Durante muito tempo, os académicos inibiram-se de escrever romances históricos. Numa ficção, o rigor é evidentemente importante e tem de se ter especial cuidado para evitar asneiras e anacronismos; mesmo assim, a ficção permite pequenas liberdades que a escrita ensaística não autoriza e, quiçá temendo a crítica dos pares, raramente os historiadores portugueses se atreveram ao subgénero literário do romance histórico. Num debate na última Feira do Livro do Lisboa, percebi, porém, que as coisas estão claramente a mudar. João Paulo Oliveira e Costa, professor catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, saiu do armário e escreveu dois romances em dois anos (O Império dos Pardais e O Fio do Tempo). E o mesmo aconteceu a João Pedro Marques, um historiador doutorado por aquela mesma universidade, que também se estreou em 2010 com o romance Os Dias da Febre e chegou agora aos top de venda com o seu mais recente Uma Fazenda em África, que tem um título bem sugestivo e uma capa que pisca o olho ao famoso Equador, de Miguel Sousa Tavares. Não li ainda nenhuma das obras para ver se falta aos especialistas talento para contar onde lhes sobra informação. Mas é um bom sinal que ponham os seus conhecimentos ao serviço do público leitor, já que há muitas obras de cariz histórico que mostram preguiça em investigar e trazem erros de pôr os cabelos em pé. Vamos lá ver se outros se atrevem.
Li algures que, nos últimos dez anos, os livros de ensaio escritos em português e publicados em Portugal foram significativamente menos do que nas décadas precedentes. Não falo de não-ficção em geral, uma vez que se multiplicaram biografias de reis, rainhas e estadistas e não faltaram também os livros de dietas, cozinha e psicologia; falo, sim, de obras de pensamento estruturado, normalmente de índole política e filosófica, que aparecem cada vez menos nos nossos escaparates. Num destes fins-de-semana, porém, uma breve notícia no suplemento «Actual» do Expresso referia que em Espanha a situação, que era semelhante, está a inverter-se com o movimento contestatário 15-M, que já deu origem, com a sua acção, a mais de duas dezenas de obras «filhas» deste grupo, algumas das quais questionam o direito à desobediência civil e propõem alternativas à actual política social espanhola. Talvez o nosso espírito demasiado brando obste a um movimento deste tipo (somos, apesar de tudo, mais «come e cala» do que os espanhóis), mas não me admiraria muito se, com a austeridade vigente e o agravamento das condições de vida, não começassem a surgir de repente ensaios portugueses que nos ajudem a pensar o momento e apresentem alternativas às medidas da Troika.
Há uma editora na Caminho, Isabel Garcez, que promove cursos muito interessantes, alguns dos quais ministrados pelos autores «da casa» (Gonçalo M. Tavares sobre o pensamento filosófico contemporâneo, por exemplo). Há cerca de um ano, foi organizado um curso de ficção portuguesa contemporânea orientado por Miguel Real que, além de escritor e crítico, é provavelmente uma das pessoas mais informadas sobre literatura lusófona, conhecendo quase tudo o que existe, sobretudo dos novos autores. Pois bem: não só o curso foi um sucesso (houve mais inscritos do que vagas e foi preciso encontrar um espaço que desse para todos os interessados), mas também a já referida editora decidiu transformar o curso em livro, que está disponível há pouco mais de um mês sob o título O Romance Português Contemporâneo: 1950-2010. Não se querendo de profundidade excessiva, este é um bom guia para conhecermos os autores que se estrearam a partir da segunda metade do século passado, divididos por quatro grandes grupos, desde os mais realistas aos mais desconstrucionistas. Com um precioso índice de autores, encontraremos na obra muitos nomes que se consolidaram, mas também outros que, tendo surgido já no século XXI, ainda vão ter de caminhar bastante para mostrar o que valem. Um excelente livro de consulta para quem gosta de saber mais sobre o que se escreve no País.
O Horas Extraordinárias fez dois anos há cerca de quinze dias. Confesso que, com a lufa-lufa da Feira do Livro, a efeméride me passou, mas agora não posso mesmo deixar de agradecer aos meus muitos leitores que todos os dias cá vêm, quase como se fossem para o emprego. Tem sido muito bom contar com tantas visitas e ver que as pessoas se sentem neste blogue como em família: lêem, dão a sua opinião, fazem comentários apropriados, conversam uns com os outros e até deixam recados que nada têm que ver com o assunto do dia, pois já sentem noutros visitantes uma espécie de amigos com quem têm afinidades. Alguns dos meus visitantes são tão frequentes que, se não aparecerem por dois ou três dias, estranho e até me pergunto se andarão doentes ou de viagem. Outros são tão interventivos que até respondem por mim e me poupam a réplicas. Um ou outro já veio apresentar-se pessoalmente e foi bom poder pôr uma cara num nome. Mas o que é mais engraçado é que neste blogue dialogam pessoas muito diferentes, umas muito mais velhas do que outras, sem se sentir essa diferença nem haver entre elas qualquer tipo de distanciamento ou reverência. Enfim, é como se estivéssemos todos numa grande sala de estar – e, claro, os sofás fossem confortáveis. Obrigada, pois, por trazerem as almofadas. Por mim, só posso prometer continuar a dar o mote para muitas conversas. Até sempre.
Já trabalhava na edição há uns tempos quando assisti à fantástica campanha de lançamento de um livro infantil (mas com o qual muitos adultos se divertiram) chamado Onde Está o Wally? Tratava-se de um livro-jogo no qual, entre densas multidões em vários contextos, tínhamos de encontrar o Wally, um rapaz de óculos, barrete e camisola às riscas. Conheci na Feira de Frankfurt o editor canadiano, que me contou que em Montréal puseram um Wally em tamanho natural à porta das livrarias com a seguinte inscrição: «Vai lá dentro à minha procura!» Foi, ao que parece, um êxito – e a esse primeiro livro sucederam-se muitos outros, que se venderam como pãezinhos quentes por todo o mundo. Vem isto a propósito de ter recentemente descoberto que a literatura também não está isenta de jogo. O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro, agraciado com o Prémio LeYa, inclui um episódio em que, num determinado museu austríaco, uma personagem feminina copia de um quadro de Brueghel (e os quadros deste pintor têm por vezes semelhanças com os livros do Wally no caos de figuras) uma mulher de muletas com um lenço na cabeça. Ora, aqui no blogue apareceu um leitor que já tinha andado à procura dessa senhora em muitas das telas do pintor e andava meio perdido, de tal forma que o autor lhe propôs um encontro na Feira do Livro para o esclarecer (e ele foi). Uns dias mais tarde, foi a vez de o jornalista Manuel Jorge Marmelo escrever no Público que estava convencido de que a figura mencionada no romance tinha transitado para um outro quadro de Brueghel que não o que o autor referia. Também no Facebook, uma leitora confessou, depois de ler esse artigo no jornal, ter procurado em vão a tal mulher de lenço e muletas naquele quadro, mas estar desconfiada de que a encontrara noutro (afirmando, porém, que esse não se encontrava num museu austríaco). Enfim, a menção de um pequeno detalhe acabou por levar uma data de gente a perder tempo com a pintura de Brueghel, o que é muito positivo, já que não é todos os dias que observamos uma obra de arte ao pormenor e com atenção redobrada. Provavelmente, por muito que cresçamos, nunca deixaremos de gostar de brincar – e a literatura é, pelos vistos, uma forma excelente de não nos esquecermos de como se brinca.
Tenho a sensação de que quase toda a gente acha que os escritores lêem muito mais do que as outras pessoas. É lógico que se pense que a maioria dos escritores se apaixonou primeiro pela leitura e que foi essa paixão que, muito provavelmente, os conduziu à escrita. Mas daí a pensar-se que são os que mais lêem e que leram todos os livros fundamentais, bem... quanto a isso, já não tenho tanta certeza. Sei de leitores vorazes que paparam todos os clássicos sonantes e andam sempre actualizados sobre a literatura mundial, parecendo-me bastante mais lidos do que muitos escritores que conheço (e não estou a falar dos mais jovens), que «cumpriram» a sua quota-parte de leituras até terem começado a escrever mas depois passaram a ler apenas os grandes autores, ignorando todos os que vão aparecendo depois deles, excepto se se tornam célebres ou ganham prémios chorudos. Há, de resto, uma coisa que sempre me fez muita confusão e que tem que ver com o facto de um escritor dizer que, quando está a escrever, não lê nada (ou lê apenas jornais, revistas ou livros de receitas) para não se deixar influenciar. Até já apanhei uma vez um grande escritor a hesitar e a ficar nervoso quando lhe perguntaram o que andava a ler; permaneceu calado tanto tempo para se lembrar do título do livro que se tornou evidente que não lia nada há que tempos. Não generalizo, evidentemente, até porque sei de alguns que não adormecem sem ler umas páginas e de outros que andam tão bem informados sobre os autores novos que, de facto, os devem conhecer de ter lido, e não apenas de ter ouvido falar. Percebo também que, enquanto se está a escrever um livro, a paixão por ele deve ser tão grande que não deixa muito espaço a leituras (a não ser das páginas do próprio livro, lidas e relidas até à exaustão). Mesmo assim, tenho quase a certeza de que há gente que nunca escreveu uma linha que leu muito mais do que alguns escritores.
Já aqui falei de O Intrínseco de Manolo, um romance de estreia muito divertido e acutilante publicado recentemente com a chancela da Teorema. É a história de um casal alentejano – o Manel e a Maria – que a mediocridade da aldeia maldiz e acusa, mas cujo amor parece resistir a todas as safadezas, se não metermos a morte nisso. O seu autor, João Rebocho Pais, leitor apaixonado que passa demasiadas horas nos aviões, confessa que nunca tinha pensado publicar profissionalmente um livro, mas ainda bem que se enganou, porque o romance tem personagens que ficarão na nossa memória para sempre, por boas e más razões (um tasqueiro vestido de enfermeira e maquilhado não se esquece do pé para a mão). Amanhã, vamos ouvir, por exemplo, o que pensa Luís Filipe Borges da obra na sessão de apresentação pública que terá lugar na Livraria Buchholz pelas 19h00. Tenho alguma curiosidade em saber se a tónica será nas personagens algo disfuncionais e cómicas como Tonho ou Idalina, se, pelo contrário, o apresentador se deterá nas diferenças entre os Manéis e as Marias de Cousa Vã e as Conchitas e Manolos de Ciudad del Sol, ali mesmo ao lado. Mas, para isso, é mesmo preciso ir lá. Estão todos convidados.
Muitas revistas de livros em todo o mundo incluem uma secção de livrarias bonitas – e a nossa Lello, no Porto, aparece quase sempre na lista das mais belas. Contudo, não me parece que os portuenses, quando querem comprar livros, a frequentem, talvez por não responder com a mesma eficácia de uma Fnac ou de uma Bertrand aos seus pedidos e ter um acervo bastante limitado (pelo menos, da última vez que lá fui, foi isto que senti). Sem querer comparar, em Lisboa também há livrarias bem bonitas e, embora possa parecer suspeito (a livraria pertence de há uns tempos para cá à LeYa), tenho de confessar que a Buchholz é uma das minhas preferidas. Era lá que, nos meus tempos de faculdade, comprava os livros de poetas ingleses e, ainda que sinta alguma saudade da desarrumação desses já longínquos tempos, a verdade é que, arrumada e organizada, a Buchholz é ainda mais bonita. Mas, além da vantagem que é podermos comprar e vasculhar livros sem termos de ouvir uma música aos altos gritos (a mim irrita-me um bocado ter banda sonora para tudo), a verdade é que descobri há poucos meses que esta livraria tem uma mais-valia de peso: livreiros que gostam de ler, sabem o que andam a vender e, ainda por cima, são simpáticos (a Fernanda, a Cristina, a Paula, a Isabel e o Manuel que me perdoem entrar nestes pormenores, mas às vezes um belo sorriso ou uma informação na hora certa são decisivos para pôr alguém a ler determinado livro; e digo isto porque foi exactamente assim que trouxe, muito jovem ainda, para casa uma edição de A Comunidade, de Luiz Pacheco, que ainda guardo religiosamente). Por isso, se está cansado de demasiado barulho, movimento e filas para pagar e gosta de uma boa conversa sobre livros, a Buchholz é uma boa hipótese. Além do mais, é bonita.
Um septuagenário incorrigível descobre que tem Alzheimer e recusa-se a deixar este mundo sem primeiro fazer as pazes com um velho amigo que em jovem lhe roubou a namorada (e não só). Uma dentista, cansada da incomunicabilidade doméstica, recorre a um chat e encontra nele uma alma gémea que, afinal, conhece melhor do que pensava. Uma criança usa o computador que o avô lhe ofereceu para desabafar sobre uma crise familiar, na qual abundam segredos que se prendem com a Guerra Civil de Espanha, os grupos terroristas do País Basco e as convulsões em que a Europa mergulhou e transformaram o pai em mais um desempregado entre milhares. Estes são os três narradores de A Despedida de José Alemparte, segundo romance de Paulo Bandeira Faria, escritor português que reside na Galiza e se estreou com um livro sobre as feridas da Guerra Colonial e da descolonização intitulado As Sete Estradinhas de Catete, muito aplaudido pela crítica. Com um talento inegável para falar do duro e do difícil com humor e boa-disposição, este novo livro é uma reflexão muito bem apanhada sobre os dramas das sociedades contemporâneas e as mazelas que certos acontecimentos políticos deixam em famílias inteiras ao longo de décadas, sobretudo quando o silêncio substitui as conversas e gera equívocos insanáveis. Mas nada é insanável para José Alemparte, que não há-de partir desta vida sem pôr tudo em pratos limpos (tirando-os, muito provavelmente, da máquina de lavar loiça, com a qual imagina uma cena bastante arrojada que inclui uma senhora a quem recusou casamento). Obviamente, recomenda-se.
Confesso que, da primeira vez que ouvi o nome de Sandro William Junqueira, pensei tratar-se de um escritor brasileiro. O nome tinha um eco tropical, o que nem é estranho, agora que sei que este autor ainda jovem nasceu em África, mais propriamente na Rodésia. Não é que não goste de literatura brasileira, que fique claro, mas gosto de dar primazia aos novos romances portugueses e a verdade é que a geografia do parto não impediu Sandro William Junqueira de ser um escritor português. Tenho, pois, pena de não lhe ter prestado a devida atenção quando saiu o seu romance de estreia, intitulado O Caderno do Algoz, tendo-me estreado agora com o seu segundo, Um Piano para Cavalos Altos, publicado há poucos meses pela Caminho. Devo, desde já, avisar que não se trata de leitura para estômagos fracos, pois parte do encanto deste romance é justamente um lado violento e cru que é raro na literatura nacional. A história decorre numa cidade sem nome (a Cidade) onde há um muro que divide, grosso modo, os que vivem bem dos que passam mal. E, do lado pior, como se não bastasse, há ainda zonas definidas por cores – azul, amarela, castanha – com níveis de vida bastante diferentes. Existem também prisioneiros políticos, tortura, segredos, conspirações e revoltas; e, entre as personagens, todas identificadas por funções e/ou características (o Militar Coxo, o Ministro Calvo, a Ruiva, a Criada, o Operário, o Médico Loiro...), tece-se uma teia que é ao mesmo tempo pessoal e pública e que dá lugar a cenas muito dramáticas (o autor tem ligações ao teatro, e isso vê-se), caricatas, pesadas e até levemente nojentas (como aquela em que a Ruiva trata da candidíase introduzindo iogurte na vagina). Porém, apesar da violência que perpassa todo o romance, existe nele um lirismo devastador – achando eu que alguns dos pequenos capítulos, mesmo fora do contexto, funcionariam muito bem como poemas ou micro-narrativas poéticas para ler ou ouvir isoladamente. Por vezes, admito, senti-me um pouco incomodada, mas a sensação de que estava a ler um parente moderno de 1984, de George Orwell, e o desejo de saber o desfecho arrastou-me sem dar por isso até à derradeira página. E valeu a pena.