Importando a ideia do país vizinho, alguns livreiros independentes juntaram-se e decidiram ter, a partir do ano passado, um dia para festejar a sua profissão e o papel fundamental que desempenham na cadeia que liga um autor a um leitor. Tomando a data do aniversário da morte de José Saramago (que é também a da morte de Fernando Assis Pacheco), escolheram então o 30 de Novembro para Dia da Livraria e do Livreiro e amanhã preparam em todo o País um sem-número de actividades que partem de uma parceria entre o Encontro-Livreiro e a Fundação José Saramago. O cliente será o convidado de honra (mais ainda do que nos restantes dias do ano) – e é de esperar que, em algumas livrarias portuguesas, seja recebido de forma especial e brindado com tertúlias, mesas-redondas e conversas em torno do livro e da leitura. Na Livraria Culsete, em Setúbal – que perdeu recentemente um dos seus fundadores, Manuel Medeiros – a festa celebra-se a partir das quatro da tarde e ali será entregue um diploma a um livreiro de excepção escolhido por subscrição pública. Mas as celebrações ocorrerão um pouco por todo o lado e, portanto, para quem gosta de livros como os leitores deste blogue, o melhor é aproveitar a efeméride e o dia de amanhã, até porque é preciso homenagear aqueles que não se limitam a vender livros e os amam acima de tudo. Mais informações aqui:
Agora, que o Natal se está a aproximar, somos brindados a toda a hora com a publicidade do Continente, que escolheu como uma das suas bandeiras para atrair meninos aos brinquedos uma fêmea de hipopótamo rosada e gorducha que dá pelo nome de Popota. Não sei quem criou o boneco e o vestiu e despiu de mil maneiras diferentes desde que apareceu, nem quem inventa as coreografias dos complicados bailados em que ela sobressai à frente de um pelotão de dançarinos. Na verdade, não me interessei o suficiente para o descobrir e deixo isso para quem seja mais curioso do que eu. Interessava-me, mesmo assim, que me explicassem por que raio uma figura que se destina a convidar os mais pequeninos a escolherem os seus presentes naquela grande superfície, e não noutra, tem contornos de mulher fatal, lânguida e sexy, usando decotes generosos, rachas nos vestidos até à anca ou mini-saias do tamanho de cintos e toda uma parafernália de adereços que ficariam melhor numa personagem de BD para adultos. A concorrente mais directa da Popota, que também não é grande coisa como desenho e tem um nome que não lembra ao careca (Leopoldina), tem a vantagem de não ser obesa (o que, pedagogicamente, é mais interessante) e fala do «mundo encantado dos brinquedos». Com cara de pássaro, é possível que voe, o que é outra vantagem, e tem qualquer coisa de tia simpática, capaz de contar histórias ao deitar. Mas não sei se as crianças gostam mais dela, se da bucha que se bamboleia no palco e usa cai-cai. Com tanta roupa dourada e prateada à venda nas lojas de criança, talvez seja eu que estou a ficar bota-de-elástico.
Partilho as iniciais com Margarida Rebelo Pinto, mas penso que, fora isso, nada temos em comum, menos ainda a opinião sobre o estado geral do País e as medidas deste Governo. Li há muitos anos o seu primeiro livro (a que alguém que conheço chama, de forma divertida,«Não Faço a Mínima Ideia») e não gostei. Recordo uma cena em que roubavam a carteira a uma personagem e esta não lamentava a perda dos documentos nem do dinheiro, mas apenas os trinta contos em maquilhagem que lá trazia. Alguém que escreve isto num romance é, provavelmente, uma pessoa que pode gastar este dinheiro em maquilhagem e que, por isso, não devia ser chamada à televisão para comentar manifestações contra as medidas de austeridade e os cortes nos ordenados e pensões. Mas foi isso que aconteceu – e, como seria de esperar, MRP (não eu, a outra) fez uma triste figura, dizendo que repudiava esse tipo de manifestação, que toda a gente sofria cortes – ela também – e que devíamos deixar trabalhar à vontade quem nos governa. O vídeo da sua participação num telejornal correu, de resto, as redes sociais e tornou-se viral, até porque temos uma certa tendência para rir dos estúpidos. Porém, não foram as declarações da escritora de romances light que me escandalizaram, uma vez que me bastou ler aquele seu livro (Sei lá era o título correcto) para perceber como pensa a sua cabeça. O que me admirou mesmo foi que MRP não tivesse a mais pequena noção de que estava justamente a repudiar com as suas afirmações muitos dos que compram habitualmente os seus livros e lhe dão de comer. Presumo que alguns desses, depois de a terem ouvido, deixarão de o fazer – e então, sim, talvez ela sinta na própria pele os cortes a que não deu importância...
Quando, ao editar o texto de um romance, sobretudo de um autor que ainda não conheço bem, sugiro alguns cortes, a resistência é normalmente muito grande. Entendo perfeitamente. O investimento em tempo, emoção e trabalho que às vezes se faz num mero parágrafo pode ser tão significativo que é perfeitamente natural que quem o escreveu não queira prescindir dele, mesmo que frequentemente reconheça que não atrasa nem adianta, nem para a economia da história nem em termos puramente estéticos. Conheço, porém, um caso notável de autocrítica e auto-editing (além, claro, de João Ricardo Pedro, o vencedor do Prémio LeYa em 2012, que aproveitou 200 páginas, se tanto, de 800). Um romancista que publico há muitos anos, Miguel Real, que é paralelamente autor de um razoável número de ensaios sobre cultura portuguesa, desempenha também as funções de crítico literário no Jornal de Letras há uma série de anos. Recentemente, foi-lhe entregue para recensear o último livro de Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação (ainda não li). E, após a leitura, confessou que deitara fora na manhã em que redigia a crítica meia centena de páginas que tinha escrito para um pequeno volume que planeava intitular Nova Teoria do Corpo por achar que eram completamente redundantes depois do que Tavares acabava de publicar. Um acto de respeito, mas sobretudo de grande coragem, diria eu. E uma lição, enfim, para quem se recusa até a deitar fora uma simples vírgula.
A sociedade moderna, excessivamente tecnológica, torna-nos bichos solitários (no masculino, claro). No Facebook, apanhei há tempos uma fotografia divertida de um bar, na parede do qual o proprietário afixara um pedido para que os clientes largassem os telemóveis e falassem, por favor, uns com os outros. É verdade que muita gente vive completamente escrava destes e de outros aparelhos, talvez para não se sentir muito sozinha, mas ainda assim sozinha porque ignorando por causa disso os que ali estão e podiam fazer-lhe companhia melhor do que as SMS que chegam, irritantemente, a todo o momento e exigem resposta. Com muitos cafés transformados em agências bancárias, desapareceram também as conversas e tertúlias que, nos anos 1960 e 1970, segundo me conta o Manel, juntavam à roda de uma mesa (em Lisboa e no Porto, pelo menos) muita gente que queria falar e discutir assuntos, conhecer escritores e mostrar poemas, levantar a voz contra o poder instituído e planear acções culturais e políticas. Hoje, os cafés têm poucas mesas e, ao que parece, os jovens intelectuais perderam o gosto de se encontrar e trocar impressões, a menos que seja por e-mail. Talvez os blogues tenham substituído esses encontros ao vivo, mas, num período tão mau como o que vivemos, não era descabido que se realizassem de novo tertúlias, até porque delas poderiam sair ideias boas e criativas que nos alegrassem os dias.
Assisti há duas semanas a um daqueles filmes que não se esquecem. Por mais que o cinema americano tenha monopolizado os espectadores do mundo inteiro, a verdade é que o cinema europeu ainda dá cartas – e muitos trunfos. Falo dessa maravilha de argumento, realização e interpretação que é Hannah Arendt e que não só me encheu as medidas como me ensinou muita coisa que – ainda bem – desconhecia (sobretudo que Heidegger tinha falta de jeito para as coisas mais pragmáticas da vida). Este filme, que é também sobre o julgamento de Eichmann que Arendt cobriu para a revista New Yorker quando o nazi foi raptado e levado para Israel, e a terá levado a escrever (e com que consequências) sobre a «banalidade do mal», recordou-me certas partes de Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, e de A Caixa Negra, de Amos Oz, romances escritos muitos anos mais tarde e em contextos distintos, mas nos quais existe também uma maldade que é fruto, no limite, da estupidez de certos pobres de espírito que, quase sem disso se aperceberem, têm o poder de mudar a vida de milhões (para mal). Aconselho, por isso, a leitura destes dois livros admiráveis e, claro, se ainda o conseguirem ver, o filme de Margarethe von Trotta.
Uma vez, estava eu em Serralves a visitar uma exposição de Julião Sarmento, veio ter comigo uma senhora com uma filha ainda pequena e perguntou-me, enfim, se eu era eu. Respondi-lhe que sim – e então, coisa mesmo inesperada, ela falou-me em voz muito baixa (estávamos num museu) da minha poesia e de como ela a teria ajudado a ultrapassar um terrível período da sua vida, confessando-me que, depois disso, era finalmente capaz de a ler sem chorar. Fiquei surpreendida: os escritores raramente são figuras públicas; e, apesar de eu ter ido a um programa de TV pouco antes daquele encontro, achei realmente estranho que alguém me reconhecesse e abordasse, sobretudo num local fora do meu contexto, um lugar que nada tinha que ver com livros. Na verdade, se virmos bem as coisas, um actor ou um cantor (mesmo que não tenha um sucesso por aí além) está mais do que habituado a sorrisos na rua e pedidos de autógrafos e certamente não se espanta de ser assim interpelado. Mas o escritor – excepto para um reduzido número de pessoas – é um nome na capa dos livros e pouco mais, e muita gente acha até que é assim que faz sentido, como se fosse crime sair da torre de marfim e aparecer às massas (mas, de facto, os raros que se tornam populares são logo criticados). Curiosa sobre aquela invulgar abordagem, não tardei, porém, a descobrir que não tinham sido os media a fazer nada pela minha fama: afinal, a senhora tinha feito parte de uma comunidade de leitores da Livraria Almedina, em Gaia, onde eu estivera para trocar impressões sobre os meus poemas…
O Prémio Literário José Saramago foi instituído pela Fundação Círculo de Leitores no ano em que o escritor venceu o Nobel da Literatura. Não sei se sabem, mas foi o Círculo de Leitores que, quando Saramago ainda dava os primeiros passos na escrita, lhe proporcionou as condições necessárias à execução de um projecto moroso e exigente que deu origem ao livro Viagem a Portugal (além de publicar em versão Clube do Livro todas ou quase todas as suas obras). Este prémio, que visa galardoar romances publicados em língua portuguesa de autores com idade não superior a 35 anos, já tinha contemplado portugueses (Paulo José Miranda, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, valter hugo mãe, João Tordo) e duas brasileiras (Adriana Lisboa e Andrea del Fuego), mas este ano foi muito justamente atribuído a Ondjaki, o primeiro africano da lista, com o romance Os Transparentes. Apesar de ter dois autores a concurso, fiquei muito contente com a decisão. Conheço Ondjaki há muitos anos e, além de admirar o seu talento, considero-o uma pessoa às direitas: bem formado, generoso, extremamente afável e, além disso, muito bem-disposto. Só tive pena de que, num jornal, alguém tivesse tido a ideia triste de o comparar a Cavaco Silva só porque, no seu discurso de recepção do prémio, não se referiu a Saramago, preferindo falar da sua Angola, a quem dedicou o galardão. Uma rasteira que, se o conhecessem melhor, não lhe pregariam.
Quando eu era pequena, as férias grandes eram muito compridas. Embora o meu pai ficasse em Lisboa a trabalhar e só fosse ter connosco aos fins-de-semana, Agosto inclusive, a família ia em peso para uma casa que se alugava à época (era assim que se dizia) no Estoril (e como parecia longe nesse tempo) onde permanecia entre meados de Junho e meados de Setembro, quando chegavam as marés-vivas e deixava de se ir à praia. Levava-se tudo atrás: as roupas de cama, as toalhas de mesa e banho, as loiças e os talheres, os utensílios de cozinha, os remédios, as mercearias, as roupas, enfim, tudo metido numa camioneta de caixa aberta como se estivéssemos mesmo a mudar de casa e não fôssemos regressar nunca mais à capital. Falo deste assunto, que aparentemente pouco tem que ver com livros, porque me contaram na Argentina uma deliciosa história de que me lembrei recentemente e quero partilhar com os extraordinários leitores deste blogue. Quando Borges e Bioy-Casares, que eram amigos, iam de férias, ao que parece também transportavam positivamente tudo o que se possa imaginar. Mas, sendo o segundo muitíssimo rico, cometia o exagero típico dos aristocratas de não prescindir de absolutamente nenhum luxo. E, por isso, fazia transportar para a casa de Verão determinada vaca, cujo leite era fundamental à mesa do pequeno-almoço…
Hugo Gonçalves, de quem publiquei há uns meses o romance Enquanto Lisboa Arde, o Rio de Janeiro Pega Fogo, vive há dois anos no Brasil, onde é editor, e escreve regularmente para diversas publicações portuguesas desse ponto de vista privilegiado sobre as relações entre portugueses e brasileiros. Recentemente, o Diário de Notícias publicou um excelente artigo da sua autoria sobre a diferença entre o prestígio que tem no Brasil alguma literatura portuguesa e os efeitos práticos pouco significativos desse prestígio, ou seja, o relativo desconhecimento por parte da maioria da população (só uma elite conhece e lê autores portugueses) e as vendas francamente insignificantes. Diz Hugo Gonçalves que «a ideia de lusofonia inspira uma ilusão de proximidade entre países que nem sempre estão tão próximos quanto supomos. A ideia de um mercado lusófono de 250 milhões de pessoas, em quatro continentes, pode estimular a ambição expansionista de bancos, petrolíferas ou hipermercados, mas não inspira delírios de riqueza entre os portugueses cujo ofício é a língua». Uma autora como Dulce Maria Cardoso, por exemplo, que em Portugal vendeu cerca de 18 000 exemplares do romance O Retorno, no Brasil vendeu apenas 2000 (e o país é bem maior)… E o mesmo acontece com muitos outros autores que, apesar de receberem prémios no país irmão e de serem muito queridos lá, não conseguem melhor. É o que se chama ter a fama e não ter o proveito… Para os interessados, junto o link.