram a chegar outras do mesmo tipo – incluindo as que mencionavam as grandes dificuldades por que passam as Bulhosa – até que, recentemente, os jornais trouxeram a má nova de que a Livraria Portugal, no Chiado, também não resistira. Para mim, um osso duro de roer, já que, quando comecei na Gradiva há mais de vinte anos, as encomendas desta livraria eram feitas telefonicamente por funcionários criteriosos e especializados em ficção, ensaio, literatura infanto-juvenil e obras de referência, que iam passando o auscultador uns aos outros, não se metendo em áreas que não dominavam. Quando mais uma livraria fecha, é menos uma livraria que temos; e não só isto é terrível para o negócio, mas também especialmente grave para a literatura, que vai sendo afogada em pilhas de papel que, mesmo que saia das lojas num determinado período a um ritmo alucinante, não passa de papel que bem podia servir para limpar... E mais não digo.