Tenho muitas razões para estar orgulhosa nesta quinta-feira, embora a extraordinária Ana Bernardo, que às quintas está ocupada, me deva estar a rezar pela pele… Hoje faremos a apresentação pública do último romance de João Tordo, O Ano Sabático, com apresentação de Luís Ricardo Duarte e um bónus no fim (António Zambujo e Ricardo Cruz vão oferecer-nos, de certeza, um momento musical inesquecível). Além de achar este um dos melhores livros do autor, o tema dos gémeos, do duplo e da identidade apaixona-me desde sempre – e O Ano Sabático fala disso mesmo, de um par de músicos que nunca se viram mas cujo cérebro produz estranhamente a mesmíssima composição. E, para que conste, o escritor deu-me, além do seu romance, um presente suplementar, incluindo-me entre as pessoas a quem o dedica. Vai ser, também por isso, uma ocasião especial. Se quiserem aparecer, estão convidados. Senão, leiam o livro.
Recebi um convite da Universidade das Baleares para participar numa mesa-redonda no âmbito de uma semana dedicada à cultura portuguesa que se realiza daqui a uns dias; e, no início, até pensei que era por ter um dos meus livros traduzido por uma editora de Maiorca chamada El Gall; mas, quando perguntei em que língua deveria exprimir-me (leio catalão por intuição, mas não sei falar), responderam-me que, obviamente, em português – e que queriam até que lesse alguns dos meus poemas, pois os alunos que assistiriam a estas jornadas conheciam e estudavam a nossa língua. Só então me recordei de que Perfecto Cuadrado, um grande especialista e tradutor da nossa literatura, é professor de Literaturas Galega e Portuguesa naquela universidade e de que o convite partira dele e do seu departamento. Umas semanas mais tarde, soube também, por uma crítica muito elogiosa no El País, que outra editora de poesia em Espanha, a Pre-textos, publicara uma antologia de poemas de Jorge de Sena em castelhano – um risco grande, tendo em conta que agora ninguém parece querer editar escritores mortos – e fiquei muito contente. Quando lá fora se interessam por nós – seja ensinando ou estudando a nossa literatura, seja traduzindo-a e publicando-a – sentimo-nos orgulhosamente acompanhados.
A matéria-prima da literatura é a língua – e houve sempre quem se perguntasse como é possível, a partir de um número de vocábulos aparentemente limitado (é sempre possível criar neologismos, mas os dicionários não crescem assim tanto de um século para o outro), construir um texto com frases e expressões que, durante a leitura, parecem tantas vezes combinações nunca antes usadas por ninguém. É frequente surpreendermo-nos com a forma como determinado escritor inventa uma linguagem própria reinventando a língua, ao produzir, por exemplo, um efeito inesperado com duas palavras que não costumam aparecer juntas ou subverter uma regra gramatical para virar tudo do avesso, mas a seu favor. Há também a ideia (e em pintura, com a vulgarização das instalações, ela foi muito difundida) de que tudo está já criado e não se consegue ir mais longe em termos inventivos. O fim da literatura foi, de resto, anunciado várias vezes ao longo do século passado; no ano em que eu nasci, por exemplo, Maurice Blanchot defendeu que, ao tornar-se reflexão sobre si mesma, a literatura caminhava infalivelmente para a morte. Nesse mesmo século XX, porém, escreveram-se muitos romances que eram sobre a escrita de romances e também sobre escritores mortos e vivos e personagens de outras obras e, consequentemente, da obra que se estava a escrever. Alguns eram pura literatura e os seus autores até ganharam o Nobel... E cá estou eu, 53 anos após o vaticínio de Blanchot, todos os dias a ler literatura e todos os dias à procura dela. Será que vai chegar um tempo em que, por mais que passe páginas e páginas, nada do que leia caiba nessa palavra a que hoje chamo literatura?
Sabemos que um SPA é o que nos convém quando, ultra-stressados, precisamos de relaxar com a ajuda de banheiras com esguichos, águas aquecidas, massagens com óleos de perfumes inebriantes ou duches Vichy. Mas a feminina SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) é, realmente, o que me tem valido para receber regularmente sem stress os proveitos das letras que escrevo há uns anos, pois, sozinha, seria incapaz de descobrir quantas vezes passam na rádio e na televisão essas canções e de cobrar os respectivos direitos... Hoje, porém, vou à festa da SPA com um propósito diferente: conhecer os premiados desta sociedade em várias áreas, embora a que mais me interessa seja o romance, pois publiquei dois dos três candidatos ao galardão: O Feitiço da Índia, de Miguel Real, e O Rei de Monte Brasil, de Ana Cristina Silva. Ainda que Mário Zambujal seja um feroz concorrente de ambos, há que ter fé e confiança... E relaxar, como num verdadeiro SPA…
Tenho todas as razões e mais uma para adorar as Correntes d’Escritas, encontro de escritores de expressão ibérica que se realiza anualmente na Póvoa de Varzim desde 2000 – e essa «mais uma» é porque foi lá que o Manel e eu decidimos que queríamos passar mais tempo juntos (e, até hoje, é como estamos). A organização é inexcedível (também em mimo e afecto) e o ambiente, por isso, único (nunca lá assisti a invejas ou ciumeira, o que seria natural com tanto escritor presente). Este ano, o primeiro acto cabe a João Lobo Antunes, que falará logo a seguir ao almoço das suas ligações aos livros, depois de termos sabido, ao fim da manhã, quem arrecadou, entre os poetas nomeados, o Prémio Literário Correntes d’Escritas-Casino da Póvoa e de nos ter sido oferecido um exemplar da revista das Correntes, dedicada desta feita a Urbano Tavares Rodrigues. Estarão no certame muitos autores para debates e mesas-redondas (eu entre eles) e, como já vai sendo costume, prestar-se-á homenagem a dois escritores entretanto desaparecidos (o brasileiro Lêdo Ivo e o português Manuel António Pina) e entregar-se-ão os prémios de edição dos Booktailors. Acaba sempre a correr, e este ano – por causa dos orçamentos – terá menos um dia e por isso saberá a pouco. Mas é tão bom que alguns municípios ainda gastem as suas verbas em cultura que não nos podemos queixar...
P.S. Amanhã não vai haver post, desculpem – mas tenho de me preparar para a minha mesa, que será à noite. Até segunda.
Às vezes, há livros que nos chamam de outro tempo; e uma tarde destas, porque me pediram que recordasse um título que gostaria de voltar a ver circulando pelas nossas livrarias, comecei a olhar as estantes lá de casa e dei com um desses títulos que nos transportam imediatamente ao passado como máquinas do tempo: um romance de que gostara tanto quando o descobrira que nunca me atrevera a relê-lo, com medo, afinal, de que a magia se perdesse. Mas, enfim, agora ele parecia chamar-me da prateleira e era conveniente dar-lhe ouvidos. Li o texto das badanas e, tratando-se de um Prémio Planeta (coisa de que já não tinha ideia, confesso), se calhar a decepção nem seria assim tão grande – se chegasse a haver decepção, claro. Por outro lado, voltar a ele era um exercício engraçado de auto-conhecimento, de busca de um eu antigo e quiçá esbatido ou enterrado que me apetecia (re)conhecer. Bem, o romance é Resta a Noite, de Solelad Puértolas, e tinha-me mesmo enchido as medidas há uns vinte anos, até porque havia em mim qualquer coisa da protagonista, além uma viagem a um país exótico e muita solidão antes e depois dela. Não estava muito enganada quanto a isso, mas, excepto a solidão, essas memórias eram uma pequeníssima parte de uma intriga que, afinal, metia espiões ingleses e alemães, uma família aristocrata num palacete, um rapaz frágil e bastardo fugido para Honolulu, uma irmã farta do seu casamento e muitos outros factos adormecidos. E a tradução, ui, melhor nem falar, cheia de distracções em que, na altura, não devo ter reparado, até porque sabia muito menos castelhano do que hoje. O romance é ainda interessante, não me interpretem mal, mas o que me desiludiu a sério foi pensar que achei uma obra-prima um livro que agora consideraria apenas mediano, mesmo que galardoado com o Prémio Planeta. Reler tem estes perigos...
Quando eu era miúda, havia em Portugal muito pouca coisa que pudéssemos ler, sobretudo se tivermos como termo de comparação o excesso que hoje existe. Lembro-me de irmos com a minha avó a uma papelaria chamada Perdiz na rua onde morávamos e de o senhor nos aconselhar, a mim e ao meu irmão mais novo, algumas leituras. Num dos últimos sábados, recordei, de resto, com detalhe uns livrinhos de capa cartonada ali comprados, que eram uma série de biografias de homens e mulheres ilustres, destinadas sobretudo a rapazes, mas que – provavelmente por as preferir às histórias que me cabiam em sorte – também eu li na infância. E dessa colecção faziam parte Pasteur ou Marie Curie, mas também os presidentes Washington e Lincoln (tenho ideia de que eram traduções de edições americanas). Ora, foi justamente por ter ido nesse sábado ver o filme de Spielberg, Lincoln (gostei muito), que de repente me vieram à memória algumas coisas que lera nesse velho livro do meu irmão (salvo erro de capa arroxeada) e comecei a tentar compor na minha cabeça a colecção completa. Tive então, sei lá porquê, saudades desse tempo em que a avó nos levava à Perdiz e tudo parecia mais fácil, especialmente porque éramos pequenos e das dificuldades se ocupavam naturalmente os crescidos. E, de repente, perguntei-me se hoje os miúdos ainda lêem biografias de gente inspiradora (que também são contos de proveito e exemplo) e têm ídolos que não sejam figuras de duas dimensões retiradas dos ecrãs de TV e dos jogos da PlayStation.
Em determinadas épocas perfilam-se pares de autores que atingem um grau de sucesso semelhante. São, pois, concorrentes, seja nas vendas, seja na notoriedade e nos prémios alcançáveis. Por vezes, tornam-se adversários – e isso leva a que, tantas vezes estupidamente, se pense que quem lê e gosta de um não terá pelo que o outro faz grande atracção ou genuíno prazer. Dizer que quem adora Saramago não pode gostar de Lobo Antunes – ou vice-versa – é uma tolice, embora possamos pender mais para um do que para outro por terem estilos francamente diferentes. Nos meus tempos de faculdade, era-se mais Herberto Helder ou mais Eugénio de Andrade, por exemplo, como se não se pudesse ser isso tudo e ainda mais (Sophia, Ruy Belo, Jorge de Sena ou Ramos Rosa). No Brasil, se vou como poeta a algum encontro, logo querem saber se sou adepta de Drummond de Andrade ou de Manoel Bandeira; e um amigo italiano que escreve poesia perguntou-me uma vez se eu era dos que amavam Ungaretti ou dos que preferiam claramente Montale. Enfim, esta coisa de um contra o outro não me agrada. Porque não aos pares?
Todas as crianças gostam de ler livros com bichos, é um facto. E não falo apenas de fábulas, mas de histórias que, no fundo, são sobre pessoas que tomam o corpo de ursos, patos, cães e gatos, representando o papel de pais e filhos humanos na perfeição. Mas não são esses que hoje contemplo neste post; falo – isso, sim – de obras maiores que, mesmo usando os animais como personagens, são alegorias das sociedades humanas e só podem ser inteiramente entendidas por adultos ou, vá lá, adolescentes mais ou menos despertos para o real. O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, é o melhor exemplo que conheço, e tenho a certeza de que todos os leitores deste blogue sabem do que se trata, pelo que não me alongarei com explicações desnecessárias. Porém, publiquei há uns anos uma trilogia intitulada As Crónicas do Corvo(A Revolta; A Peste; O Julgamento), de Clem Martini (se não me engano, um autor canadiano), que era verdadeiramente aliciante para leitores novos e velhos e passou, ao que sei, bastante despercebida. Tomando bandos de corvos inimigos (as gralhas também ajudam) e descrevendo as migrações forçadas e os regressos à pátria, as revoltas e a luta pelo poder, as questões morais e a crise de valores, estes três livrinhos revolucionários valem muito a pena e podem até ser vistos como uma introdução à política para os adolescentes. Na minha juventude, a obra deste tipo que mais se lia era o mais xaroposo Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach, cujo sucesso mundial justificou inclusivamente uma adaptação cinematográfica com banda sonora de Neil Diamond. Tudo livros que falam das coisas sérias dos homens vestidos com pele de bichos.
Os Top de vendas das livrarias nem sempre foram inteiramente honestos. Atenção: só estou a vender o peixe que me venderam a mim... Há muito tempo, um editor-livreiro que, infelizmente, já não está entre nós contou-me que, quando faziam muita fé em determinado livro e, por isso, compravam bastantes exemplares, se, na primeira semana, as expectativas se defraudavam, punham o título na lista dos mais vendidos e esse destaque levava, efectivamente, a que muitos leitores o adquirissem (o marketing avant la lettre). Hoje as coisas estão todas informatizadas e é impossível fabricar mentiras, pelo que são quase sempre os mesmos livros que encabeçam os Top das livrarias: novidades escaldantes, best-sellers internacionais, obras de gente famosa, os temas que, em cada momento, estão a dar, como se costuma dizer. E, no entanto, eis que os mais recentes Top de vendas divulgados nos jornais incluem títulos publicados há imenso tempo, muitos deles de autores que até têm livros editados já em 2013. Que aconteceu então? Fácil. Trata-se de restos de edição vendidos a dois e três euros, em bom estado e com miolo respeitável. Quem os não comprou a quinze ou dezassete, aproveita a época da pelintrice e leva para casa a garantia de umas horas bem passadas. Sinais da crise.