Lopes foi, curiosamente, um dos apelidos usados por Ricardo Araújo Pereira para uma das suas figuras (o Lopes da Silva, lembram-se?), e é de novo um humorista, Luís Afonso (o autor de Bartoon), quem o vai buscar para nomear um "escritor pós-moderno" que, antes mesmo de publicar o livro que escreveu, chama um realizador para o adaptar ao cinema, esperando, afinal, que o filme acabe por fazer vender o livro e ambos lucrem com isso. O objecto é singular: chama-se O Comboio das Cinco e tem na sobrecapa um círculo recortado que deixa ver um relógio marcando as 12:10, o mesmo que, na capa, pertence à fotografia de uma estação ferroviária na qual um passageiro (o actor e diseur Pedro Lamares) aguarda, entediado, um comboio. Lá dentro está a história escrita pelo tal Lopes, propositadamente desconexa e desengraçada (o escritor pós-moderno não é especialmente dotado), entremeada com cartoons que reproduzem a conversa sobre a adaptação cinematográfica entre Lopes e o realizador, este bastante mais lúcido e naturalmente desconfiado em relação ao sucesso do empreendimento. O enredo envolve um casal desavindo, sempre às turras, que espera um comboio que talvez não venha (ele professor universitário, ela jornalista), mas o mais original é que Lopes assinala várias passagens do texto, identificando-as como de qualidade literária, de crítica social, de profundidade, de superioridade intelectual do narrador ou simplesmente como lugares-comuns. Não nego que prefiro o Luís Afonso das tiras diárias no jornal Público, mas vale a pena espreitar este livrinho que se lê em duas horas, nem que seja para reflectir no papel do escritor nos dias que correm.
Espero que tenham tido umas boas festas, mesmo que o clima do País não esteja para grandes alegrias. O melhor, contudo, é levantar a cabeça e encarar 2013 com coragem e, claro, bons livros, que esses não hão-de faltar. O que ando a ler devo-o a dois comentadores deste blogue, Anabela F. e Mário Rufino (desculpem se me esqueci de mais algum), que aqui o aconselharam; e é uma obra estranha, inclassificável e absolutamente imperdível (mas às vezes tão perturbadora que temos de fazer, aqui e ali, uma pausa para recuperar o fôlego). Trata-se de uma espécie de romance gráfico e autobiográfico, considerado um dos livros do ano pelo New York Times, que tem por subtítulo Uma Tragicomédia Familiar, embora a vertente comédia me tenha parecido bastante negra. A sua autora, Alison Bechdel, é sobretudo conhecida como ilustradora e autora de BD, embora mantenha um diário desde os dez anos, que lhe serviu, de certa forma, para compor esta maravilha que é Fun Home, não traduzido na edição portuguesa porque este "fun" é também a abreviatura de "Funerária", uma vez que a personagem central - o pai de Alison - dirige o negócio de gatos pingados da família, ao mesmo tempo que lê Proust e Joyce, vive obcecado pela jardinagem e pela decoração da casa, é tremendamente exigente com os filhos e, não menos importante, se diverte às escondidas com rapazes, alguns deles menores... A descoberta da homossexualidade do pai por Alison, quase na mesma altura em que ela própria revela aos pais que é lésbica, acaba por criar uma teia de culpas e mal-entendidos no momento em que o progenitor é atropelado e não se chega a saber se foi acidente, se suicídio. E essa morte e a dúvida à sua volta são o motor para a narradora nos contar a vida da família Bechdel, na qual todos, afinal, parecem viver sozinhos (a capa dá, de resto, uma boa ilustração disso), carregados de mistérios, complexos e solidão. Um caso sério de literatura culta (as leituras do senhor Bechdel são de respeito) aos "quadradinhos". A não perder.