Um poeta meu conhecido, que organizava sessões em escolas secundárias com o intuito de interessar os jovens pela poesia, queixava-se há tempos de que a miudagem gosta cada vez menos do género. Calculo que as obras selecionadas (e, sobretudo, as não selecionadas) pelos programas de ensino tenham alguma coisa a ver com isso, mas é possível que, nestes tempos modernos, a forma de fazer chegar o texto aos alunos tenha de fazer uso de diferentes estratégias. Lembro-me dos filhos de uma amiga que estudaram no Liceu Francês e que, aos treze anos, já tinham «papado» Racine, Corneille e Molière sem dor; o professor distribuía os papéis aos alunos durante a aula – e a leitura transformava-se em representação teatral, substituindo-se os actores a cada nova lição. Os jovens divertiam-se e, sem esforço, liam os maiores dramaturgos franceses. Agora, no Reino Unido, o governo decidiu criar um concurso nacional de declamação de poesia, chamado Poetry by Heart, para alunos com mais de 10 anos. O «campeonato» pretende interessar os estudantes pelo texto poético, transformando a leitura e memorização de poesia numa espécie de desafio. Cada poema – de um total de 130 escritos maioritariamente a partir do fim da Primeira Guerra Mundial – vem acompanhado de uma biografia do respectivo autor e há um site de Internet que inclui uma longa lista de textos possíveis. Os alunos que conseguirem passar as eliminatórias regionais irão então a Londres, onde a final terá lugar, ganhando desde logo um fim-de-semana integralmente pago. Original, não?
Já aqui referi uma vez que, nas listas elaboradas em Dezembro pelos jornais, à guisa de balanço, dos livros do ano, constam quase sempre títulos que, efectivamente, não são desse ano, obras escritas e publicadas meio século antes, mas que, por virtude de uma nova tradução (assinada por alguém que imponha respeito) ou de uma reformulação (como a opção de juntar num só volume o que antes só estava disponível em vários), acabam por ganhar estatuto de novidade. Na lista que o suplemento «Actual» do Expresso publicou na semana passada sobre o que aí vem de peso em 2013 no que toca a livros, este fenómeno repete-se – e temos, por exemplo, destaque para Lolita, de Nobokov, que pertence ao catálogo da Teorema há muitos anos, mas agora sai noutra chancela com uma tradução de Margarida Vale de Gato. É simpático, se não completamente merecido, este respeito pelos grandes tradutores que, ao longo de muito tempo, nem sequer tinham direito ao seu nome no frontispício dos livros que traduziam, quase sempre remetidos à ficha técnica em caracteres minúsculos. Antes disso, porém, nos anos 40 ou 50 do século passado, quem traduzia era digno de consideração – e um dia destes, num velhinho livro que ando a ler, encontrei até o excessivo «Dr.» antecedendo o nome do senhor responsável pela tradução. O respeitinho é muito bonito.
Gostava de ser mosquinha para poder acompanhar as discussões dos jurados em determinados prémios literários – sobretudo quando não encontro razões claras para as suas escolhas. Imagino que as personalidades de uns tenham uma importância decisiva no sentido de voto de colegas mais influenciáveis e adorava assistir à argumentação que os leva a defender determinado livro em detrimento de outro. Recentemente, li que foram abertos os arquivos da Fundação Nobel relativos ao ano de 1962, no qual o contemplado com o galardão para a Literatura foi o norte-americano John Steinbeck, considerado por muitos académicos um escritor menor (tendo em conta nomes como Faulkner ou Hemingway, claro, porque a verdade é que, ao pé de certos escritores actuais, podíamos considerá-lo bastante maior). As «actas» revelaram então que Steinbeck só foi agraciado com o Nobel desse ano por falta de concorrência. Dá para acreditar? A selecção final incluía Karen Blixen (que morrera entretanto, e o prémio não pode ser póstumo) e o dramaturgo Jean Anouilh (mas a França tinha tido o Nobel dois anos antes); mas os verdadeiros adversários de Steinbeck eram Lawrence Durrell (que concluíra o Quarteto de Alexandria dois anos antes) e o poeta Robert Graves, ambos britânicos. Porém, quanto ao primeiro, alguns jurados consideraram dissuasivo da atribuição do prémio o erotismo manifesto do Quarteto; e, quanto ao segundo, ninguém queria premiar um poeta inglês enquanto Ezra Pound estivesse vivo (porque era claramente superior, mas não podia receber o prémio por causa das suas ligações ao fascismo italiano). Conta-se que o próprio Steinbeck, ao receber a notícia, terá comentado imediatamente que não merecia o Nobel; mas, pelos vistos, a sorte também protege os sensatos.
Quando comecei a ler o livro de que hoje falarei, senti, não por acaso, reminiscências de outro título do autor, O Inocente, cuja acção decorre em Berlim e envolve os preparativos, num subterrâneo, da construção do Muro entre as duas Alemanhas que, felizmente, veríamos ser desmantelado em 1989. Mel, de Ian McEwan, tem o mesmo mistério e o mesmo tom de secretismo, mas passa-se nos anos 70 do século passado numa Inglaterra que anda seriamente irritada com os primeiros avanços do IRA e a força da União Soviética. A protagonista do romance chama-se Serena Frome (não, Mel é o nome de uma operação secreta, não de uma pessoa ou dessa substância que as abelhas produzem) e é uma rapariga bonita, filha de um bispo de uma cidade pequena, que acaba por tirar o curso de Matemática na Universidade de Cambridge, embora goste sobretudo de literatura. Longe da alçada da família, depois de vários relacionamentos curtos e falhados e de muitos livros lidos, Serena envolve-se com o tutor de um ex-namorado, com quem aprende quase tudo e de quem se separa em circunstâncias bastante inesperadas. Mas é, no fundo, ainda com a sua «ajuda» que ingressa nos Serviços Secretos britânicos no fim da licenciatura, nos quais, afinal, as suas leituras lhe vão dar um jeitão. O resto – lamento muito – não se pode contar, porque, em matéria de espionagem, as surpresas são muitas a cada novo capítulo – e às vezes bastante desarmantes, diga-se de passagem. Embora prefira outros títulos deste autor, este Mel é tudo menos doce, mas deixa-nos a pensar na forma como são recrutados os espiões e no cinismo e na frieza com que determinadas operações são levadas a cabo pelos Serviços Secretos.
Já aqui falei mais de uma vez de um projecto maravilhoso que envolve poesia na cidade do Porto – e hoje é sobretudo aos leitores do Porto (e arredores) que dirijo este post. João Gesta, fantástico programador no Teatro do Campo Alegre, inventou há anos as Quintas de Leitura, que são dos mais bem-sucedidos eventos culturais que conheço, e – graças a deus – nunca mais desistiu delas. Uma quinta-feira por mês, há um espectáculo dedicado a um poeta com um livro lançado no ano anterior e, desta feita, coube-me a sorte de ser a convidada. No dia 31 de Janeiro, estarei, assim, no Teatro do Campo Alegre, numa sala com lotação para 300 pessoas (que medo...), a conversar com valter hugo mãe no início e, a seguir, a ler poemas ao lado de diseurs profissionais que tornam as nossas palavras mais bonitas. Mas não é tudo. As imagens projectadas no ecrã enquanto dura a conversa são belíssimas fotografias de Pedro Teixeira Neves que se casam com os poemas na perfeição – e haverá, ainda na primeira parte, um momento de guitarra e outro de dança. Depois do intervalo, quando eu já me tiver descontraído do sufoco que é estar em palco, Júlio Resende sentar-se-á ao piano ao lado da fadista Aldina Duarte, para quem já escrevi letras, e esse será seguramente um dos pontos altos da noite. As reservas de bilhetes já começaram (e diz-me João Gesta que mais de metade da sala está preenchida). Sei que prometi um lançamento no Porto da Poesia Reunida quando tivesse disponibilidade, mas haverá melhor lançamento do que este?
Os jornais têm sido unanimemente entusiásticos com um livro recente de uma jornalista, Susana Moreira Marques, que escreve habitualmente no Jornal de Negócios. Muito difícil de classificar – porque, sendo uma reportagem e um livro de viagens, compreende também momentos de grande literatura e testemunhos de evidente crueza – Agora e na hora da Nossa Morte – assim se chama a obra – «rouba» o título a um livro de poesia de José Agostinho Baptista para falar de uma visita a um grupo de doentes terminais em Trás-os-Montes, abrangidos por um programa de prestação de cuidados paliativos ao domicílio da responsabilidade da Fundação Calouste Gulbenkian. Osso duro de roer, porque estar tantos dias ao lado de pessoas que sabem a morte certa e próxima tem forçosamente de exigir muita coragem, muito estofo, e ao mesmo tempo de virar do avesso a cabeça de quem está vivo e com saúde, emprestando-lhe uma perspectiva da existência inteiramente nova. Fulgurantes, para mim, foram as primeiras quarenta e tal páginas – notas de viagem curtas, por vezes de apenas uma linha, cheias de poesia, profundidade e sentimento, que nos deixam adivinhar as aldeias agrestes com as suas neblinas e as famílias enlutadas mesmo antes de os seus queridos as deixarem. A seguir, vêm os relatos na primeira pessoa, como entrevistas não editadas, de doentes amaldiçoados ou de membros das suas famílias transformados pelas circunstâncias, unidos na desgraça, pesados de lembranças e culpas e desejosos de redenção. Por fim, as fotografias de André Cepeda dão rostos às vozes e mostram os lugares da tragédia que se avizinha. Não saímos os mesmos destas páginas.
Cada vez é mais difícil ficar vivo depois de morto. Não, não me enganei. Aqui há dias comentava com um colega que, nos tempos que correm, se o escritor não estiver aí de carne e osso, as vendas dos seus livros decaem imediatamente. Como diz Vargas Llosa, vivemos cada vez mais numa civilização do espectáculo – e, por isso, estar morto pode ter custos elevados. Embora se reeditem cada vez mais clássicos, a verdade é que muitos dos autores desaparecidos correm o risco de deixar de ser lidos a curto prazo. E digo isto porque me contaram uma história que vem confirmar como a morte pode matar não só o autor, mas também a importância da obra que legou. Duas escolas portuguesas foram recentemente fundidas, dando origem a um moderníssimo edifício, cheio de comodidades que as velhas não tinham e com capacidade para albergar a totalidade dos alunos que as frequentavam. Essa escola recebeu o nome de António Damásio, português de quem todos, naturalmente, nos orgulhamos e que, se não me engano, está hoje mesmo em Portugal para abrilhantar uma sessão nesse novo edifício que carrega o seu nome. Nada de estranho, se não soubéssemos que um dos estabelecimentos de ensino «evaporados» se chamava, não por acaso, Escola Vitorino Nemésio, escritor português que é autor de um dos mais belos romances de sempre – Mau Tempo no Canal – e que, além de poeta e ficcionista, foi um grande professor e comunicador (os mais velhos leitores deste blogue recordar-se-ão seguramente do programa de TV Se Bem Me Lembro). Ora, não tendo nada contra Damásio, aborrece-me mesmo assim que deixemos de ter o nome de Nemésio numa escola lisboeta – e pergunto-me se isto não quer dizer que, por um lado, quem tomou a decisão não tem noção da importância do autor açoriano na literatura portuguesa e, por outro, que já quase ninguém o lê...
As férias também servem para nos pormos em dia com o cinema e, nesses dias livres que decorreram entre o Natal e o Ano Novo, vi ou revi alguns DVD com o Manel (Tabu e Aconteceu no Oeste, por exemplo), filmes na TV (Casablanca e West Side Story, entre outros) e até uma adaptação do romance de Tolstoi, Anna Karenina, numa sala de cinema de Lisboa. Tenho de dizer que, embora Leonard Bernstein fosse um músico genial, Amor sem Barreiras (a tradução de West Side Story) me pareceu irremediavelmente datado (mesmo que o conflito entre modernos Jets e Sharks subsista); mas, no geral, os filmes velhinhos continuam bem mais interessantes do que o novo. Tolstoi merecia, efectivamente, melhor. Mesmo que Keira Knightley seja muito bonita e esforçada, e exista na mise-en-scène uma aproximação ao teatro que é uma ideia muito bem arranjada e de um bom gosto a condizer com a época e a história, a verdade é que falta pathos a este filme e, à excepção de Jude Law, que é um marido perfeito, tudo carece da garra e da glória que genuinamente esperávamos. Bem sei que é de louvar a coragem de quem se mete com a literatura russa, mas, mesmo assim, foi uma desilusão.
Há muitos anos, ainda na Temas e Debates, publiquei um livro de J. M. Coetzee que era uma mistura de ficção e não-ficção; tomando a história inventada de uma conferencista que devia fazer uma palestra numa universidade sobre literatura, mas se debruçava inesperadamente sobre o tema dos direitos dos animais, o livro apresentava na íntegra a sua palestra fictícia, à qual agregava os comentários de quatro especialistas reais, entre os quais o filósofo Peter Singer. Era uma obra francamente original intitulada As Vidas dos Animais, mas vendeu-se muito mal na altura em que saiu, quiçá devido ao seu carácter híbrido. E, no entanto, por um bambúrrio de sorte, Coetzee venceu o Nobel da Literatura nesse ano e o livro em causa era um dos poucos da sua autoria disponíveis no mercado. Resultado: tornou-se um êxito de vendas em pouco mais de um mês... O anúncio dos prémios e a sua divulgação nos meios de comunicação social têm um efeito inegável nos consumidores, mesmo no que toca à literatura. Em 2011, publiquei o primeiro romance de Nuno Camarneiro, No Meu Peito não Cabem Pássaros, que vendeu moderadamente, como costuma acontecer a obras de estreia. Porém, assim que se soube que o autor vencera o Prémio LeYa com um inédito que há-de ver a luz lá para Março, as livrarias começaram a encomendar desenfreadamente o romance anterior, foi preciso reeditá-lo a correr, e na semana que antecedeu o Natal as vendas devem ter sido mais do que no período que decorreu entre a publicação e o anúncio do prémio. É verdade que Nuno Camarneiro foi entrevistado por todas as televisões e jornais nacionais e apareceu nos noticiários à hora do jantar, entrando na casa de muitos portugueses que se calhar não frequentam livrarias regularmente, mas estaria condenado a ser um escritor praticamente desconhecido se não tivesse ganho o prémio?
Tenho um grande respeito por uma série de jovens que adoram livros e se preocupam em divulgar coisas boas em termos culturais num país em que a televisão acha que serviço público são espectáculos de variedades absolutamente decadentes e concursos em que, para ganhar, basta um golpe de sorte. Uma dessas profissionais é Maria João Costa, da Rádio Renascença, que fez, entre outras coisas, uma belíssima reportagem sobre Agustina Bessa-Luís e apresenta há muito o programa Ensaio Geral. Os Booktailors, outros jovens que dedicam a vida ao livro e à edição, juntaram-se a este programa radiofónico para lhe darem uma vida diferente e, de há uns meses para cá, com a parceria da Livraria Férin, organizam a sua gravação ao vivo. Assim, uma vez por mês (na primeira sexta-feira), o Ensaio Geral não é apenas para os ouvintes da Renascença, mas também para quem queira deslocar-se à dita livraria com o objectivo de assistir à entrevista, ver o convidado de carne e osso e ainda, já depois de terminada a gravação, fazer as perguntas e intervenções que entenda convenientes. Hoje à tarde, pelas 18h30, serei eu a “actriz” deste ensaio geral. Vou enquanto poeta, mas nunca se sabe se não farei uma perninha como blogger... Estão todos convidados.