Há sempre um monte de livros sobre a minha mesa para eu ler – e há outro monte virtual no meu computador. Há dezenas de pessoas que me escrevem pedindo que leia os seus livros ou que conseguem encontrar-me aqui e ali e me prendem uns minutinhos para me entregar em mão um romance que escreveram e querem publicar. É, por isso, de algum modo, excepcional eu publicar um livro de um autor que queria apenas fotocopiar uns quantos exemplares do seu texto para oferecer a amigos e família e pediu a um cunhado com talento que lhe fizesse apenas uma capa para tudo ficar mais bonitinho. A verdade é que eu vi essa capa por acaso, e li o título, e devo ter perguntado o que era aquilo e, já não sei bem como, dei por mim a ler o texto e a querer publicá-lo. Pois bem: O Intrínseco de Manolo é uma delícia alentejana, um romance sobre um homem intrinsecamente bom, vítima de uma calúnia que envolve o comportamento da mulher, que se põe todas as sextas a caminho da aldeia vizinha, por acaso espanhola. Mas quem se refugia no falatório há-de pagá-las – e bem, porque os bons homens preferem vingar-se com luva branca. Ternurento, cómico e ocasionalmente escatológico (preparem-se para a Idalina que – perdoem – é literalmente capaz de cozinhar um peido), esta é uma estreia vigorosa que nos enche de boa-disposição e nos ensina o poder que a excepção pode ter sobre a regra.
Só recentemente pude meter a mão no vencedor do Man Booker Prize do ano passado, que alguns dos leitores deste blogue, mais sortudos do que eu, já tiveram ocasião de ler. Trata-se de O Sentido do Fim, de Julian Barnes, um romance absolutamente imperdível que, por qualquer razão, me fez lembrar também A Praia de Chesil, de Ian McEwan, galardoado, julgo, com o mesmo prémio (talvez as restrições à prática sexual antes do casamento, mas seguramente outras coisas mais). Para além do facto de os ingleses escreverem muito bem (a sua narração é tão fluida que somos arrastados do princípio ao fim sem darmos conta), Barnes é um ás a descrever sensações com poucas palavras, neste caso as de um homem que já foi rapaz, já teve um amigo que admirava, já teve uma namorada que desprezou com uma carta que nem era para ela, mas para esse amigo que se suicidou exactamente pelas mesmas razões que um outro colega de ambos o fez uns anos antes – e que não se podem aqui contar. Notável entre todas, a relação do protagonista com a ex-mulher, um desses amores que duram toda a vida sem sofrerem a mácula da separação e da troca. Com um fim algo trágico, mas extremamente belo, este O Sentido do Fim faz-nos compreender como um relacionamento de juventude, ainda por cima curto, pode minar a vida de um sexagenário até que alguém o leve a entender que é mesmo preciso que certas coisas terminem. Excelente leitura.
Há muitos anos, quando comecei a trabalhar na edição, recebíamos na Gradiva, entre outras publicações, a New York Times Review of Books. Hoje é fácil ter acesso a ela com uns meros cliques no teclado do computador ou, simplesmente, comprando-a num quiosque (aquele onde consumo jornais, pelo menos); mas nessa altura ela vinha pelo correio dobrada com uma tira de papel mais grosso a envolvê-la e era todo um ritual esticá-la e lê-la de ponta a ponta. Porém, o País era mais analfabeto e o mundo menos globalizado, e nem sempre o que constava dos Top de vendas da NYTRB funcionava cá, como o provaram, de resto, umas quantas experiências que fizemos e se revelaram verdadeiros flops. Ninguém nesse tempo parecia apreciar verdadeiramente os thrillers ou as obras de auto-ajuda e as séries que acompanhávamos então na televisão raramente eram as que os norte-americanos produziam, não se vendendo, pois, como hoje acontece, os romances que lhes haviam servido de base. As coisas mudaram bastante nesse sentido e, nos tempos que correm, somos todos cada vez mais iguais em qualquer parte do mundo dito civilizado. É, no entanto, curioso verificar que, sem o apoio do cinema ou da televisão, alguns autores continuam a ser vítimas de uma certa geografia do gosto e, se em Portugal podem ser extremamente bem-sucedidos, em Espanha registam vendas diminutas e, no Reino Unido, são ilustres desconhecidos. Quando, por vezes, falamos de um autor de sucesso em Portugal a um amigo leitor que vem do país donde esse é oriundo, podemos inclusivamente levar com a frase surpreendente: «Nunca ouvi falar.»
Muita gente se lembra seguramente de um filme de animação chamado Persépolis que correu os festivais de cinema há uns anos e acabou mesmo por ter distribuição comercial e ser exibido também na televisão, além de ter sido seleccionado para os Óscares. Era a história da vida de uma rapariga iraniana, desde a sua infância ocidentalizada até às drásticas mudanças que a Revolução Islâmica trouxe ao Irão na sequência da queda do Xá. Esse filme baseava-se, porém, num livro autobiográfico de Marjane Satrapi – uma banda desenhada a preto e branco publicada originalmente em francês (em dois volumes depois reunidos) e mais tarde traduzida e editada num grande número de países. Pois bem, esse livro saiu em Portugal recentemente e merece leitura, porque é um excelente exemplo de como um jovem (no caso, uma jovem) ganha consciência política entre dois regimes tenebrosos, cada um à sua maneira. A par dos problemas vividos pela protagonista à medida que a realidade à sua volta vai mudando – os presos políticos, a proibição de estudar, a substituição da matemática pelo estudo do Corão ou a instrumentalização dos media pelo poder dos ayatollahs – há também um lado mais leve sobre o que é crescer, descobrir a sexualidade, namorar, beijar, estar apaixonado ou até sofrer uma traição. Um bom livro para oferecer aos adolescentes preguiçosos para ler.
Uma das desvantagens de se ser editor é já não se poder entrar numa livraria sem essa preocupação de fazer vistorias: o primeiro passo é verificar se os livros que publicámos estão lá e, no caso de estarem (o que não é garantido), se a sua exposição é a mais conveniente (numa prateleira é muito pior do que num montinho sobre a mesa; e o melhor de tudo é estar em lugar de destaque, na montra ou num expositor em escadinha, que é onde costumam ficar as novidades). Só depois podemos, como se costuma dizer, partir para outra. É também por isso que é tão bom ir à feira do livro, na qual cada editor tem os seus pavilhões próprios. Aí, podemos andar à vontade a folhear e a cheirar livros, sem sentirmos que estamos a trabalhar. Além disso, os preços são mais acessíveis e existe algum fundo de catálogo exposto – o que nas livrarias começa a ser raro – e frequentemente em saldo. A Feira do Livro de Lisboa abre já amanhã e, apesar de ter de lá passar os fins-de-semana em sessões de autógrafos com os autores – noblesse oblige –, sobra sempre um tempinho para meter o nariz onde se é chamado. A feira fica aberta até dia 13 de Maio.
Há muitos anos, mais de vinte, traduzi um livro absolutamente notável de Primo Levi. Tinha o italiano ainda fresquinho e disponibilidade para me dedicar a um trabalho moroso e mal pago nas poucas horas que tinha livres. A obra chamava-se O Sistema Periódico e foi publicada no início dos anos 90, numa altura em que os romances de Levi fizeram sucesso (o lançamento do livro foi, de resto, no Instituto Italiano em conjunto com o de Se Isto É Um Homem). Recentemente, foi decidido reeditar esta autobiografia que se lê como um livro de contos, usando a minha velhinha tradução. E, porque tenho amor à pele, pedi um tempo para a rever com mais vinte anos de leituras e vivências em cima. E ainda bem: porque, apesar de o revisor ter dito que estava óptima, a verdade é que encontrei bastantes marcas da minha falta de maturidade, a maior das quais ter tido medo de usar a palavra «judeu» no livro inteiro, usando em vez dela «hebreu» porque os italianos usam «ebreo»... E, entre outras parvoíces, deixei Richiamo alla Foresta numa passagem que falava justamente de uma personagem de O Apelo da Selva, de Jack London. Claro que muita gente acha que o livro deveria chamar-se A Tabela Periódica, e não o Sistema – e pensam que isso foi também má tradução; mas a verdade é que se Levi quisesse ter-lhe chamado «Tabela» tinha a palavra italiana para tal. Não sei se, desta feita, ainda ficou muita coisa imperfeita, espero que não. Em todo o caso, deu para ver que envelhecer tem um lado positivo, afinal de contas. Do livro falarei um dia destes, quando estiver à venda.
Gosto muito do cinema de Pedro Almodóvar, embora nem todos os seus filmes me tenham deliciado do mesmo modo. Há, porém, na sua obra uma característica que me agrada especialmente e que se prende com a dignidade que consegue emprestar a figuras que, à partida, estariam nas margens e seriam desqualificadas pela maioria de nós – entre outras, o travesti de Tudo sobre a Minha Mãe e o enfermeiro que tem relações sexuais com a bailarina em coma em Fala com Ela (e de quem não conseguimos deixar de gostar). Encontrei há uns meses num romance de Juan Marsé, Rabos de Lagartixa, um adolescente que faria as delícias do realizador; mas há um autor português que consegue a proeza de Almodóvar com as suas personagens, trazendo para o «plateau» duas mulheres-a-dias irresistíveis em O Apocalipse dos Trabalhadores, um garoto pobre de espírito que perdeu a mãe e pinta céus para ver se a encontra em O Remorso de Baltazar Serapião (Prémio Literário José Saramago) ou, mais recentemente, uma prostituta anã e um «homem maricas» perdidos da vida em O Filho de Mil Homens. Como disse o humorista Pedro Vieira num post do seu blogue Irmão Lúcia, «ninguém como ele maneja a insustentável leveza da crueldade». Chama-se valter hugo mãe e, até há uns meses, não usava maiúsculas. Mas é para ler com todas as letras. O nosso chico Almodóvar.
Todos os autores adoram ver os seus livros traduzidos noutras línguas e a circularem pelo mundo. A internacionalização chega a ser, de resto, chave para o sucesso no país em que os autores foram originalmente publicados, mais ainda se estivermos a falar de Portugal, onde, sei lá porquê, tendemos a dar sempre mais importância ao que se diz lá fora. Não sei se os romancistas portugueses acompanham a par e passo as traduções dos seus livros – imagino que não o possam fazer com certas línguas como o sérvio ou o japonês – mas tenho ideia de que o façam, pelo menos, com as línguas que conhecem; contudo, estou convencida de que nunca as acham tão «estrangeiras» como os poetas quando lêem as traduções dos seus poemas. Quando escrevo uma letra para um fado, por exemplo, faço-a com uma determinada música na cabeça, que não é obviamente a que ouvirei depois; e, mesmo que o resultado final (letra + música) seja francamente melhor do que o que estava na minha cabeça, há sempre uma espécie de desconforto inicial por causa dessa disparidade. Assim também, sempre que verifico traduções de poemas meus, a impressão é estranha, porque, ainda que tudo bata certo em termos do sentido, que não haja realmente nada a criticar, basta um verso mais comprido do que o original para fazer do poema outro poema completamente diferente. Porque a música também muda de língua para língua.
Mario Muchnik, um editor espanhol que trabalhou em grandes casas da literatura como a Seix Barral, do grupo Planeta, deu o título O Pior não São os Autores àquilo que chamou depois, mais concretamente, a sua autobiografia editorial. Homem experiente que conheceu dezenas de escritores importantes ao longo da vida (como Cortázar, por exemplo), descreve nestas suas memórias cronológicas a relação que estabeleceu com eles, querendo, porém, com o título afirmar que foram bem mais pacíficas do que as que manteve com quem o empregava. E, contudo, a frase escolhida não deixa de implicar que os autores são proverbialmente difíceis, exigentes e chatinhos com os seus egos tantas vezes inflamados. Sei de muitas histórias de escritores assim, evidentemente, mas, talvez porque a dada altura tenha optado por publicar os mais novos, na verdade não me posso queixar. Raramente os meus autores me dão água pela barba ou se armam em génios, nunca me inundaram com pedidos estapafúrdios ou exigências tolas, não são do tipo de vir chorar no meu ombro quando têm um bloqueio ou a crítica lhes dá uma catanada, enfim, se olhar para estes últimos dez ou doze anos, tenho de considerar-me uma sortuda (mesmo que não me esqueça de um ou outro momento mais crítico, como a ocasião em que um autor me pediu por telefone que metesse uma cunha para o seu livro receber determinado prémio…). Claro que a empatia não se estabelece com todos da mesma maneira e, como em tudo na vida, há uns que nos caem logo no goto e outros de quem nunca matamos uma certa distância reverente ou cerimoniosa. Mas não é isso que nos impede de trabalhar como é preciso e, se tudo continuar a correr assim, até poderei dizer um dia que o melhor de tudo foram os autores.
Quase todos os grandes grupos editoriais em todo o mundo acabam por adquirir ou criar de raiz uma editora de prestígio a que alguns entendidos já chamaram editoras-boutiques. A Porto Editora comprou recentemente a Assírio e Alvim, e a Random House, nos Estados Unidos, tem uma pequena chancela literária chamada Nan Talese. Na LeYa, sempre existiu a Teorema, que tinha essa patine de editora de vanguarda dada por quem a fundou e sobretudo quem a geriu por mais de vinte e cinco anos. Mas, depois da saída de Carlos da Veiga Ferreira e, a seguir, de José Oliveira, não sabíamos bem o que iria acontecer à boutique. Foi, porém, decidido reunir esforços e fazer uma espécie de regresso às origens. Assim, manter-se-ão autores clássicos-modernos como Nabokov ou Primo Levi e autores de ruptura como Bret Easton Ellis e Jay McInerney, mas juntar-se-lhes-ão os novos portugueses e os novos estrangeiros literários, que alimentarão um catálogo que promete ser de qualidade. Os primeiros títulos a publicar, no final deste mês, serão O Intrínseco de Manolo, de João Rebocho Pais, e Longe da Terra, de Rebecca Makkay. Para o mês que vem há mais – devagarinho, claro, que a marca pede ponderação e cautela.