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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

19
Mai14

Zangas

Maria do Rosário Pedreira

Em todos os países existem escritores que não gostam de um ou mais dos seus confrades – e não estou a falar do que eles escrevem, mas dos indivíduos –, nutrindo por eles uma antipatia muito especial que, por vezes, chega a ser raiva ou ódio. Cá na terra, sabe-se que Lobo Antunes nunca foi à bola com Saramago, por exemplo, e que passou a gostar ainda menos dele depois de o Nobel lhe ter sido atribuído, quiçá porque, com esse gesto da Academia Sueca, viu perdidas as suas hipóteses de obter ele mesmo o galardão. Mas zanga a sério foi a que ocorreu em meados dos anos 1970 entre dois grandes (que ganhariam ambos o prémio tão ambicionado por Lobo Antunes, embora com anos de intervalo), García Márquez e Vargas Llosa, e que, inclusivamente, meteu tareia (o peruano socou o colombiano e mandou-o ao chão) e não deu direito a pedido de desculpas ao longo da vida nem a reaproximação. Ninguém soube exactamente a razão da briga, embora alguns jornalistas digam que a mulher de Llosa era o verdadeiro assunto; e as testemunhas da luta corpo-a-corpo comprometeram-se, tal como os dois contendores, a não alimentar a sanha dos jornais e a não revelar nada sobre a matéria. E foi isso que aconteceu, pois recentemente, a seguir à morte de García Márquez, Llosa foi de novo interrogado sobre essa velha cena, ocorrida em 1976, mas disse apenas que, se o adversário tinha cumprido a sua palavra, ele não via razões para não o fazer. «Os biógrafos que descubram a verdade», respondeu a rir.

16
Mai14

O rapaz e o mestre

Maria do Rosário Pedreira

Está na rua a última novela de Mário Cláudio, um primor sobre a relação de um génio com um dos seus discípulos dilectos. Trata-se nem mais nem menos de entrar, pela mão do escritor portuense, no estúdio de Leonardo da Vinci e de conhecer Giacomo, um adolescente de cabeleira loura aos caracóis, ainda não totalmente livre de piolhos, que o pai, cansado das suas tropelias, vem deixar aos cuidados do mestre, para que ele o alimente e eduque. Mas não será tarefa fácil, porque o rapaz, apesar da sua aparência de anjinho, é um diabrete – e a primeira coisa que faz é surripiar a bolsa de Leonardo, subtraindo-lhe as moedas com que ele iria pagar-lhe umas roupas novas para o tirar dos seus tristes farrapos. Em farrapos ficarão, pois, também as vestes por estrear, que, para génio que se preze, o castigo tem de ser mostrado logo de início. Este episódio é, porém, apenas o começar de uma relação que durará vinte e cinco anos, em que o grande cientista construirá a sua máquina de voo, exumará cadáveres, coreografará cortejos reais e pintará as suas principais obras sob o escrutínio do rapaz que, sem grande talento a não ser para a asneira, não sairá do seu lado e cultivará uma fidelidade e um ciúme equivalentes. Notável, este Retrato de Rapaz é como uma pintura muito bela e viva que deve absolutamente ser lida por todos os que gostam de Da Vinci e de literatura.

 

15
Mai14

Literatura para comer

Maria do Rosário Pedreira

Tenho reparado que de há uns tempos para cá fazem um enorme sucesso os livros de dietas, que, aliás, chegam quase sempre aos Top de vendas – e, como diz uma colega editora, nunca se viu, apesar disso, tanta gente gorda. Mas também é verdade que a comida está na moda, que proliferam chefs como cogumelos no mundo inteiro e que tudo o que é livro de cozinha de gente mais ou menos famosa – cozinheiros profissionais, gastrónomos ou simplesmente pessoas conhecidas que têm mão para os tachos – acaba por se impor no mercado e conquistar milhares de consumidores. E, porém, os autênticos devoradores de livros não são os leitores destas espécies, mas de outra, normalmente com páginas cheias de letrinhas pretas, sem ilustrações, que os transportam a um sentimento de delícia que nada tem que ver com papilas gustativas. No entanto, um pintor e designer polaco, Pavel Piotrovski, resolveu celebrar os gulosos dos livros com uma obra que apetece mesmo comer e a que chamou, não por acaso, o Livro-Sanduíche. Nele, as páginas satisfazem a nossa fome de leitura de uma forma muito especial. Ora veja.

 

14
Mai14

Se bem me lembro

Maria do Rosário Pedreira

Já aqui falei de Nemésio e do seu programa de TV que tinha o nome deste post. Lembrar é um exercício bem interessante, mesmo em literatura, e o grande cronista Ferreira Fernandes resolveu lembrar-se de se lembrar, entre outras coisas, do que foram os meses em Portugal antes do 25 de Abril nesse ano de 1974. Diz quem sabe que se inspirou em dois outros autores, Georges Perec e Joel Breinard (que se dedicaram a outros anos), e com as suas memórias desses quatro meses compôs um livro intitulado muito justamente Lembro-me Que (o de Perec chamava-se Je me souviens e deve ter sido o que mais directamente influenciou o autor, pois este estava em França antes da data que quer celebrar com esta obra). O livro, que já tinha sido editado há uns bons anos, volta a ver a luz das livrarias no quadragésimo aniversário da revolução, e não reúne lembranças pessoais de Ferreira Fernandes, mas episódios que ajudam o leitor a entender como era o País «nas vésperas da grande mudança», como diz o jornalista José Mário Silva, que recentemente recenseou o livro para o Expresso. São cerca de 300 fragmentos de crónica que descrevem o que se passou e o que se escreveu (às vezes propositadamente de forma enviesada para enganar a censura) nos jornais entre 1 de Janeiro e 24 de Abril, factos que podiam parecer irrelevantes mas que já apontavam para o que viria a suceder, e bem assim curiosidades do dia-a-dia, como preços de produtos que hoje nos fazem perceber melhor a crise em que estamos. Vale a pena ler e admirar o estilo deste cronista muito dotado.

13
Mai14

Cesário integral

Maria do Rosário Pedreira

No Dia Mundial do Livro, entre muitíssimas outras actividades, foi lançada em Lisboa a obra integral de um dos meus poetas favoritos, Cesário Verde. Curiosamente, a sua organização ficou a dever-se não a um estudioso português, mas a um académico brasileiro, Ricardo Daunt, professor catedrático da Universidade de São Paulo, que veio a Portugal expressamente para participar na sessão, em que falou também a professora Annabela Rita. Além da obra poética completa, revista e ordenada segundo semelhanças formais e temáticas dos textos de Cesário publicados em vida, o volume inclui uma biografia cronológica e ainda toda a sua correspondência anotada. Daunt tem uma admiração profunda por este português que Pessoa considerava um mestre e que foi, segundo ele, um precursor da modernidade na poesia portuguesa, «superando o impasse do modelo realista para criar uma poesia que não se contenta em permanecer no interior da cápsula do real». Tendo Cesário Verde morrido em 1886, sem ter reunido a sua obra, ela foi compilada um ano depois por Silva Pinto, mas houve coisas que ficaram dispersas e, além disso, não havia ainda nenhuma edição que incluísse a biografia e um estudo crítico. Está é, pois, uma boa razão para voltar a Cesário.

12
Mai14

Geografias

Maria do Rosário Pedreira

Os meus irmãos e eu, quando éramos pequenos, adorávamos jogar ao STOP (não sei se se lembram do que é) e, entre os temas mais apreciados, estavam os Países e as Cidades, que preenchíamos sem hesitação, fossem próximos ou distantes, mesmo quando começavam por letras esquisitas como Q ou Z. Recordo-me de conhecer capitais de países africanos que nunca estudei na escola (ler dava uma boa ajuda, mas consultar atlas também fazia parte dos tempos livres); embora hoje se calhar a disciplina de Geografia não vá muito longe, os jovens portugueses também têm hipótese de viajar mais cedo (com o Erasmus, por exemplo) e sabem localizar bastantes países num globo terrestre. Mas nos EUA, muito virados para si próprios (quando não para o umbigo do seu Estado apenas),  os habitantes ignoram a geografia mundial. Na época da guerra do Iraque, mesmo os que diziam ser claramente a favor da intervenção americana nunca sabiam onde ficava o Iraque quando lhes estendiam um mapa-múndi. E, mais recentemente, foi entregue a um grupo numeroso de norte-americanos (alguns universitários) um mapa da Europa dividido em países, mas sem nomes, para que o preenchessem. E algumas das respostas foram, como não podia deixar de ser, hilariantes. Além dos mais ou menos óbvios Reino Unido, França, Itália (a bota ajuda muito) e Rússia (o fantasma da Guerra Fria não desaparece de um dia para o outro), que quase todos assinalam correctamente, a Europa Central é descrita muitas vezes como Transilvânia e os territórios da ex-União Soviética como o país de Borat (ai, o cinema); Portugal é a Espanha ocidental ou fica em branco, e há quem ponha uma seta abarcando os países nórdicos dizendo apenas «Hot blonde people» ou «Bjork is here somewhere» ou ainda «Cold» (com alguma razão). O pior resultado acontece na zona dos países mais novos (os que ocuparam a ex-Jugoslávia, por exemplo), que ninguém sabe nomear. Pois é... A notícia revela algum escândalo e apreensão – a Europa é velha – mas saberíamos nós o lugar de cada um dos Estados norte-americanos num mapa em branco? Acho que não.

09
Mai14

LeV

Maria do Rosário Pedreira

Está aí mais uma edição do festival LeV – Literatura em Viagem, que já há vários anos se realiza com o apoio da Câmara Municipal de Matosinhos na Biblioteca Florbela Espanca daquela cidade e tem, desta feita, a organização dos Booktailors. Embora o nome do encontro sugira que o assunto é a literatura de viagem, não é bem assim, pois todas as viagens que podem ser feitas à roda de um livro, especialmente as interiores, são, afinal, o mote das mesas redondas que acontecem ao longo do festival desde 2007, mesmo que já tenham sido convidados alguns autores que se dedicavam especialmente ao género acima referido, como, por exemplo, o grande viajante Paul Theroux. Este ano, a abrir as hostilidades – a expressão não poderia ser mais adequada –, teremos José Sócrates, uma presença bastante inesperada num encontro literário; no entanto, diz o presidente do município que, nestes 40 anos do 25 de Abril, era importante poder ouvir alguém que fizesse uma comparação entre um tempo em que os primeiros-ministros não saíam praticamente de Portugal e os tempos actuais, em que estão mais tempo a viajar do que sentados nos seus gabinetes. E haverá também uma homenagem a Rentes de Carvalho, exposições de fotografia, mesas-redondas, idas a escolas, lançamentos de livros. Eu também vou lá estar, no domingo à tarde, na sessão de encerramento, para falar de como é fazer texto para ser musicado, na companhia do Azeitona Miguel Araújo Jorge, Mafalda Veiga e Verônica Ferriani. Estando pelo Norte, dê lá um salto.

08
Mai14

Mal me quer, bem me quer

Maria do Rosário Pedreira

Hoje será distribuído e posto à venda um belíssimo romance que esteve entre os finalistas da última edição do Prémio LeYa. Chama-se Mal Nascer, escreveu-o o alentejano Carlos Campaniço e conta, alternadamente, a infância de um mal-nascido e a sua vida adulta como médico na pequena vila donde fugiu aos maus-tratos de muitos que lhe queriam mal (entre eles, o padrasto) e aonde regressa muito mais tarde, fugido aos absolutistas (é um liberal assumido), para se vingar. Porém, ao contrário do que esperava, a verdade é que ninguém reconhece Santiago tantos anos depois, nem mesmo os seus piores inimigos; e, pela sua posição, todos o enchem de vénias e salamaleques e até lhe arranjam noiva na rapariga cujos pais foram os principais responsáveis pela terrível meninice que ele teve. Mal-entendidos à parte, a descrição da vida tremenda de Santiago como guardador de porcos e enteado mal-amado numa vila dominada por um latifundiário amargurado com a morte do filho varão e a narrativa dos seus amores por uma rapariga casada que o ajuda no consultório estão cheias de passagens maravilhosas que compõem uma obra com suspense até à última página e cheia de peripécias que nunca deixam quebrar o ritmo. Amanhã, no lançamento, Afonso Cruz apresentará o romance e, aposto, há-de ter muito para dizer. Se quiser, apareça por lá.

 

07
Mai14

De pequenino

Maria do Rosário Pedreira

Os mais pequenos também têm direito a que alguém reflicta sobre aquilo que lhes cai bem, e hoje inicia-se na Universidade de Aveiro o III Ciclo de Conferências para a Infância e Juventude, dedicado à literatura infanto-juvenil. A universidade recebe três conferencistas, um por semana, a começar pelo escritor Álvaro Magalhães, que escreve para jovens há mais de trinta anos e ficou conhecido pela sua série de livros Triângulo Jota, posteriormente adaptada à televisão, que vendeu milhares de exemplares e se tornou uma das mais populares entre os leitores. No dia 14, é a vez de ter a palavra a ilustradora Catarina Sobral, uma interveniente mais nova nestas coisas dos livros, mas muito justamente premiada na última Feira do Livro de Bolonha entre centenas de candidatos de todo o mundo e já antes galardoada com o seu Achimpa! na gala da Sociedade Portuguesa de Autores. Por fim, no dia 21, Sandie Jones Mourão, investigadora na área da literatura para a infância e juventude, falará da obra de outro grande ilustrador, Bernardo de Carvalho, um dos membros da Planeta Tangerina, e Rui Ramos (não o historiador) centrar-se-á na importância da leitura para a «ecoliteracia», um assunto bastante oportuno (eu própria já escrevi um livrinho há uns anos em que espero ter ajudado as crianças a perceber o problema do desperdício contemporâneo e a construir um país mais limpo e ecológico). As sessões têm lugar no Departamento de Línguas e Culturas e são organizadas por Ana Margarida Ramos, que se tem destacado no estudo e investigação da literatura para os mais pequenos. Se a matéria lhe interessa e estiver por perto, não falte.

06
Mai14

Regras

Maria do Rosário Pedreira

Há desde sempre o mito de que o escritor é um ser completamente desregrado, mas são muitos os escritores actuais que partilham com os leitores as regras que os norteiam, desde que Elmore Leonard (recentemente falecido) o fez nas páginas do New York Times. Desta vez, foi a britânica Zadie Smith, autora de livros como Dentes Brancos e do mais recente NW a estabelecer dez pequenas regras para se ser escritor – e a primeira, comum a quase todos os que se dispuseram a contribuir, é a de que, antes de se começar a escrever, é preciso ler, ler muito, gastar mais tempo a ler do que com qualquer outra actividade (presumo que dormir não contará como actividade). Porém, entre os seus conselhos, um dos que mais apreciei foi o de devermos ler os nossos textos como se não fossem nossos, como se fôssemos outras pessoas e, de preferência, pessoas que não gostam assim muito de nós (difícil, não é?). Outra das regras (ah, como concordo com esta!) é a de deixar o que escrevemos a marinar tempo suficiente antes de o editarmos: uma das coisas que mais vejo nos dias que correm é os potenciais escritores entregarem os livros logo que terminam as primeiras versões; além de erros e gralhas desnecessários, há muita incongruência de que eles próprios se dariam conta se tivessem sabido esperar. Também me pareceu imensamente válida a sugestão de não confundir nunca um elogio com um feito, uma conquista: o facto de alguém ter gostado do que escrevemos não nos deve convencer de modo algum de que fizemos o melhor de que somos capazes. Por último, adorei um conselho que poucos autores que conheço seguem: o de trabalhar num computador sem Internet!

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