Ainda ontem falava aqui de palavras e é curiosamente também disso que trata um romance que saiu recentemente, da autoria de António Tavares, vice-presidente da Câmara da Figueira da Foz que tem o pelouro da Cultura. O livro, que se intitula As Palavras Que Me Deverão Guiar Um Dia, é como a reprodução de um caderninho comprado na infância, em Moçâmedes, que vai sendo alimentado ao longo do tempo – com palavras, claro, mas também cabelos, fios, nódoas e outras recordações marcantes. Está é, em suma, uma história de crescimento em Angola, onde o autor nasceu, muito ao género de Cinema Paraíso – esse filme sublime – mas com livros; livros que vão parar à mão do protagonista e da sua pseudonamorada (uma rapariga que parece indiferente a tudo, menos aos limões, até descobrir a leitura) por causa de uma carrinha-biblioteca vendida à sucata onde ambos passam a maior parte do dia, lidando também com os despojos das memórias alheias. A aprendizagem dos números com uma fita métrica, o primeiro sexo, a descoberta do corpo, a paixão adolescente por uma actriz de cinema, bem como temas mais latos como a vida num bairro fechado, as perseguições da PIDE, a Guerra Colonial ou a influência da igreja católica no período anterior ao 25 de Abril, compõem um texto belíssimo e inspirador, que não por acaso foi finalista do Prémio LeYa no ano passado. Um caderno para abrir e ler de uma assentada.
P.S. Depois de amanhã, se estiver perto, assista à primeira apresentação do romance, às 18h30, na Assembleia Figueirense, a cargo do professor José Augusto Bernardes.
Certamente se lembram de que, antes das férias, prometi trazer uma vez por mês para este blogue palavras que estão tristemente a cair em desuso – na escrita, claro, mas sobretudo na oralidade, principalmente por desconhecimento dos mais novos. Decidi, assim, que o meio do mês é uma data boa para o fazer e, portanto, as palavrinhas giras de Setembro – quase todas com carga negativa – aqui vão: a primeira é «badameco» (eu uso e abuso porque a encontro mesmo expressiva), que se aplica a fedelhos malcriados, gente pretensiosa e também zés-ninguéns, e deriva da expressão latina «vade mecum», que significa «vem comigo» (gostamos, pelos vistos, de andar mal-acompanhados).
A segunda é «matarruano», o mesmo que labrego, mas com um toque mais ofensivo e cuja origem é desconhecida, mas pode vir de «mato», onde viveriam os não civilizados, os simplórios. A terceira é «moscambilha» (parece que é até mais correcto dizer «mescambilha»), que bem pode ser usada nos tempos que correm a respeito de certos políticos e banqueiros, pois quer dizer «trapaça» ou «tramóia». Segue-se-lhe «valdevinos» (a minha avó usava o termo a respeito do meu irmão mais velho, que era um pouco estroina) e que descobri vir de «Balduíno», nome comum de personagem de novelas de cavalaria, alguém certamente «saído da casca» (eis outra expressão que também já quase ninguém usa e as minhas professoras adoravam). Por fim, a única que ainda creio ser dita por alguns dos jovens – «ribaldaria» (estava convencida de que o primeiro I era um E, devo dizer), que todos aqui certamente sabem o que quer dizer e que vem do francês ribalt,malandro (mas uma malandrice não é nada ao pé desta ribaldaria). E pronto, por hoje chega. Usem, por favor, estas palavras para que não morram. Para o mês que vem há mais.
Ao longo de mais ou menos três anos, este blogue recebeu milhares de visitas. Algumas passaram por cá e logo foram à sua vida, outras demoraram-se na casa mais de um ano, mas acabaram por partir, outras ainda gostaram da mobília e fizeram das Horas Extraordinárias uma sala de estar onde se encontram diariamente para conversar. Nestes três anos, a anfitriã – ou seja, eu – foi podendo conhecer melhor uma série de pessoas sobretudo pelo que vão deixando escrito nos comentários. Mesmo assim, foi bastante bom poder pôr rostos nos nomes de alguns dos «passageiros frequentes» e, por isso, agradeço aos que têm aparecido em lançamentos de livros que publico ou passado pela Feira do Livro de Lisboa a cumprimentar e a apresentar-se. Recentemente, aconteceu até uma coisa muito bonita: uma leitora assídua deste blogue, que vive em França, veio de férias a Portugal e mostrou vontade de se encontrar com o Manel e comigo. Nunca nos tínhamos visto, mas, num jantar na «cantina» do nosso bairro com a sua fantástica família (marido e dois filhos ultra-afectuosos), de repente era como se nos conhecêssemos de toda a vida e só estivéssemos, afinal, a pôr a conversa em dia. A Extraordinária Carla Pais (que todos conhecem certamente daqui) adora ler e escrever e, antes de nós, já tinha estado com escritores que admira, aproveitando as férias para travar conhecimento com alguns deles. Não me passaria pela cabeça falar deste caso em particular (a minha gratidão, notem bem, é para com todos os leitores deste blogue) se não houvesse uma razão muito forte para o fazer, uma notícia que – estou certa – deixará contentes todos os Extraordinários: a Carla concorreu com um conto a um Concurso Literário na ilha da Madeira (Prémio Horácio Bento Gouveia) e foi a vencedora! Além disso, decidiu doar parte do valor ao Centro de Apoio Psicopedagógico de São Vicente (na mesma freguesia que atribui o galardão). Eu fiquei muito feliz por ela e partilho a boa-nova para que todos os que se sentam na sala-de-estar ao seu lado todos os dias lhe possam também dar os parabéns. Muito bem, Carla!
Existem vários manuscritos de grandes obras guardados nas bibliotecas de todo o mundo (hoje, como quase toda a gente escreve directamente no computador, os manuscritos deixarão de existir e de ser mostrados em exposições); conta-se, porém, que o manuscrito de Viagem ao Fim da Noite, de L. F. Céline, publicado em 1932, foi vendido pelo próprio uma dezena de anos mais tarde (já depois do seu sucesso, evidentemente) a um marchand que terá dado por ele dez mil francos (na época, uma pequena fortuna) e ainda um pequeno quadro de Renoir. É provavelmente apenas mais uma história à volta de um dos escritores malditos do século XX (o que nada retira à obra notável atrás referida) sobre o qual se conta ainda ter levado as muitas páginas do original num carrinho de mão até ao local onde se terá encontrado com o comprador. A partir de 1943, ano da negociação, perdeu-se, de qualquer modo, o rasto ao manuscrito, até que em 2001 um alfarrabista terá sido contactado por um coleccionador inglês que estava na posse dessas mil e tal páginas, posteriormente adquiridas em leilão pela Biblioteca Nacional de França por uma quantia que ultrapassou o milhão e meio de euros (parece lenda, mas não é). O que é igualmente certo é que um fac-símile desse original vai ser agora levado à estampa por uma editora francesa, especializada em edições de manuscritos, que já publicou, entre outros, os de A Espuma dos Dias, de Boris Vian, ou La Belle et la Bête, de Cocteau. Vamos, enfim, poder ver a caligrafia de Céline – se quisemos ou pudermos pagar os cerca de 250 euros que nos pedem para isso…
Quase todos os leitores da minha idade leram livros d’Os Cinco, de Enid Blyton, na juventude. Mas também os leram outros mais novos do que eu e outros mais novos do que esses. E ainda os lêem os miúdos de agora, porque, seja qual for o segredo do seu sucesso, a verdade é que Os Cinco parecem ter ingredientes que não passam de moda; não sei se são simplesmente as aventuras misteriosas, o suspense, os lautos pequenos-almoços, a maria-rapaz, os manos, os tios ou o cão, se calhar é tudo junto, mais o talento da autora para tornar o simples maravilhoso. A série teve adaptações televisivas ao longo dos tempos e um ou outro título deu origem a um filme (um dos quais alemão); mas agora houve uma produtora inglesa que se atirou aos famosos Cinco e se propõe fazer uma adaptação cinematográfica envolvendo os cerca de 20 títulos da colecção. Há quem receie que a passagem ao grande ecrã obrigue a uma modernização, com namoros mais carnais, mas, apesar das desconfianças, a notícia tem sido bem acolhida. Também uma grande produtora teatral, a Old Vic, está a trabalhar numa versão d’Os Cinco para palco – por isso, como é bom de ver, a série, que já vendeu mais de 100 milhões de exemplares, vai certamente continuar a ser lida por muita gente no futuro.
Sigo, em regra, a obra de autores de que gosto – e Sándor Márai é um deles. Li, por isso, um dos seus últimos romances publicados em Portugal, mais concretamente A Irmã, que é também um dos mais estranhos dos que conheço do escritor. Assim que começa, percebemos que algo vai correr mal, com o tempo terrível que se instalou e o narrador apanhado pela tempestade numa albergaria de montanha, a poucos dias do Natal. Nesse mesmo local, encontra-se um músico outrora muito famoso, que desapareceu da ribalta ninguém sabe bem porquê e que partilha com o narrador a história da doença que o afectou, impedindo-o de voltar a tocar. Diz, aliás, que escreveu um texto sobre o período da doença e promete mostrá-lo ao seu interlocutor, mas desaparece da albergaria sem o chegar a fazer. Muitos anos mais tarde, depois da sua morte, o manuscrito vem, porém, parar às mãos do narrador, seguindo a vontade expressa pelo falecido. E é esse texto que constitui a segunda parte do romance, que é uma espécie de diário do doente num hospital em Itália, onde quatro irmãs cuidam dele à vez e lhe administram morfina para as terríveis dores que um estranho vírus lhe provoca. É bastante soturno, devo avisar, e algo misterioso também, pois a recuperação do músico depende do amor e há uma voz que lhe segreda uma noite que não o quer ver morrer, mas ele ignora a qual das irmãs pertence. Talvez àquela que lhe oferece uma dose que podia ser letal... A ler, embora não seja dos meus preferidos do escritor húngaro.
Diz-se frequentemente que toda a literatura é autobiográfica, mas até onde podem ir os que se dedicam a ela quando inscrevem nos seus livros factos, personagens e circunstâncias reais, sobretudo contemplando aqueles que lhes são próximos? Bastará mudar os nomes das pessoas para que as personagens não possam ser identificadas com amigos, inimigos e parentes do escritor? Na Noruega, um ficcionista resolveu compor um romance épico de centenas de páginas sobre a sua vida e a da sua família que, como todas, possuía os seus podres, entre o pai sádico e a avó alcoólica ou a primeira mulher constantemente em depressão. Enquanto o escrevia, mostrou algumas partes à mãe, que o aconselhou a parar por ali ou, pelo menos, a esconder os nomes verdadeiros. Mas Karl Ove Knausgaard não aceitou a sugestão e, quando por fim foi dado à estampa Min Kamp (uma paródia ao título da obra de Hitler), o romance vendeu 450 000 exemplares por causa da polémica que o rodeou – mas, claro, a família nunca mais lhe dirigiu a palavra e até a segunda mulher declarou não poder continuar a viver com um homem capaz de contar todos aqueles horrores sobre os próprios parentes. O autor aceitou, dizendo que de facto ele fora recompensado, mas era sobre os outros que recaíra o achincalhamento. Também em França, a romancista Christine Angot, conhecida como a rainha da ficção-choque, usou uma ex-namorada do parceiro como personagem de um dos seus livros (Les petits) e, apesar de lhe ter dado outro nome, a visada sentiu-se de tal modo identificada e afectada que lhe pôs um processo em tribunal, alegando que o romance lhe estragou a vida e que tentou inclusivamente matar-se por causa dele. E o juiz acabou por lhe dar razão e obrigar a escritora a indemnizá-la. Poderá toda a escrita ser assim tão autobiográfica?
Quando lancei Os Demónios de Álvaro Cobra, de Carlos Campaniço, fizemos o lançamento na aldeia alentejana de Safara, o seu local de nascimento. No caminho para lá, desconhecia o que iria encontrar (aldeias alentejanas há muitas, sua palerma!) e fiquei francamente surpreendida à chegada e pela tarde fora com o que fui vendo. Safara tinha restaurantes e bares, prédios e ruas largas – enfim, não era muito parecida com o protótipo da aldeia de casas baixas e branquinhas do Alentejo. E tinha, sobretudo, muita gente boa e simpática que apareceu na hora da apresentação do livro e tornou a festa realmente fantástica. Pois bem, amanhã voltarei a Safara, desta feita para celebrar a saída de Mal Nascer, o novo romance de Carlos Campaniço que foi finalista do Prémio LeYa no ano passado. E, se da primeira vez tivemos a excelente companhia de Mário Zambujal, agora levaremos connosco de Lisboa a melhor gargalhada das nossas letras – ou não fosse Alice Vieira a mais optimista e positiva dos escritores portugueses. Se não conhece Safara e quer surpreender-se, venha também. Garante-se bom ambiente e muito divertimento!
Tarantino e Comarc McCarthy têm afinidades óbvias e uma estética até semelhante. Digo isto a propósito da leitura de Filho de Deus, um pequeno romance do americano que a cada página desenha personagens para Tarantino recriar nos seus filmes: homens violentos, feios, insensíveis, brutos de uma forma gratuita. O protagonista, Lester Ballard, até podia ser um pobre diabo (igual a nós, diz o narrador), a quem tiraram a terra por «mau comportamento». Mas, embora o seja, é igualmente um tarado que dispara sobre os vivos (mormente raparigas) como quem aponta a arma a um passarinho só pelo gozo de lhe acertar. A pontaria é francamente boa – e daí resultam, claro, muitas mortes que fariam as delícias de Tarantino numa das suas fitas. Mas os assassínios não são o seu pior «pecado», porque Lester Ballard colecciona os cadáveres, a quem compra excitantes roupas novas e com quem pratica sexo. Um louco? Evidentemente, mas conseguimos, ainda assim, ter pena deste criminoso que não tem ninguém, que foi privado de bens e família, de amor, de lar, de tudo, até atingir uma degradação tão grande que o aproxima do homem das cavernas (cavernas onde, de resto, vive durante os últimos anos da sua vida, até ser finalmente preso e internado num hospital psiquiátrico – o único sítio onde terá um tratamento minimamente humano). McCarthy é um ás da escrita – podia ganhar o Nobel da Literatura em Outubro, que eu não me importava nada – mas este romance de 1973 incomoda, é para leitores que tenham um estômago de ferro.
P.S. Cortei a primeira frase deste post, que dizia que um filme dos irmãos Coen baseado numa obra de Cormac MacCarthy era de Tarantino (não sei como fui fazer tamanha confusão) e agradeço ao primeiro comentador a chamada de atenção. A quem ainda a leu, peço desculpa pela incorrecção.
Aqui há tempos chegou aos nossos jornais o anúncio de que o Brasil interrompera a aplicação do Novo Acordo Ortográfico por achar que muitas das alterações que continha não tinham sido bem pensadas e que sobre elas não tinham sido consultados os principais interessados – os professores de Língua Portuguesa, entre outros. Na altura, depois de a notícia ser francamente aplaudida pelos que aqui em Portugal se declaram contra o NAO, vim aqui prevenir, num post, que essa notícia não era necessariamente boa, uma vez que algumas pessoas mais informadas afirmavam que o Brasil não queria chumbar medidas, mas, afinal, acrescentar muitas outras ainda mais discutíveis e radicais. E tinha pelos vistos razão nesse aviso, pois parece que vai ser mesmo assim. Para começar, chega a proposta de suprimir de uma vez por todas o «h» inicial, tornando «hora» em «ora» e «homens» em «omens» pela simples razão de que, não tendo qualquer som, a letra não faz falta nenhuma e aparentemente só gera confusão (alegrem-se os que sempre confundiram «há» com «à», que são muitos). Mas não é tudo: o «ch» (como em «chumbar») também desapareceria para sempre, sendo substituído por um simples «x», explicando um dos responsáveis pela nova proposta que o objectivo é ter um sistema com um mínimo possível de regras e excepções (para não termos muito que pensar, enfim, pois pensar é cansativo e, segundo o senhor, quase ninguém no Brasil sabe escrever, pelo que o melhor é mesmo simplificar). E estas luminárias querem agora discutir a sua proposta por videoconferência com os outros países, como se a questão da língua fosse coisa de conversar por Skype… Está tudo dito. Que mais nos irá acontecer?