Comprei há muitos anos em Nova Iorque, na loja de um museu, um jogo de poesia com ímanes para colar no frigorífico. Tratava-se de um conjunto bastante versátil de versos que podíamos organizar segundo nos parecesse melhor e deixar na porta do nosso maior electrodoméstico, enchendo a cozinha de aromas poéticos. Os versos não eram grande coisa, mas a jigajoga tinha alguma graça. Também conheço um livro maravilhoso de Raymond Queneau, cujo original esteve, de resto, recentemente numa exposição dedicada aos livros na Fundação Calouste Gulbenkian, chamado Cent mille milliards de poèmes, feito com tirinhas cortadas ao longo das páginas, cada uma com seu verso, podendo construir-se mais de um bilião de sonetos diferentes, aproveitando-se de cada página a tira de papel mais conveniente, numa experiência bem engraçada de poesia combinatória. É uma outra maneira de brincarmos aos poetas, mas acabo de descobrir que se chegou ainda mais longe: um investigador da Universidade de Coimbra, Hugo Gonçalo Oliveira, criou o «poeta artificial», um software capaz de compor poesia sobre qualquer tema, através de uma rede de palavras relacionadas por sentidos, transmitindo sentimentos negativos ou positivos, apresentando configurações várias (quadras, sonetos, etc.) e suscitando emoção. Segundo o seu criador, não pretende este PoeTryMe – assim se chama o programa – ser melhor do que ninguém nem ombrear com poetas de carne e osso, mas tão-só estimular a criatividade e servir de fonte de inspiração. Se for jogo, há-de ser, digo eu, divertido. Mas espero que os seus «jogadores» não se lembrem depois de querer de repente publicar livros com o resultado das suas brincadeiras ou acusar de plágio os parceiros...
É já no próximo dia 30 que se realiza a 5.a edição do Encontro Livreiro, que terá lugar, como de costume, na Livraria Culsete, em Setúbal, a partir das 15h00, reunindo um mar de gente em torno do livro e da edição. Ocasião privilegiada de debate e partilha de pontos de vista, este encontro tem sido um importante momento de análise do mercado do livro e um fantástico depósito de ideias para o futuro, juntando editores, livreiros, bibliófilos, bibliotecários, jornalistas, tradutores, autores e leitores. Mas, além das conversas propriamente ditas e dos contributos de peso que sempre aparecem, todos os anos se distingue neste certame um livreiro excepcional com uma justa homenagem, entregando-se-lhe o diploma de Livreiro da Esperança, creio que em tributo a um homem que praticamente deu a sua vida pelos livros, Jorge Figueira de Sousa, o fundador na cidade do Funchal da incrível Livraria Esperança (se nunca ouviu falar desta livraria-ícone, investigue, porque é um marco nacional). Este ano o «galardão» vai para Antero Braga, que é o timoneiro de uma das livrarias mais bonitas do mundo, a Lello, na cidade do Porto. E o cartaz do acontecimento é do talentosíssimo Pedro Vieira, reproduzido abaixo.
A jornalista e escritora Filipa Melo dinamiza há já vários anos sessões dedicadas à literatura dos Estados Unidos da América na Fundação Luso-Americana, em Lisboa. Hoje mesmo inicia uma nova oficina com vista a ajudar os participantes a escreverem melhor através da leitura de grandes obras (quem está atrasado pode iniciá-la no dia 3 de Abril) intitulada Asas sobre a América, nas quais tratará, em dez sessões, de «folhas de erva, corações solitários, caçadores, reis da chuva, sangue sábio, palmeiras bravas, som e fúria, damas do lago, todo-o-mundo...», ou, menos enigmaticamente, das grandes obras de Walt Whitman, Edgar Allan Poe, Ezra Pound, Philip Roth, Saul Bellow, Carson McCullers, Flannery O'Connor, Emily Dickinson, Faulkner e Chandler (baralhei, para isto parecer um daqueles jogos em que é preciso encontrar correspondências com setas). Sob uma espécie de justo e criativo lema – Ler mais, escrever melhor (grande verdade) – as sessões decorrerão às quintas-feiras em horário pós-laboral (para alguns, pelo menos), entre as 18h00 e as 20h00, e, tendo em conta a escolha de autores, prometem mesmo uma lufada cultural. Os interessados podem inscrever-se através do e-mail fladport@flad.pt, pagando cinco euros por sessão (50 euros no total, 30 euros se forem estudantes). A literatura norte-americana no seu melhor e, ainda por cima, com orientação.
Não sei se alguma vez aqui contei como fui parar à edição. Eu era professora de Português há uns três anos quando, um belo dia, um grande amigo do meu pai e – é bom que se diga – um literato, apesar da sua formação científica, me ligou a perguntar se eu gostaria de trabalhar numa editora. Esse grande senhor chama-se António Manuel Baptista, e, para os leitores do blogue que têm a minha idade, o seu nome está certamente associado a um programa de TV que, apesar de ser sobre física, tinha recordes de audiência, porque o professor tinha um poder de comunicação sem limites e tornava mais fácil a quem ouvia tudo o que, nos manuais, parecia assustador. Ora, ele era também, no final dos anos 1980, consultor da editora onde comecei, que se chamava Gradiva e publicava, de forma completamente nova em Portugal, livros de divulgação científica. O editor estava então a precisar de ajuda e terá perguntado a António Manuel Baptista se conhecia alguém que pude ser assistente editorial. Estou-lhe imensamente grata por se ter lembrado de mim, até porque, sem ele, hoje poderia ser uma professora insatisfeita, frustrada ou, na pior das hipóteses, sem emprego (embora também pudesse estar feliz, claro, mas, depois de tantos anos nos livros, calculo que não tão feliz como estou). Assim, porque esse grande homem faz hoje 90 anos, quero agradecer-lhe do fundo do coração a oportunidade que me deu e felicitá-lo pela sua grande cultura, pela sua visão humanista do mundo e por tudo o que nos deu nestes anos todos. Parabéns, António!
Há muitos anos tomei contacto com um livro sobre o génio, da autoria de Douglas Hofstadter, chamado Gödel, Escher, Bach – e vencedor do Pulitzer em 1979 –, que pegava nestas três personalidades (um matemático, um «pintor» e um músico) para falar do brilhantismo da mente e de mais milhentas coisas que não são o que hoje me traz aqui. Hoje venho falar de um outro livro sobre o mesmo assunto, mas desta vez literário. Trata-se de Génio, de Harold Bloom, que saiu muito recentemente em Portugal, doze anos depois da edição americana (mas, caramba, são 900 páginas de letra miudinha e, num país com um mercado tão pequeno como o nosso, é precisa coragem para pagar uma tradução deste tamanho). Bem, Harold Bloom é uma espécie de Samuel Johnson da contemporaneidade, um crítico literário muito respeitado em todo o mundo e autor de uma outra obra corajosa chamada O Cânone Ocidental que já provocou rios de tinta. E, neste seu Génio, pega nos cem autores que, segundo a sua opinião, são os mais criativos de todos os tempos e divide-os numa espécie de mosaico que nada tem que ver com cronologia (só para dar um exemplo, Proust está com Beckett e Camões com Joyce). Este mosaico tem dez «azulejos» e cada azulejo está por sua vez dividido em dois, cada metade com cinco autores e a explicação do que os liga. Nós só temos três nos cem – o referido Luís Vaz, Pessoa e Eça – mas estão lá todos os maiores escritores que nos virão logo à cabeça quando pensamos em génios e ainda muitos outros sobre os quais vale a pena ler. Aos poucos, claro, porque são, como disse, quase mil páginas...
Se a questão é ensinar e valorizar quem aprende, vale tudo? Em certos casos, sim. Contaram-me há muito tempo que, em alguns países africanos, quando a SIDA começou a matar a sério, uma ONG distribuía preservativos gratuitamente pelas povoações que ficavam no meio do mato para, pouco depois, concluir que aqueles não tinham sido usados, porque os autóctones desconheciam para que serviam e não tinham ideia sequer de como os pôr. Numa iniciativa bastante arrojada, decidiram então na ONG fazer um filme realista com actores negros – que seria considerado pornográfico se não tivesse fins pedagógicos – em que um casal fingia fazer de tudo depois de colocar o preservativo (e também mostrava, logo a abrir, a sua colocação adequada); uma carrinha andava por essa África fora a convidar gente para ir ver o filme – e, se alguns saíam de lá excitados e direitinhos às namoradas, pelo menos estariam mais informados sobre os riscos que corriam se não se protegessem. Pois bem, há métodos para tudo e, no Facebook do escritor e crítico literário José Riço Direitinho, encontrei, partilhado de um site de um designer gráfico, um alfabeto bastante criativo inventado ao tempo de Estaline com o objectivo de combater o analfabetismo adulto (mas não creio que o ditador tenha tido conhecimento dele). Desenvolvidas nos anos 1930, as letras inspiram-se em posições sexuais várias, algumas das quais remetem para figuras míticas, entre elas a do centauro. Há pares, trios e conjuntos que dariam umas mini-orgias alfabéticas e, na letra i, a pinta é nada mais nada menos do que uma pilinha com asas (tipo drone) virada à boca de uma mulher de pé... Chocados? Acho que não. Enfim, não sei se alguém aprendeu a ler com este incentivo, mas aí vai um V de vagina bem ilustrativo do que pode ser a alfabetização de adultos em tempos de repressão e purgas...
A primeira vez que ouvi falar de escrita criativa foi há muitos anos, a propósito de um autor inglês que então era apenas uma promessa (Ian McEwan) e que saíra de uma universidade, East Anglia, que, ao que parecia, era uma espécie de fábrica de escritores. Muito mais tarde, contactei com autores portugueses que davam aulas ou promoviam oficinas de Escrita Criativa, com exercícios e tudo, e cheguei a publicar um pequeno manual que era seguramente uma boa ajuda para adolescentes sequiosos de passarem ao papel as suas ideias de forma organizada. Porém, nunca achei que ninguém se pudesse tornar escritor apenas por frequentar cursos desse tipo, acreditando, como ainda acredito, que o talento não se aprende – ou se tem, ou nada feito. Quando comecei a publicar autores portugueses, apercebi-me também de alguns malefícios destes cursos, pois os candidatos a escritores começaram a descrever os narizes das personagens até à exaustão e a dizer invariavelmente de quantos lugares era o sofá... Recentemente, li a este respeito uma notícia interessante. O reputado escritor Hanif Kureishi, que ensina Escrita Criativa na Universidade de Kingston, confessou num festival literário, perante um público numeroso, que considera a disciplina uma perda de tempo, que tudo o que conseguiu até agora foi que os alunos escrevessem umas frases boas e bonitas, mas não histórias boas, e que os vê demasiado preocupados com a prosa para poderem escrever um livro interessante. Referiu que 99,9% dos estudantes simplesmente não têm talento literário e que ler o que eles escrevem é tremendamente aborrecido. Outro escritor presente, ex-professor da mesma cadeira, concordou com as suas afirmações e, embora salvaguardando a importância do estilo, assegurou que não se é escritor sem talento e que muitos dos alunos do curso de Escrita Criativa nunca conseguirão passar de escritores medíocres e que é penoso andar a enganá-los no dia-a-dia. E mais: disse que os cursos de escrita criativa se tornaram um negócio em todo o mundo e que há pessoas que frequentam um workshop durante um fim-de-semana e acham que isso basta para se porem a escrever um romance... Enfim, se são os próprios professores a afirmá-lo, quem sou eu para dizer o contrário?
Pois a verdade é que, quando vêm tempos maus, lá regressa a história do nosso rei que se perdeu em Alcácer Quibir e ainda há-de vir salvar-nos, aparecendo numa manhã de nevoeiro. Sebastião, a quem Camões deu Os Lusíadas em mão, tornou-se o Desejado por nunca ter reaparecido e nos ter mergulhado no domínio espanhol durante sessenta anos. Isso já se passou há séculos – e hoje até nos damos bem com os nossos vizinhos –, mas o sebastianismo é ainda uma marca portuguesa, segundo alguns dos nossos maiores pensadores e autores, tais como Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, José Gil, Padre António Vieira ou António Quadros. Agora, é Miguel Real quem se ocupa do tema, na obra Nova Teoria do Sebastianismo, um interessante ensaio que recupera os escritos dos filósofos que se dedicaram a questões como as do Quinto Império ou do Encoberto e no qual, além disso, se explica o sebastianismo como inevitável para um povo que só consegue alguma coisa com cunhas ou através da sujeição a um partido político, quando não com rezas à Senhora de Fátima e sorte no Euromilhões. Isto liga-se, claro, ao recente problema da emigração dos jovens licenciados, o que torna este livro ainda mais actual e necessário. A ler, portanto, em dia de névoa ou não.
Um dia destes, estava a pensar em greves (não ao blogue, fiquem tranquilos) e comecei a perceber que, excepto no caso francês, a palavra para dizer a coisa era muito diferente da portuguesa nas línguas todas que conheço e, portanto, não tinha uma origem comum. Fiz uma curta investigação e descobri que «Grève» era, efectivamente, o nome de uma praça em Paris (assim se chamava por ter gravilha) aonde iam os que não tinham trabalho para serem contratados à jorna. Porém, quando iam com quem os contratava e lhes desagradavam as condições, regressavam à praça à procura de nova oportunidade, pelo que «estar em greve» acabou por significar o abandono do trabalho por um salário mais justo. Em Espanha, a palavra para greve é «huelga» e está relacionada, no fundo, com «folga» (de «fole», calculem, porque se respira fundo depois de uma grande fadiga), dia em que não se trabalha (e, curiosamente, o verbo latino donde vem a palavra huelga descambou também para a palavra que quer dizer fo… fornicar, já que nuestros hermanos não brincam em serviço, mas nas folgas gostam de se divertir). Para os italianos, o termo é «sciopero», mais uma vez muito distante da nossa «greve», mas infinitamente mais lógico na sua composição, vindo do latim ex operare, ou seja, deixar de trabalhar. Por fim, em inglês, temos a expressão «on strike» e, embora o verbo to strike não apele ao espírito da interrupção laboral com vista à reivindicação de melhores condições, a verdade é que, lá nos confins de um dicionário, li que «striking» também era o movimento de baixar as velas para mostrar que não se queria ir ao mar e, portanto, tudo tem a sua explicação. Os meus quatro anos de alemão e um de neerlandês não chegam para brincar à etimologia com as greves destas línguas (também deve haver menos greves a norte, digo eu), mas talvez a extraordinária Cristina Torrão nos possa elucidar, pelo menos no caso alemão.
Diz-se muitas vezes que o verdadeiro escritor tem de ter uma voz, ou seja, tem de ser reconhecível em tudo o que escreve através de um estilo que lhe pertence e não é de mais ninguém (mesmo que nele se notem influências de autores queridos e amados, o que nada tem que ver com copiar a forma de esses escreveram). Quando estão a começar livros novos, também os escritores dizem frequentemente que têm tudo na cabeça mas ainda não encontraram o tom. Ora, é no mínimo engraçado que se usem dois termos – voz e tom – quando se está a falar de escrita, pois seriam, digo eu, mais imediatamente associados à oralidade. Mas também eu tenho tendência para pensar, quando ouço um dos meus poemas dito por outra pessoa, que aquela não é a música com que o escrevi. Por falar em música, leio numa entrevista a Annie Clark (artista pop) uma belíssima citação da biografia de Miles Davis, na qual se diz que a coisa mais difícil para um músico é «soar a si mesmo», expressão que, no fundo, equivale a «ter uma voz» em termos literários (isto anda tudo ligado). Ter várias vozes, como Pessoa & heterónimos, não deve ser, mesmo assim, confundido com não ter nenhuma, que é o que acontece quando deixamos um recado à senhora que nos dá uma ajuda na limpeza da casa e que, seja ou não um escritor a redigi-lo, deve ser sempre mais ou menos a mesma coisa. Já me aconteceu, porém, ser jurada num prémio de poesia e ter seleccionado dois livros completamente distintos que eram, afinal, da mesma pessoa. Não sei, mesmo assim, qual deles, para o seu autor, soaria melhor a si mesmo.