Num artigo publicado há mais ou menos um ano no suplemento «Babelia» do jornal espanhol El País, alguém elegia os «maiores» autores latino-americanos de sempre e, curiosamente (pelo menos para mim), o mexicano Carlos Fuentes aparecia antes de Vargas Llosa ou García Márquez, que arrecadaram o Nobel da Literatura. Fuentes, falecido em Maio deste ano, estreou-se na literatura com um livro de contos, em 1954, intitulado Los Días Enmascarados, e a sua obra posterior revelou-o como um mestre do género. Em 2008, para celebrar o 50.º aniversário da sua obra mais célebre (A Região mais Transparente), a sua editora resolveu compilar em dois volumes uma selecção dos seus melhores contos, seis dos quais estão reunidos agora em Contos Naturais, volume que, a par de Contos Sobrenaturais (ainda não lançado em Portugal, mas no prelo), inclui histórias sobre os seus temas dominantes: a crítica ao falso moralismo, as desilusões da revolução mexicana, a sátira às famílias ricas. Para quem gosta de contos, uma excelente leitura.
Há muita gente que gosta de brincar, dizendo que sou casada com a concorrência. Grosso modo, é verdade – o Manel e eu trabalhamos nos dois maiores grupos editoriais portugueses. Contudo, porque não nos dedicamos exactamente às mesmas áreas (eu faço sobretudo autores portugueses de ficção, ele faz sobretudo estrangeiros e também publica não-ficção), nunca o vi como um concorrente directo – nem me lembro de termos andado ambos atrás do mesmo livro ou autor nos últimos cinco anos. Mas esta história da concorrência tem hoje aqui um propósito distinto: é que, recentemente, descobri que tenho dois autores concorrendo como finalistas ao mesmo prémio: João Tordo com Anatomia dos Mártires e Ana Cristina Silva com Cartas Vermelhas (não posso, por isso, fazer claque por nenhum deles, o que é uma chatice). Por outro lado, a esse mesmo galardão – o Prémio Fernando Namora – concorrem ainda mais dois livros aqui da casa, ambos da Dom Quixote (um de Lídia Jorge, A Noite das Mulheres Cantoras, e o outro de Paulo Castilho, Domínio Público), o que, de certa forma, me torna «concorrente» das minhas colegas editoras, não podendo desta feita torcer por elas. Isto da concorrência tem muito que se lhe diga…
Tenho a certeza de que aprendi muito do francês que hoje sei com os álbuns do Tintim do meu irmão mais velho, de lombo redondo, capa dura e cheirinho a papel e tinta. E também estou certa de que enriqueci extraordinariamente o meu vocabulário da língua inglesa com a ajuda das letras de muitas canções dos Beatles e não só e de várias séries de televisão. Por outro lado, já ouvi, fascinada, um poeta da Eritreia declamar um longo poema num festival em Liège – e foi como se, mesmo não compreendendo uma palavra do que dizia, a comunicação se estabelecesse e fizesse explodir os aplausos assim que terminou; do mesmo modo, fui uma vez levada por uma amiga entendida em teatro a uma peça de uma companhia polaca: conhecia o enredo, mas não havia tradução – e não fez assim tanta falta entender o que diziam, porque a encenação e a cenografia eram, já de si, sublimes e encantatórias. Mesmo assim, fiquei perplexa quando recentemente li nos jornais que, por falta de verba, a Cinemateca iria deixar de legendar os filmes… Céus, como ver cinema russo, polaco, alemão, japonês, chinês, sem legendas? Terá algum sentido sentarmo-nos a ver um filme mudo que, por acaso, não é mudo? Quantos menos espectadores virá a ter a Cinemateca por causa da miserável poupança? A sua programação obedecerá doravante a uma selecção de filmes de línguas mais próximas e com mais falantes? Seremos privados de um certo cinema de qualidade? E se, de repente, não houvesse dinheiro para traduzir livros?
Há tempos, estive a moderar uma mesa no Rossio, no âmbito de um festival que comemorava a abertura do Ano do Brasil em Portugal. Na mesa, além dos portugueses João Tordo e João Ricardo Pedro, estavam três escritores brasileiros: João Paulo Cuenca, Amílcar Bettega e Paulo Lins, sendo que o último não é um ficcionista, embora tenha visto o seu livro Cidade de Deus adaptado ao cinema e, também por isso, transformado num sucesso de vendas. Cidade de Deus é o nome de uma favela carioca onde Paulo Lins cresceu e sobre a qual, já depois de licenciado, fez um aprofundado estudo antropológico que, contra todas as expectativas (do ensaio nunca se espera grande repercussão), acabou por ser um best-seller. Agora, passados vários anos, Paulo Lins regressou com um novo livro – como ele diz, com páginas e páginas de bibliografia –, mais um estudo com todas as condições de se tornar um must-read, sobretudo no país de origem. Trata-se de Desde Que o Samba É Samba e fala, claro, dessa coisa maravilhosa que todos invejamos e que só o Brasil possui: o samba... A capa já dá vontade de dançar – e diz quem leu (infelizmente ainda não é o meu caso) que se lê como um romance.
Li há muito tempo um texto de Pessoa, no qual o poeta advogava que um bom livro para crianças tem de ser lido com igual prazer por todos os adultos que lhe deitem a mão. É verdade que há obras de literatura infanto-juvenil que são de tal beleza que não deixarão nenhum adulto indiferente. Lembro-me, por exemplo, de Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, de O Principezinho, de Saint-Exupéry, ou mesmo de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, que, apresentando-se como um livro infantil, se calhar nem o é. Porém, fiquei ligeiramente admirada quando me disseram que mais de metade dos leitores da série Harry Potter eram adultos (e o mesmo acontece com a trilogia vampiresca de Stephenie Meyer) e que alguns deles, envergonhados, forravam os livros para que ninguém descobrisse que era naquilo que gastavam as leituras. Conheço também vários adultos – e alguns bastante lidos, garanto – que compram regularmente livros para crianças por se apaixonarem pelas ilustrações e não lhes resistirem. No entanto, não tinha a noção de que 55% dos livros infanto-juvenis eram lidos por adultos, o que descobri recentemente num estudo publicado na Publishers Weekly, que atesta que 78% dos compradores de livros infanto-juvenis os adquirem para consumo próprio. Passo-vos o link mais abaixo. Será que estamos seriamente a infantilizar-nos?
Tenho a sorte de ter nascido numa família de leitores. O meu pai era um homem culto e a minha mãe, que nem sequer pôde concluir o liceu, é hoje, aos 88 anos, uma leitora voraz de livros e jornais. Os meus irmãos gostam todos de ler, embora tenham gostos muito distintos, e – não sei se será herança genética –, à excepção de um dos meus sobrinhos, os que já têm idade para ler com regularidade lêem, felizmente, com regularidade. A minha única sobrinha adolescente (os outros já são adultos ou ainda são crianças) começou, de resto, a ler muito cedo os livros da mãe – e papou aos doze ou treze anos obras como O Perfume, de Süskind, ou O Sítio das Coisas Selvagens, de Dave Eggers, que me pareceram leituras talvez demasiado exigentes para a pimpolha que era. Nada contra. Também eu lia os livros da minha irmã mais velha e, só quando a eles voltava noutra idade, percebia aquilo que me passara ao lado. De qualquer modo, nessa montra meio tonta e infantil que é por vezes o Facebook (na qual as pessoas avisam os supostos amigos de que vão ali tomar um cafezinho, que cozinharam bacalhau com batatas – e colocam as fotografias – ou que estão aborrecidas com o patrão), essa minha sobrinha depositou as suas opiniões apaixonadas sobre um livro de Jorge Amado que andava a ler. E eu fiquei orgulhosa e pus lá um «Gosto» e um comentário entusiástico, aconselhando outras obras do autor e falando tu-cá-tu-lá com ela como se andássemos juntas na escola. Espero que o futuro lhe traga muitos livros bons, não a afaste nunca da leitura e, sobretudo, a aproveite bem.
Na véspera do lançamento da minha Poesia Reunida, recebi alguns telefonemas e mensagens de convidados dando-me uma «nega». A razão era compreensível. Exactamente à mesma hora, ia decorrer uma outra apresentação pública a que alguns não podiam mesmo faltar, tratando-se de um livro póstumo de um autor a quem todos devemos o grande impulso na criação da Segurança Social (agora, esqueçam-se da TSU, pois estamos a falar de como tudo começou). Refiro-me a José Niza, que muitos conhecem sobretudo da música – uma vez que foi o compositor de numerosas canções vencedoras do Festival RTP da Canção, entre as quais E Depois do Adeus, que se tornou um marco do 25 de Abril –, mas que foi também médico e deputado pelo Partido Socialista à Assembleia da República pelo círculo de Santarém e colaborou decisivamente na defesa dos direitos de autor no campo da música. O livro, chamado Golden Gate, Um Quase Diário de Guerra, baseia-se na experiência de Niza como médico em Angola durante a Guerra Colonial e reúne a correspondência enviada quase diariamente à mulher durante esse período negro. Ora mais contundente e político, ora mais intimista, este é um testemunho importante que todos devemos ler para não esquecermos o que se passou nem deixarmos que se repita.
Embora os Portugueses se auto-menosprezem e achem que tudo o que vem de fora é que é bom (não todos, claro, mas mesmo assim bastantes), não somos menos do que ninguém – e estou muito feliz por saber que a nossa literatura soma e segue. Há pouco tempo, fui brindada com a bela notícia de que a tradução francesa de O Bom Inverno está na lista de finalistas do Prémio Europeu de Literatura (que já foi ganho há uns anos por Dulce Maria Cardoso com Os Meus Sentimentos); e, uns quinze dias depois, leio com alegria que Lobo Antunes e Gonçalo M. Tavares são ambos finalistas do Médicis em França, que premeia o melhor romance estrangeiro (respectivamente pelas obras O Arquipélago da Insónia e Viagem à Índia) e cujo vencedor será anunciado já em Novembro. Mas não é tudo: o romance de Lobo Antunes repete a proeza na longlist do Fémina, prémio atribuído por um júri exclusivamente feminino a uma obra de ficção, para o qual concorre na mesmíssima posição a tradução francesa de Livro, de José Luís Peixoto, que, entre outras coisas, fala da emigração portuguesa em França. E, como se não bastasse, o romance A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe, é finalista do PT no Brasil. Com tanta coisa que há para lamentar, pelo menos em termos da nossa produção literária temos muitas razões para andarmos satisfeitos.
Já não sei há quantos anos – uma dúzia, pelo menos – me dedico com especial afinco à publicação de novos autores portugueses (novos no sentido em que estão a começar, isto para que Joca Martinho, leitor deste blogue, não pense numa espécie de «pedofilia literária» que sacrifique os menos jovens). Li, por isso, centenas de originais nas várias editoras por que fui passando; e é impossível, decorrido tanto tempo, lembrar-me de todos os textos que recusei e dos nomes dos seus autores, embora uma ou outra vez ainda apareça um título que toca uma campainha ou o início de uma narrativa que me parece um déjà-vu. Mas recentemente aconteceu-me uma história bonita. O meu colega Francisco Camacho acaba de publicar um romance do psicólogo Nuno Amado intitulado À Espera de Moby Dick. Fui atraída pela capa, que é belíssima, e mais tarde o João Tordo falou-me dele com imenso entusiasmo. Conhecia o nome de Nuno Amado de livros de não-ficção, pois publica também obras na sua área profissional; mas, francamente, não me dizia nada em termos de literatura. E não é que, quando o conheci pessoalmente, ele me confessou que eu lhe teria recusado há dez anos um livro, dizendo-lhe, porém, que, se a obra fosse tão bem escrita e interessante como a mensagem que a acompanhava, não teria hesitado em publicá-la? Nuno Amado confessou-me que eu estava coberta de razão e, por isso, deitou esse manuscrito fora e se deu tempo de amadurecer. (Esperou dez anos!) Agora, fiquei curiosa sobre o novo livro. É mais um para a minha já longa lista...
Dedico-me a ler – e ler é, grosso modo, a minha profissão. Porém, não lemos hoje todos e a toda a hora? Num artigo que o jornal espanhol El País publicou há algumas semanas na secção de Cultura, a autora, Virginia Collera, fala de leitura consciente e inconsciente e refere que nunca lemos tanto como actualmente, pois o nosso cérebro está permanentemente a ser convocado pelo texto, seja de uma factura de electricidade, dos ingredientes da caixa de cereais do pequeno-almoço, das tabuletas que nos indicam direcções nas auto-estradas ou dos cartazes publicitários com que nos cruzamos a caminho do emprego: leitura, quase sempre, inconsciente. A consciente pode estar presente quando pegamos no jornal ou num romance, quando fazemos uma pesquisa no Google ou quando queremos saber o que publicaram no nosso mural do Facebook. Mas o verbo, «ler», é o mesmo, embora a atitude seja completamente distinta. Também quanto ao livro, as coisas já não são todas iguais. Se até há pouco tempo o vocábulo significava «um conjunto de folhas de papel encadernadas constituindo um único volume», a verdade é que o digital veio mudar essa acepção e há já quem proponha uma definição que se preocupa apenas com o conteúdo e ignora a forma. O problema é que, segundo estudos realizados sobre os hábitos de leitura, parece que as pessoas estão a perder a paciência para a leitura pausada, porque a leitura inconsciente, sobretudo na Internet, as desmotivou para o que é profundo e requer esforço e lentidão. Sei que não é o caso dos leitores deste blogue, mas será que a leitura como eu a sinto estará ameaçada?