O senhor Umberto Eco é, como toda a gente sabe, um acérrimo defensor do livro em papel, que acha o melhor instrumento de aprendizagem e transmissão de conhecimento, defendendo, aliás, que só pode ser maluco quem afirma que um dia desaparecerão os livros em papel. Mas eis que, por ter de fazer uma viagem para os EUA acompanhado de 20 livros que lhe eram indispensáveis à tarefa que ali o ocuparia, decidiu comprar um iPad e (diz ele numa entrevista a um jornal brasileiro) gostou! Porém, quando lhe perguntam se mudou a sua opinião sobre o digital e a Internet, responde que não, que na Internet a informação não é seleccionada, aparece sem hierarquia nem crivo, e que a Wikipédia é um perigo, pois presta um péssimo serviço aos cibernautas que, dificilmente, conseguem separar o que está certo do que está errado. Como exemplo, fala do que circula sobre si próprio e do tempo que perde a corrigir as entradas com o seu nome nas Wikipédias do mundo inteiro. E avança que o excesso de informação provoca amnésia (nunca me tinha lembrado disto) e que filtrar o conhecimento é fundamental para se ser culto, mas um ignorante jamais saberá filtrar, pelo que sugere que, para evitar o descalabro futuro, se crie desde já uma disciplina ou uma ferramenta chamada Teoria da Filtragem baseada na experimentação quotidiana da Internet. Um desafio para as universidades vindo do senhor Umberto Eco.
Não se é considerado um génio literário por dá cá aquela palha – e, tantos séculos passados desde a sua morte, Shakespeare continua a ser um génio para toda a gente que aprecia literatura e não só. Entre outras razões, porque foi dos escritores que mais contribuíram para o crescimento da língua inglesa. Para quem não saiba, ele inventou milhares de palavras novas que hoje fazem parte não só dos dicionários, mas do uso corrente dos falantes anglófonos – uma delas, bem aparentemente moderninha, é «manager», calculem. Mas existem muitas outras que lhe são atribuídas, embora não se saiba bem se foi ele realmente o seu inventor (é sempre possível que quem as criou ou pediu emprestadas a outras línguas fosse simplesmente analfabeto e não as pudesse registar). Em todo o caso, há exemplos bem interessantes – como «lonely», cuja primeira aparição escrita se deve à peça Coriolano, e «hurry» que consta da Parte I de Henrique VI (talvez antes os ingleses fossem menos apressados). E são também da sua pena os mais ou menos opostos «radiance» e «gloomy», bem como as palavras «critical» e «generous» (ambas derivadas do latim, mas inglesadas pelo nosso homem). Enfim, quando se celebra um autor pela sua inovação linguística (Mia Couto e o seu «esparramorto», por exemplo), não se deve esquecer que, por muita criatividade que exista hoje, ninguém supera o velho William.
Ontem chegou cedo a notícia – e era má. Uma amiga, jornalista do Público, dizia ao Manel que tudo indicava que Vasco Graça Moura morrera por volta do meio-dia. Ficámos tristes, sobretudo porque a sua luta contra a doença foi invulgarmente corajosa, uma espécie de fuga para a frente sem queixas nem lamentos, em que nunca deixou os compromissos e a escrita, por muito que lhe custasse (mas a um homem assim deveria custar muito mais não o fazer). Mas também nos doeu porque, com a sua morte, perdemos um dos nossos últimos intelectuais à maneira do Renascimento: um homem com uma cultura extraordinária da grande e da pequena história, melómano, literato, e um criador invulgar que felizmente nos lega uma obra própria bastante extensa e multifacetada e ainda, por meio das suas traduções, a obra de muitos outros autores de épocas e estilos diferentes com a sua marca poética especial. A este respeito, lembro-me de ter feito uma viagem de avião com ele há uns anos, de Lisboa para Madrid, e de ele ocupar o tempo todo do voo a traduzir dois poemas de Petrarca (só ele conseguiria fazê-lo, e bem, em pouco mais de uma hora); e de, na mesma altura, depois de um jantar em casa do então conselheiro cultural em Madrid, o escritor João de Melo, ter brindado os presentes com um soneto belíssimo, feito ali na hora, em três tempos, gabando a refeição e o convívio. A literatura saía-lhe com naturalidade, mas nunca com banalidade. Além disso, era a voz com mais peso contra o Acordo Ortográfico e, também por isso, nos vai fazer muita falta. Mesmo não concordando com muitas das suas posições políticas, tenho de dizer que a cultura portuguesa perdeu ontem um dos seus grandes vultos. E os que tivemos a felicidade de o conhecer (atenção, nunca fui íntima, nem quero passar por isso, mas estive muitas vezes com ele em acontecimentos literários ou ligados ao fado) também não esqueceremos a graça que tinha a contar anedotas.
Trabalhei há uns anos numa editora que fazia colecções de livros para serem vendidas com jornais e, entre essas, saiu uma História de Portugal para crianças em vários volumes, sendo que o que tratava do 25 de Abril desapareceu imediatamente, pois os pais decerto arranjaram ali uma boa maneira de mostrar aos filhos como tinha sido essa revolução em que não se derramou uma pinga de sangue e que virou o País de pernas para o ar. Agora, a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em parceria com as edições Pato Lógico, lançam mais uma colecção infantil de peso, desta vez dedicada a grandes figuras portuguesas, cujos textos são escritos por José Jorge Letria e ilustrados por alguns dos nossos maiores nomes da ilustração, como João Fazenda, Nuno Saraiva e António Jorge Gonçalves. E, porque amanhã é dia de festa (e, palpita-me, de confusão, por tudo o que se sabe e que agora não vou esmiuçar), aconselho a compra pelos que são pais ou educadores do pequeno livro dedicado a Salgueiro Maia (o subtítulo é O Homem do Tanque da Liberdade), que pode e deve ser lido às crianças neste dia tão especial. Também há Pessoa, Almeida Negreiros e o Soldado Milhões, mas a colecção não se ficará por estes quatro títulos.
Luis Sepúlveda, ficcionista chileno, é um dos autores que mais vende em Portugal; depois de um estrondoso sucesso com O Velho Que Lia Romances de Amor, atingiu de novo o zénite com um livro supostamente juvenil intitulado História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar, reeditado posteriormente com ilustrações (concebidas para a editora alemã e reproduzidas em terras lusas) e «membro» de pleno direito do nosso Plano Nacional de Leitura. Mais recentemente, foi dada à estampa uma sua novela do mesmo tipo, História de Um Gato e de Um Rato Que Se Tornaram Amigos, esta ilustrada por esse artista genial que é Paulo Galindro, que reincide no agora publicado História de Um Caracol Que Descobriu a Importância da Lentidão, escrito para os netos em resposta à pergunta de um deles: Porque são tão lentos os caracóis? O protagonista, caracol sem nome, interroga-se sobre a lentidão da sua espécie e interpela os pares, que o acham bastante ousado e aborrecido e acabam por expulsá-lo do prado onde habita a comunidade. O Rebelde, assim baptizado mais tarde por uma tartaruga que o esclarece sobre a importância da lentidão, não fica, mesmo assim, ressentido e, quando sabe que as máquinas se apressam a destruir o prado verde onde estão os antigos companheiros para construir uma estrada, volta atrás – muito lentamente, como não podia deixar de ser – para os avisar dos perigos que correm. Uma aventura cheia de peripécias para mostrar que a rapidez nem sempre é uma vantagem. Até porque, para pensar, precisamos de tempo. Este livro é para todos.
Publico agora na Teorema um romance muito original de uma autora chilena, Andrea Jeftanovic, intitulado Amar numa Língua Estrangeira. Ele conta a história da relação entre Sara e Alex, ela habitante do Sul terceiro-mundista, ele cidadão do Norte ultracivilizado. Conhecem-se num avião e acabam a beijar-se na sala de transferências do aeroporto antes de rumarem cada um ao seu destino – e a língua do beijo é a mesma, embora as suas línguas sejam muito diferentes. Ao chegarem a casa, sabem que, enquanto estiveram no ar, houve um terrível atentado e telefonam-se preocupados um com o outro; e a partir de então desenvolvem um relacionamento que, apesar da distância, é profundamente íntimo e erótico e dá origem a vários reencontros, nos quais o Norte se choca com o Sul poluído e vítima da escassez e o Sul se aflige com o asseptismo e o desperdício exagerados do Norte. Enquanto isso, a língua estrangeira da comunicação faz com que nunca se diga inteiramente a verdade e a língua dos beijos não deixará ninguém mentir. Mas o terror dos atentados que ocorrem durante o período que dura a história dos amantes invade a sua intimidade. E há também um terror pessoal, o de uma doença que se instala e afecta quem precisa de ser tratado e quem tem de tratar. Este é um livro que não se esquece, garanto, duro e ao mesmo tempo profundamente sensível.
O jornalista João Miguel Tavares, cronista do Público e director-adjunto da revista Time Out, membro do Governo Sombra da TSF (e agora também da TVI 24), é pai de quatro filhos e autor de um blogue intitulado precisamente Pais de Quatro, no qual escreve sobre as alegrias, surpresas e dissabores (quase nenhuns) da paternidade. Foi justamente nesse blogue que encontrei um post engraçadíssimo sobre respostas erradas (mas altamente criativas e dignas de aplauso) que crianças norte-americanas deram em testes escolares. Algumas são notáveis do ponto de vista da lógica, como no caso em que a professora pediu aos alunos que fizessem um desenho de si próprios daqui a muitos anos, e um rapaz teve a ousada ideia de se desenhar no túmulo... Mas há outras fantásticas, como a de um teste de Ciências em que se diz que uma rapariga espreita pelo microscópio, mas não vê nada, perguntando-se de seguida aos alunos qual será o problema. Um deles, bastante expedito, responde que certamente a miúda é cega – e a professora não se deixa impressionar e anota à margem: «Boa tentativa!» A esperteza saloia chega, de resto, ao auge quando se pergunta o que é preciso fazer para converter centímetros em metros e um dos inquiridos responde simplesmente: «tirar o centí.» A melhor de todas está, no entanto, no teste em que se pede uma composição, sugerindo aos alunos que assumam o papel de um imigrante chinês em 1870 e escrevam uma carta a contar a sua experiência. O resultado aí vai. Genial!
Em véspera de feriado (fim-de-semana grande, para variar), meto o nariz em vários livros para ver se levo algum comigo para estes três dias livres que se avizinham. E, bom, reparo que, à beira de o 25 de Abril fazer 40 anos, saíram várias obras que tocam a matéria de diversas formas. Já aqui falei há uma semana ou mais em Os Rapazes dos Tanques (para ler e ver, porque as fotografias são geniais), mas há que referir também Os Memoráveis, de Lídia Jorge, romance que fala da revisitação da festa por alguém nascido muito mais tarde e noutro país; e também, pois então, a colectânea de poesia de Manuel Alegre cuja selecção aponta para a nossa revolução e se chama País de Abril. Mas não é tudo, porque também aliciante é A Flor e a Foice, de Rentes de Carvalho, publicado há muitos anos na Holanda e agora disponível igualmente para os leitores portugueses (o título, de resto, é suficientemente eloquente para podermos relacioná-lo logo com a efeméride); e, por último, Luísa Lobão Moniz, professora do primeiro ciclo há uma eternidade, produziu um livro para crianças intitulado A Escola dos Cravos, para ensinar aos mais pequenos como era a escola antes do 25 de Abril. Há-de haver outras coisas, evidentemente, sobretudo na área do ensaio, mas estou já demasiado indecisa, sem saber se me faço acompanhar por algum destes e como vou desempatar. O mais certo é levar a abrilada toda comigo de fim-de-semana. Uma Páscoa cheia de cravos, porque não?
Já aqui disse que um dos meus livros favoritos é O Amante, de Marguerite Duras (não, não vou abrir uma livraria só para vender o livro na Baixa, como o leitor de que falei ontem, mas gosto mesmo muito do romance, bem como de outros escritos pela mesma pena). Pois a senhora Duras, se fosse viva, faria cem anos este ano (nasceu, como a Primeira Guerra Mundial, em 1914) e por todo o lado se festeja o seu centenário. Em França, vão-lhe publicar a obra completa na Pleiade, uma colecção de luxo, e um dos últimos suplementos Babelia, do El País, em Espanha, dedicava-lhe um razoável número de páginas. Mas também em Portugal não lhe somos indiferentes – e o Porto comemora-a com espetáculos, sessões de cinema, exposições, leituras públicas e até conversas sobre jornalismo cultural, promovidas por mais de duas dezenas de entidades, artistas e investigadores. Diz uma das organizadoras que o centenário da escritora que nasceu no Vietname e morreu em Paris, e teve uma vida bastante agitada pelo meio, é um bom «pretexto para dar a conhecer, ou para revisitar, uma autora carismática e de referência do século XX, que questionou fronteiras entre diferentes tipos de escrita». As livrarias da Invicta vão, pois, encher-se de livros de Duras e serão levadas à cena peças adaptadas das suas obras no Teatro Nacional de S. João e no Teatro do Campo Alegre durante este mês de Abril, que é o do seu nascimento. Tomara que tudo isso sirva para muitos que ainda não a conhecem passem a lê-la com regularidade.
Os livros provocam grandes paixões que ficam para sempre (ao contrário das paixões por homens e mulheres, que são normalmente temporárias, dando origem a decepções ou um amor mais tranquilo). Em Oslo, um leitor apaixonou-se de tal forma por um livro que considera o melhor do mundo que decidiu, mesmo que apenas por alguns dias, abrir no centro uma livraria chamada Bookstore of Intranquility e chamar a atenção para a sua enorme paixão, vendendo apenas... O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. Christian Kjelstup, assim se chama o desassossegado-mor da Noruega, colocou centenas de exemplares da tradução do pessoano livro por todo o lado, escreveu o título em letras garrafais na montra e organizou, logo na noite da abertura, um serão à volta de Pessoa que, pelo que se sabe, foi bastante concorrido. Convidou um guitarrista português ali emigrado para abrilhantar o serão e para tudo contou com o apoio da Embaixada de Portugal, que deu o evento por bem-sucedido, pois teve direito a uma reportagem sobre o senhor Pessoa num dos canais televisivos com maior audiência. Kjelstup espera que deste modo muitos outros leiam o livro que ama. E nós, à distância, ficamos-lhe gratos.