Há muitos anos, ainda na Temas e Debates, publiquei um autor das Bermudas, cujo romance – Se Ninguém Falar das Coisas Maravilhosas – fora finalista do Booker e arrebatara dois prémios importantes. O escritor chamava-se Jon McGregor e construía uma narrativa em permanente suspensão que, desde as primeiras páginas, nos avisava de uma ocorrência que só no desfecho se esclarecia. É assim também o romance que tenho agora em mãos – O Dia de Amanhã, de Ignacio Martínez de Pisón (de quem já li outras obras, entre as quais Maria Bonita, uma pequena maravilha). Neste, falam muitas vozes e todas elas sobre a mesma personagem controversa – Justo Gil, um pobretanas ambicioso muito ligado à mãe, que sobe na vida de formas supostamente ínvias e trama, claro, muita gente. E digo «supostamente» porque são suposições o que os relatos sempre nos oferecem, pistas, avisos, venham eles do tipo que deu a mão a Justo quando ele chegou a Barcelona com uma mão à frente e outra atrás, da rapariga que foi sua sócia num pequeno negócio e ele deixou cheia de dívidas ou mesmo da colega de trabalho que tem um fraquinho inconfessado por ele mas os olhos bem abertos às suas manigâncias. Brilhante retrato de uma figura através de olhares alheios, esta é também uma história da Espanha nos anos 1960 e 1970, mais atraente porque, entre Franco e Salazar, as semelhanças são, apesar de tudo, bastantes e não conseguiremos deixar de nos rever em muita coisa. A tradução – muito boa – é de Maria Manuel Viana.
Sou muito pouco televisiva e, em minha casa, quando a caixinha está acesa, é normalmente a Sport TV que impera... Não me importo muito, porque o ruído de fundo do futebol não me perturba por aí além e posso ler um livro ao mesmo tempo que o Manel vê os jogos e, de vez em quando, já nervoso, dá uns pontapés no ar. Havia, porém, uma série que gostava muito de ver aqui há um ou dois anos. Chamava-se Conta-me como Foi e fora escrita, entre outras pessoas, por uma guionista que muito admiro (e de quem sou amiga, convém que se diga) – Helena Amaral –, tendo como consultora outra Helena (esta Matos), que fez ali um trabalho excepcional de reconstituição de época. Provavelmente, essa pesquisa foi o princípio de uma investigação mais demorada para um livro que acaba de sair – Os Filhos do Zip-Zip –, centrado no Portugal dos anos 70 do século passado. Quem se lembra do Zip-Zip, um programa que mudou a forma de ver televisão em Portugal, conduzido por Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado, sabe que estou a falar de uma aventura televisiva que mobilizou milhares de espectadores ao longo do período em que foi emitido, tanto pelo divertimento como pelo lado polémico e transgressor. Este livro parte, pois, dele para nos oferecer um relato das mudanças que então se verificaram no País, desde a ida de muitas famílias para os arredores, as tertúlias nos cafés, o aparecimento dos primeiros supermercados, as músicas, os anúncios e os brinquedos como o Lego. A minha geração agradece a lembrança. Ainda não li, mas já o tenho em casa.
Estivemos privados ao longo de séculos de traduções de muitos clássicos gregos (e latinos) e só há relativamente pouco tempo pudemos dispor de um trabalho sério, rigoroso e, ainda por cima, belo das obras de Homero, que são donde vem toda a literatura ocidental. Considero de uma enorme generosidade que um autor de prosa e poesia que podia dedicar a vida às próprias obras – o dotado e reputado Frederico Lourenço – se tenha atirado de cabeça e coração à enormíssima tarefa de traduzir, entre outras coisas, A Ilíada e A Odisseia e de nos oferecer essas suas traduções competentes e luminosas. Provavelmente, se não fosse a sua mão milagrosa, eu nunca teria lido estes dois livros fundadores em língua portuguesa; e, embora um número respeitável de tradutores se tenha dedicado a Ovídio, Catulo, Séneca e muitos outros autores clássicos, a verdade é que poucos entre eles eram também escritores. Tenho um grande respeito por esta mão capaz de maravilhas e o post de hoje serve para lhe agradecer o acto generoso de partilha com os leitores portugueses, certamente mais ignorantes sem o seu trabalho.
No último dia das Correntes d’Escritas na Póvoa de Varzim, tive o gosto de ir ao palco receber um prémio de Design de Obra para Livro Escolar. O livro premiado – Mãos à Obra, da disciplina de Educação Tecnológica – é editado pela LeYa, mas infelizmente nenhum dos meus colegas das edições escolares, incluindo o director gráfico, Luís Alegre, podia deslocar-se à sessão de entrega, e fiquei orgulhosa por terem delegado em mim a incumbência. Admiro muito o que se faz hoje na edição de manuais (quando eu estudava, os livros eram tão feios e frios que nem apetecia estudar) e não raro observo como os seus editores são autênticas formiguinhas, tentando cumprir os prazos que, se falham, podem deitar a perder o trabalho de um ano inteiro. Dantes, tanto quanto sei, os autores de manuais estavam dispensados de dar aulas, mas agora têm de cuidar dos alunos e dos livros ao mesmo tempo, o que não deve ser nada fácil. Isso provoca naturalmente um stress danado também em quem os publica, pois há datas específicas para apresentação dos novos livros aos docentes e, se os autores se atrasam, é fácil que outros editores consigam chegar-se à frente e ver os seus livros adoptados. Já aqui referi que tenho uma grande admiração pelos colegas que trabalham na área escolar e reafirmo-o. Esta é a época em que vejo as formiguinhas saírem da toca, sempre rodeadas de provas e papelada, sempre em reuniões com professores, sempre de portáteis abertos exibindo páginas que ainda não são as finais. Têm pouco tempo para tanto… Nem os meninos imaginam, ao abrir os livros na sala de aula, o trabalho que tudo aquilo dá.
Algumas publicações, nomeadamente o Jornal de Letras (mas também um artigo de Eduardo Pitta na revista Ler) têm dedicado várias páginas inquirindo escritores sobre a situação actual e querendo saber como vai ela influenciar as suas obras. Sendo os escritores, antes de mais, cidadãos como toda a gente, é natural que a sua vida se veja afectada pela crise e pelo desinteresse a que este governo tem votado as artes e as letras – e isso os leve a manifestações de repúdio e a concentrações de intelectuais (como aconteceu nas Correntes d’Escritas mais recentemente), nas quais exprimam as suas opiniões, por assim dizer, políticas. Mas isso não tem necessariamente de acontecer nas suas obras, que podem não reflectir nada do que se está a passar sem que, por isso, os achemos uns cobardes ou alheados. Quando comecei a trabalhar na edição, pude, com muito gosto, enquanto assistente editorial, acompanhar a publicação de algumas obras do saudoso António José Saraiva – e foi numa delas que li que é ao escrever que o escritor cumpre a sua obrigação para com a vida. O resto é cidadania – e é nela que não se pode demitir das suas obrigações.
No dia 25 de Fevereiro, fiz um post sobre a sessão dos prémios anuais da Sociedade Portuguesa de Autores, vulgo SPA, que teve transmissão directa pela RTP. Eu tinha dois autores a concurso na categoria de ficção e fiquei felicíssima com a vitória de Miguel Real, pois já fora nomeado doutra vez, mas preterido. Senti-me contente por ele e por mim, acreditem, até porque o romance que leva o galardão, O Feitiço da Índia, foi um dos que mais gozo me deu publicar no ano que passou. Conta a história de três homens de três gerações numa Índia que trazemos no coração e na memória – homens que se deixaram encantar por um país de gente simultaneamente exótica e simples e, claro, pelas suas mulheres (todas chamadas Rhema). Porém, desde os Descobrimentos até aos anos 1970, há muitas aventuras e surpresas que o enredo reserva – algumas bastante cómicas, outras realmente estranhas e inesperadas; e, com a ironia a que nos habituou, Miguel Real oferece-nos o retrato fascinante de Goa e da costa do Malabar em épocas profundamente marcantes da sua história. O escritor prepara agora um romance sobre Macau. Estou desejosa de saber o que aí vem…
Já aqui falei certamente dos livros de autores portugueses que iria lançar em 2013 e chegou a hora de me alongar um pouco mais sobre Os Demónios de Álvaro Cobra, o romance que, em 2012, ganhou – com toda a justiça – o Prémio Literário Cidade de Almada. Escreveu-o Carlos Campaniço, um autor nascido alentejano que, morando actualmente no Algarve, nada perdeu das suas raízes, colocando como cenário do romance uma aldeia chamada Medinas que tem muito do nosso Alentejo. Em Medinas vive o protagonista, Álvaro Cobra, um lavrador que tão depressa é tido por santo como por demónio, homem corpulento que atrai fenómenos sobrenaturais, entende os animais e ouve a terra girar sobre si própria. Com ele na mesma casa moram uma bisavó velhíssima e aparentemente eterna, uma mãe com mãos de dois tamanhos distintos (que faz com elas coisas diferentes e ao mesmo tempo), uma irmã acometida de febres que às vezes incendeiam os lençóis e um filho que será o protagonista de uma funesta história de amor. Porém, para além desta família curiosa, a extensa galeria de personagens inclui judeus, árabes e cristãos às turras, uma dona de um bordel ambulante e muitas outras ainda mais deliciosas que lembram o realismo mágico latino-americano mas são, simultaneamente, completamente portuguesas. A ler, absolutamente.
As literaturas têm, normalmente, marcas de nacionalidade, mas há sempre casos de romances que se aproximam mais da literatura de outros países do que do país em que foram escritos. É este o caso das obras de Gonçalo M. Tavares, por exemplo, que a crítica diz terem um cheirinho a Europa Central – e o mesmo acontece com A Ofensa, de Ricardo Menéndez-Salmón que, sendo espanhol, também recorda numa certa secura as obras de Tavares e de autores alemães, húngaros ou polacos. Kurt, o protagonista, seria o herdeiro do negócio de alfaiataria da família se a guerra não tivesse eclodido (falo da Segunda Guerra Mundial), levando-o para longe de casa e de uma namorada que não voltará a ver, porque é judia – e, aos judeus, sabemos o que aconteceu nessa época. Muito contido e brilhantemente escrito, este é um romance sobre como pode a visão do horror afectar o corpo de um soldado que, de repente, deixa de entender a própria língua e a vê como idioma hostil e ininteligível. Excelente para umas horas livres (é um texto curto), deixa-nos a pensar durante muito tempo.
Quando eu era pequena, chamavam muitas vezes aos teimosos cabeçudos – mas às vezes é bom ser-se teimoso, por exemplo, para fazer com que os nossos jovens leiam sem a desculpa de que os livros não lhes chegam às mãos. Assim pensam Rui Andrade e Raquel Salgueiro, dois cabeçudos que criaram uma livraria itinerante dentro de uma carrinha, inspirados nas velhinhas bibliotecas que a Gulbenkian pôs a andar por esse país fora nos anos 70 e que tantos leitores fizeram em localidades que não tinham como chegar aos livros. A iniciativa chama-se justamente Cabeçudos e esteve na semana passada na Azambuja com a companhia das editoras Planeta Tangerina e Orfeu Negro, que têm títulos belíssimos, incluindo o recentemente premiado Achimpa, de Catarina Sobral. Mas haverá muitas outras paragens noutras datas, com a cumplicidade de escritores, ilustradores, contadores de histórias e outros, em escolas, bibliotecas e outros locais, públicos e privados. O Plano Nacional de Leitura aplaude e apoia. Nós também. A teimosia, nestas coisas, dá sempre bons resultados.
Sabia que era um dos livros favoritos de um dos meus autores, mas ainda não tivera possibilidade de lhe pegar sequer por falta de tempo. E, numa noite destas, para descansar de uns escritos que me estavam a fazer fumar demais, subi ao escadote e fui retirá-lo da estante do Manel (que, de resto, o publicou). Falo de Os Soldados de Salamina, de Javier Cercas, um notável romance sobre um jornalista que, depois de várias tentativas frustradas, desiste da literatura, mas acaba por encontrar um dia um excelente tema para regressar à escrita: a história de Sánchez Mazas, um dos fundadores da Falange – intelectual com vários romances publicados – que escapou a um fuzilamento durante a guerra de Espanha (mostrava os buracos da metralha nas calças) e viveu vários dias escondido num bosque onde um soldado inimigo lhe poupou a vida e várias pessoas do campo o ajudaram a sobreviver. Chegou a ministro de Franco, mas depressa se desinteressou da política (o fascismo que idealizara era bastante diferente do praticado pelo Generalíssimo) e a sua vida merece, de facto, ser conhecida, pois, entre outras coisas, é uma belíssima aventura literária. Cercas, entre o relato e a ficção, é um mestre a narrá-la. Ainda não sei aonde acaba a história, mas já tenho a certeza de que o meu autor tem muito bom gosto.