Hoje, enquanto os extraordinários leitores do blogue estiverem a ler este post, já estarei muito longe do meu habitual gabinete de trabalho. Também há autores – e dos bons – longe da capital, e participarei ao fim da tarde num lançamento de um romance no Algarve. O escritor neste caso chama-se José Carlos Barros e, apesar de transmontano, é ali que vive e trabalha. O seu livro – Um Amigo para o Inverno – regressa, porém, às suas origens nortenhas e baseia-se numa história verdadeira que aconteceu ainda no tempo da ditadura. É, aliás, belíssima, como a escrita do autor, que lembra Torga aqui e ali e nos deixa de boca aberta a olhar as montanhas, os campos, as lareiras que ardem nas casas dos mais pobres. E fala de um sargento que, em 1971, é deixado pela mulher com quem vivia sem perceber porquê, na mesma altura em que é chamado a chefiar o posto da GNR numa Vila da qual nunca se diz o nome. À chegada, perceberá imediatamente que a sua presença vai ser disputada à direita e à esquerda – e esta esquerda é nada mais nada menos do que uma célula do Partido Comunista de que poucos ouviram dizer ter alguma vez existido no Norte. Um assassínio inesperado e a respectiva investigação irão, porém, ensinar-lhe muita coisa que se passou nos últimos quinze anos e pô-lo a par de algumas notícias que, curiosamente, se prendem com a sua própria vida sentimental e explicam o que recentemente lhe aconteceu. Um Amigo para o Inverno é mais um romance que chegou à final do Prémio LeYa e hoje será apresentado por Carlos Brito. Se estiver no Algarve, pode lá dar um saltinho.
Há jornalistas que fazem um pouco o que calha e outros que fazem quase tudo, mas há alguns jornalistas portugueses que são sobretudo conhecidos pelas suas entrevistas, como é o caso, por exemplo, de Carlos Vaz Marques, um notável entrevistador da TSF que há anos conduz um programa chamado Pessoal e Transmissível, Ana Sousa Dias, que se tornou conhecida num programa de televisão chamado Por Outro Lado, que nos trouxe personalidades fascinantes (nunca esqueci da entrevista a Aldina Duarte, bem como a de uma freira missionária em Moçambique), ou ainda de Anabela Mota Ribeiro, que há anos e anos se dedica a entrevistar pessoas interessantes de variadíssimas áreas, muitas das quais para revistas semanais dos principais jornais portugueses (uma das últimas entrevistas, bastante badalada por causa do presumível insulto a Cavaco Silva, foi a Miguel Sousa Tavares). Infelizmente, como os jornais vão quase sempre parar ao lixo ou à reciclagem e não temos o hábito de gravar estes programas da rádio e da televisão, é muito raro podermos reler, rever ou re-ouvir peças fascinantes. Excepto no caso de Anabela Mota Ribeiro, que teve agora a belíssima ideia de reunir os seus trabalhos num site para quem lá quiser ir ler e consultar. Para o visitar, basta carregar na ligação que está aí do lado direito, entre outros Amigos dos Livros. Pode ser que um dia os outros dois jornalistas façam o mesmo.
Nas duas últimas décadas senti que houve uma grande evolução em três formas de arte – a fotografia (que já tinha nomes de peso, mas ganhou claramente atenção do público, da crítica e até dos mercados), a ilustração (que é hoje de alto nível) e, na literatura, o romance gráfico, do qual já aqui dei exemplos de grande qualidade. Ora, por falar em romance e em gráfico, veio parar-me recentemente à mão uma obra bem interessante que dá pelo nome de Diário Rasgado, da autoria de Marco Mendes. Embora a designação «diário» aponte para um texto de teor autobiográfico, o autor avisa que as suas pranchas são, afinal, ficções, mesmo que baseadas em gente e factos reais (e eu consigo reconhecer, pelo menos, o rosto dos seus familiares em alguns desenhos, porque sou editora do irmão e já travei conhecimento com outros parentes); mas, se essa designação pode levar a uma espécie de engano, a verdade é que encaixa bem no resultado, que é uma sucessão de acontecimentos que decorrem, aparentemente, em dias diferentes de uns quantos anos, marcando a vida do protagonista. Algumas das situações – nomeadamente as que dizem respeito à relação amorosa – atravessam todo o livro, apresentando, de resto, um desfecho bastante realista e singular. Outras constituem pertinentes comentários sobre o estado do País, as dificuldades dos trabalhadores a recibo verde, o desemprego dos jovens licenciados. Outras ainda são uma espécie de intervalos jocosos ou desabafos que cruzam todas as vidas. O desenho é primoroso – e há um toque agradavelmente despreocupado quando por vezes aparecem textos riscados ou corrigidos à mão, tornando mais verosímil a intenção de aproximar a ficção da realidade. Às vezes duro, às vezes escatológico, Diário Rasgado faz desejar que os dias do autor não se fiquem por este livro.
Pessoa escreveu algures que só era um bom livro para crianças aquele que pudesse ser lido com prazer por adultos também. O livro de que hoje falarei pertence a uma colecção aparentemente juvenil (as ilustrações ajudam a vê-lo assim, bem como a editora que o publicou – a Planeta Tangerina – que é sobretudo conhecida pela edição de livros infantis), mas está longe de ser o que parece (daí o título do post) e deve ser lido por todos os adultos que gostem de uma história séria, profunda e contada com muita arte. Se virem, pois, um livro extremamente azul pousado na mesa das crianças de uma livraria (a autora até já anda de cabelos em pé por causa disso), por favor não passem a correr. Fiquem, folheiem e comprem, porque Irmão Lobo, de Carla Maia de Almeida (com ilustrações de António Jorge Gonçalves, que são boas, mas na verdade não fazem muita falta a não ser para, no final, nos mostrar uma casa em ruínas), é uma pérola sobre uma família típica e atípica – especialmente sobre Bolota, a filha mais nova (e mais nova também do que seria suposto na sua conjuntura), e o pai, uma grande personagem que se chama tão depressa Alce Negro como Homem do Gelo e é o companheiro desta miúda especial numa «expedição» que, desde o início, se pressente dramática, mas vai muito mais longe do que imaginámos. Não se pense, porém, que Irmão Lobo é uma aventura recheada de peripécias, como é apanágio dos livros juvenis; pelo contrário: trata-se de uma narrativa absolutamente actual sobre o desemprego e os seus efeitos numa família que já teve casa com jardim, cão da neve de olhos azuis e uma vida que, infelizmente, foi acabando (mais para uns do que para outros, mas para todos sem excepção). Sem lamechice nem pedagogia barata, este livro fala de coisas muito difíceis e muito importantes e, por isso, precisa de ser arrumado nas estantes (depois de lido, evidentemente) de toda a gente que se preocupa com o presente e com o que ele pode fazer ao futuro dos mais novos. Numa palavra: Maravilhoso.
É já hoje que faremos o lançamento de A Última Canção da Noite, o segundo romance de Francisco Camacho, recentemente publicado pela Dom Quixote. É um verdadeiro page-turner que tem uma espécie de banda sonora (basta ler os títulos dos álbuns mencionados ao longo do texto) e cujo enredo inclui o desaparecimento de um músico de sucesso e o seu encontro com o homem a quem vai revelar a sua história (na verdade, trocarão ambos experiências, pois o ouvinte também tem muito que contar). A apresentação, na Livraria Ler Devagar da Lx Factory, será feita por João Miguel Tavares e Zé Pedro (sim, o dos Xutos). Espera-se uma enchente de boa-disposição. Se quiser, apareça!
Quando no mês passado acompanhei Nuno Camarneiro a uma sessão na Livro do Dia, em Torres Vedras, o proprietário ofereceu-nos a ambos, no fim da sessão, um livro que publicara (a livraria também se dedica à edição) intitulado Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro (do autor francês Philippe Delerm) que achava não ter tido o acolhimento da crítica e dos leitores que efectivamente merecia. Li-o de um fôlego (até porque tem poucas páginas) e achei-o realmente uma delícia. Mr Mouse, o protagonista, é (nem podia deixar de ser) um rato, um rato muito especial – e é a sua vida quotidiana, na companhia de Emily, a mulher, e dos ratinhos Morty e Jenny, os filhos, que nos é descrita na novela através de pequenos episódios coloridos e inteligentes. Mr Mouse tem uma quedazita para a metafísica, gosta de fumar cachimbo e de comprar no comércio tradicional, mas sobretudo de escrever uns textos autobiográficos que mostrou a um escritor conceituado que admira muito. E é também um pai babado (o que por vezes aborrece um bocadinho os filhotes). Pois bem: este rato do campo (vive numa vilazinha que parece simpática) é um pouco cada um de nós, com os seus dilemas, as suas dúvidas e as suas alegrias inconfessáveis. Um bonito texto que alguns adolescentes com queda para a filosofia também apreciarão.
As palavras levam-nos por vezes aonde não esperávamos e ajudam-nos a desenvolver a nossa veia de ficcionistas (ou, quiçá, uma imaginação delirante). Um dia destes estava a ler o jornal Público a correr – como acontece quase todas as manhãs – e a passar os olhos pelas gordas e, de repente, os meus olhos arregalaram-se com o título de uma coluna: «Ressurreição de Visconti confirmada em Vicenza.» Sou uma grande admiradora de Lucchino Visconti e apreciaria bastante o seu regresso à vida e ao cinema, pois neste século ainda não encontrei um realizador com o seu bom gosto e a sua elegância; mas que anunciassem a sua ressurreição pareceu-me, ao mesmo tempo, um reles golpe publicitário do município de Vicenza para se fazer importante e levar até lá gente de todo o mundo arrepiada com o milagre. Brinco, claro, mas foi ao autor de filmes como Rocco e os Seus Irmãos ou O Leopardo que aquelas palavras me levaram. O meu delírio acabou, contudo, mal li as primeiras linhas da notícia: estávamos, afinal, na página de Desporto e Visconti é um ciclista italiano que, pelos vistos, deu a volta por cima e venceu quatro etapas do Giro (a volta a Itália em bicicleta). Tenho de estar mais atenta aos cabeçalhos da próxima vez para não me pôr a fazer filmes…
Para além de andar a ler, também ando a tentar livrar-me de umas tendinites estuporadas com uma fisioterapia que tem um lado doloroso (a massagem, o exercício, as ondas de choque) e um lado entediante: o ficar ligada a umas maquinetas às meias horas, sentada numa cadeira sem fazer nada. Percebi que, mesmo que apenas com uma mão, conseguia ir passando páginas e ler um livro não muito longo em duas sessões. O último que foi comigo chama-se Tudo É e não É e assina-o Manuel Alegre, com quem o protagonista – o escritor António Valadares – tem algumas afinidades: desde logo, o facto de escrever, mas também alguma da matéria com que sonha. O sonho é, de resto, o grande tema deste romance, que nos traz um Valadares queixando-se a um amigo psiquiatra de ter sonhos recorrentes e algo obsessivos, sonhos que terminam quase sempre com o recepcionista de um hotel a telefonar-lhe para o quarto, dizendo-lhe que se despache, pois o autocarro vai partir (para onde, não sabemos – nem ele); mas o escritor perdeu o casaco, tem a mala por fazer e invariavelmente chega tarde demais. Do pedido do psiquiatra para que passe esses sonhos a escrito, nasce uma narrativa deliciosa, crítica e bem-humorada, na qual às tantas o sonho é matéria de ficção (ou já só ficção) e parece sonhar-se o que se deseja, e não o que o sonho quer que se sonhe, sobretudo quando o aparecimento em sonhos de uma mulher misteriosa é quiçá o reflexo da mulher que Valadares deixou um dia à sua espera quando teve de fugir para não ser preso. Com alguns pontos de contacto com Engano, de Philip Roth, de que falei aqui no blogue no mês passado, este romance muito actual vale bem a pena (e faz, obviamente, esquecer o tédio de qualquer fisioterapia).