Já não me devia admirar com cortes e mais cortes que este Governo tem levado a cabo em todas as áreas. Embora não seja seguramente das pessoas mais afectadas com eles, também os senti – e tenho, sobretudo, olhos na cara para ver o que se passa à minha volta, principalmente com os mais desprotegidos. Apesar de tudo, quando o orçamento de 2015 foi anunciado, não queria acreditar que a educação tivesse sofrido um corte tão drástico (depois dos inexplicáveis cortes nas universidades, que deixaram de ter dinheiro para quase tudo, e das bolsas de investigação que se evaporaram, foi simplesmente demais). Na verdade, era em cultura e educação que devíamos investir pois sem ambas nunca chegaremos a lado nenhum (e às vezes sinto que, com a emigração de tantos licenciados bem preparados, que nunca mais voltarão a Portugal, sobrarão apenas os mal preparados e os ignorantes, o que dá, aliás, muito jeito a quem manda para lhes cair em cima e não haver reacção). A diminuição na venda de livros recentemente divulgada por um estudo universitário exaustivo sobre a matéria tem certamente já que ver com isto: a escola não está a saber criar hábitos de leitura. Os condicionamentos são cada vez maiores: crianças que andam todos os dias quilómetros de autocarro porque fecharam as escolas da sua área de residência, professores que são colocados a milhas de casa e que não têm motivação nenhuma para ensinar. Isso explica talvez porque em 2014 concorreram mais pessoas à Casa dos Segredos do que à universidade. Não, não é o País que temos; é o País que querem que tenhamos.
Quando a minha avó materna morreu, eu tinha oito anos e o último presente que recebi dela foi um livro ilustrado chamado A Menina Coca-Bichinhos. Durante o Verão, o meu irmão Jorge e eu brincávamos bastante com a bicharada (seguindo carreiros de formigas e observando ninhos de lagartixas) e, talvez por isso, o livro parecesse tão apropriado. Pois resolvi aceitar o desafio lançado por essa recordação e buscar no dicionário, à semelhança do que aqui fiz já com aves e vegetais, expressões construídas a partir de bichos mais pequenos. O Manel até disse que eu estava com bicho-carpinteiro, de tal maneira andava sempre a levantar-me para ir apontar mais um termo que me ocorria. Eu prefiro dizer que parecia um mosquito eléctrico, o que é, de qualquer maneira, bem melhor do que ser uma mosca morta ou uma barata tonta... Mas, para que conste, há também quem queira ser mosca, ou mosquinha, para poder estar onde não está e ouvir o que por lá se diz (quem esteja em pulgas para saber o que se passa); e quem perca a vergonha ao perguntar sistematicamente o que não é da sua conta e receba o epíteto de abelhudo (e o interpelado há-de queixar-se da perseguição com um «que melga!» ou mesmo «uma autêntica carraça!»). Quem anda desconfiado de alguém e com a pulga atrás da orelha pode também sentir um formigueiro avisador. Os que exigem dinheiro por tudo e por nada são verdadeiras sanguessugas. Os molengas são lesmas. A um garoto armado em adulto, diz-se frequentemente «já a formiga tem catarro». Chama-se verme a alguém capaz de coisas realmente vis. Estar em apuros é também estar em palpos de aranha. As coisas insignificantes são minhoquices. As portas velhas dos elevadores eram conhecidas como lagartas. Um cinema-piolho, expressão hoje desaparecida, era um cinema rasca. Percevejos era o nome dado a um certo tipo de pioneses. Uma sala às moscas está quase vazia. Nada-se mariposa, mas a paixão faz borboletas no estômago. Um certo zumbido dos despertadores é conhecido por besouro. Mulher com as medidas certas tem cinturinha de vespa, mas num vespeiro há normalmente muita maldade junta. Alguém que gosta de livros é uma traça. Popularmente, gafanhotos são perdigotos. No Brasil, grilo é preocupação. Gente com teias de aranha na cabeça é o que mais encontramos por aí e os andarilhos, equipamentos que servem para aprender a andar, também são conhecidos como aranhas ou aranhiços. Sempre adorei um modelo de Volkswagen a que se dá o nome de Carocha. E pronto, acho que já fui coca-bichinhos que bastasse. Qualquer dia dedico-me a animais maiores. Como dizem os irmãos brasileiros: Me aguardem.
Conheci há alguns anos Siri Hustevdt, escritora norte-americana de origem norueguesa que é casada com o romancista Paul Auster. Embora em muitos países ela tenha bastante sucesso e seja uma autora literária muito considerada, a verdade é que, noutros, as pessoas não resistem a referir-se-lhe como «a mulher de Paul Auster» e alguns jornalistas chegam até a perguntar-lhe, durante entrevistas que deviam cingir-se à sua obra, como é ser casada com o escritor norte-americano. Siri confessa que isso a irrita, como também aborreceria certamente Maria Judite de Carvalho ser mencionada como a mulher de Urbano Tavares Rodrigues, sendo ela uma escritora de mão cheia. Há vários escritores que tiveram filhos e netos também escritores – e os herdeiros (como, pelos vistos, os cônjuges) raramente gostam de ser tratados enquanto tal e comparados com os seus antecessores. Viu-se, aliás, no dia do anúncio do Prémio LeYa, como o jovem vencedor Afonso Reis Cabral, que é trineto de Eça de Queirós, logo quis afastar a genética das razões que o tinham levado a arrecadar o galardão, sublinhando que o importante era o livro, e não ele ou os seus genes supostamente literários. Também o escritor Mário de Carvalho tem duas filhas escritoras. O facto de uma não assinar com o apelido do pai livra-a certamente de associações forçadas. Quanto a Ana Margarida de Carvalho, que já assim assinava como jornalista há muito, foi mais difícil afastar a história do parentesco dos comentários e críticas ao seu livro. No entanto, se alguém pensava que era por causa da filiação que a crítica tinha sido tão entusiástica relativamente a Que Importa a Fúria do Mar, pode agora tirar o cavalinho da chuva: apesar de ser um romance de estreia, encontra-se entre os cinco finalistas para o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Português de Escritores, talvez o mais sonante prémio nacional, que será anunciado no mês que vem, e também entre os seis finalistas do Prémio Literário Fernando Namora, da Sociedade Estoril Sol, ao qual concorre também A Segunda Morte de Anna Karénina, de Ana Cristina Silva, que igualmente publico e está nomeada pela terceira vez consecutiva. Uma proeza que só a ela se deve, e a mais ninguém.
Se há duas coisas que nunca faltam à mesa dos portugueses, são o pão e o vinho. Em minha casa, tanto eu como o Manel não passamos sem pão, mesmo às refeições, e quando vamos a um restaurante japonês ele fica sempre a achar que lhe falta qualquer coisa... Pois destes dois produtos privilegiados há muitíssimo a dizer e contar – e foi o que fez o genial Paulo Moreiras, autor de romances e também de vários livros que recuperam as tradições nacionais (a ginjinha, o palito, a morcela e o tremoço, por exemplo), no recentemente dado à estampa Pão & Vinho – Mil e Uma Histórias de Comer e Beber, ilustrado com gosto e discrição. Nele aprendemos como entraram o pão e o vinho na alimentação corrente dos homens, as suas origens mais remotas, mas também a forma como ambos minaram o nosso quotidiano na forma de provérbios, adivinhas, superstições, versos e muito mais; cheio de curiosidades interessantes (porque se chama Pão de Açúcar à montanha que está no meio do Rio de Janeiro, por exemplo), de listas de tipos de pão, de castas, de festas que se celebram com pão e vinho e também de algumas receitas muito bem apanhadas, a obra recupera ainda excertos da literatura popular, filmes e apontamentos incríveis de muitas épocas e lugares nos quais pão e vinho são os verdadeiros protagonistas. Deixo-vos dois pequenos exemplos do cancioneiro popular só para aguçar a curiosidade. Mas, por favor, não deixem de ler.
O da Joana é um pequeno livro de Valério Romão, autor que é considerado pela crítica um dos mais promissores ficcionistas da actualidade e esteve presente já por duas vezes na revista Granta com textos de sua autoria. Mas a expressão «o da Joana» ou «Isto não é o da Joana» é, segundo leio recentemente na Revista do Expresso, uma expressão bastante antiga, normalmente aplicada a um lugar terrivelmente desarrumado ou a um comportamento desajustado ou, por assim dizer, indecoroso. Pois parece que a dita expressão está ligada a Joana de Nápoles (Joana I, condessa da Provença) que, acusada de conspiração com vista à morte do marido, se terá refugiado depois em Avignon, cidade papal, no século XIV. Aí terá aprovado um decreto que regulamentava os bordéis, do qual fazia parte a colocação de uma porta bem visível por onde todos pudessem entrar e sair (e deviam entrar e sair muitos, gerando confusão). Esses bordéis ficaram então conhecidos como «paços da mãe Joana», dando mais tarde origem a «casas da Joana», ou simplesmente, «os da Joana» e, por isso, apesar de se ter perdido a conotação sexual, não se perdeu a de sítio onde há confusão e mau-comportamento. Para que saibam, o livro de Valério Romão nada tem que ver com esta história – embora aproveite a graça da expressão – mas com uma Joana grávida a quem acontece um terrível percalço. É o segundo volume da trilogia «Paternidades Falhadas», iniciada com Autismo, muito aplaudido pelos críticos.
Com o tempo, os intelectuais portugueses foram-se transformando – e hoje faltam-nos aqueles que eram realmente intelectuais completos. Falo por exemplo de Eduardo Prado Coelho, que podia escrever com a mesma profundidade sobre livros, dança e comida, ou do recentemente desaparecido Vasco Graça Moura que, além de poeta e romancista, era um homem cultíssimo em muitas artes (um melómano confesso, de resto) e um interessante opinion-maker, mesmo que não concordássemos sempre com as suas opiniões. Mas a sociedade Estoril-Sol, que é já conhecida pelo lançamento de dois Prémios Literários (Revelação Agustina Bessa-Luís e Fernando Namora, ambos atribuídos anualmente) e também pela publicação da revista Egoísta, não esqueceu o grande Vasco Graça Moura e resolveu homenageá-lo, tornando-o patrono de mais um prémio. Desta feita, o galardão contemplará a Cidadania Cultural e, digo eu, não podia calhar melhor.
Já aqui vos falei muitas vezes da Livraria Arquivo, em Leiria, um espaço muito bonito e acolhedor no que toca a livros e autores. Sempre que a oportunidade se apresenta, lá vou eu à Arquivo, acompanhada de um ou mais escritores, para uma sessão à roda dos seus livros para um público que costuma ser bastante interessado e participativo. Desta feita, a viagem far-se-á depois de almoço com a vencedora do Prémio LeYa em 2013, Gabriela Ruivo Trindade, autora de Uma Outra Voz, e, já na cidade de Leiria, iremos encontrar-nos com António Tavares, o autor de As Palavras Que Me Deverão Guiar Um Dia, que, por viver na Figueira da Voz, faz a viagem no sentido inverso. A conversa promete ser boa, digo eu – sendo que aquelas a que tenho assistido na Arquivo o foram sempre. Se estiver pelas redondezas, vá fazer-nos companhia.
Muitos dos autores de ficção que publiquei ao longo da vida eram também poetas. Alguns, aliás, já eram poetas antes de se terem tornado ficcionistas (José Luís Peixoto e valter hugo mãe, por exemplo). Diz a crítica que é difícil jogar nos dois lados com o mesmo nível – e talvez por isso uma das artes impere sobre a outra, fazendo com que determinado autor seja sempre conhecido ou como poeta ou como prosador (Saramago foi um romancista de excepção, mas a sua poesia não é muito difundida). Em todo o caso, não convém generalizar: acabo de ler O Uso dos Venenos, uma colectânea de poesia de José Carlos Barros, e não a acho nem superior nem inferior ao romance que dele publiquei no ano passado – Um Amigo para o Inverno – que foi finalista do Prémio LeYa em 2012. Vejo entre os dois livros pontos de contacto inequívocos, uma ligação às origens, à ruralidade, à memória. Até alguns objectos e palavras se cruzam nos dois volumes. Pedro Mexia, numa crítica ao poemário, fala de uma reunião de textos «com uma tonalidade humanista e melancólica que não teme o poético». Um exemplo, para que fiquem a conhecer melhor:
Ruína
Guardava a casa, o lume intemporal, como outros
guardam uma língua ou escondem da usura
alguns aspectos de uma biografia. Guardava a casa
como se não houvesse mundo além da escaleira
ou ao mundo não fosse dado entrar atravessando
a porta. É difícil compreender agora que a ruína
possa começar assim pelo lado de dentro, do interior
Quando eu andava no liceu, uma professora de Português disse à nossa turma que Gil Vicente dava pano para mangas. É bom referir que o comentário vinha a propósito de uma adaptação muito pouco ortodoxa que tínhamos feito de A Farsa de Inês Pereira e que fora depois representada por vários alunos para toda a escola. Mas a senhora tinha razão – há autores que dão pano para mangas, suscitam facilmente a escrita de outros textos ou abordagens ditas artísticas. Outro caso assim é o de Agustina. Além das várias adaptações cinematográficas a que os seus livros já foram sujeitos, algumas delas do realizador Manoel de Oliveira, chegou agora a vez de um compositor, Eurico Carrapatoso, transformar numa ópera um texto inédito da escritora portuense intitulado Três Mulheres com Máscara de Ferro. A estreia, na Fundação Calouste Gulbenkian, aconteceu recentemente por ocasião do I Congresso Internacional dedicado à obra de Agustina Bessa-Luís, mas esperamos poder ver a ópera por esse País fora com brevidade.
Leio num dos jornais de fim-de-semana que o filme Os Maias, de João Botelho – cineasta que é chegado à literatura e também já nos deu o Desassossego de Bernardo Soares, entre outras obras –, já foi visto por mais de 70 000 espectadores em Portugal. Parece, pois, que os portugueses perderam finalmente o medo do cinema português (melhor dizendo, o preconceito), ou então são os pais dos alunos que vão ter de ler a obra de Eça de Queirós durante este ano que os levam para que fiquem já com uma ideia da história e, se não chegarem a passar-lhe os olhos, possam mesmo assim debitar alguma coisa nos testes. A verdade é que também eu estava curiosa em relação a este Os Maias, e fui vê-lo, mas sem adolescentes. Gostei bastante dos cenários pintados e da interpretação dos actores, já menos da ligação dos episódios com voz off – que na maioria dos casos nem me pareceu necessária – e do final um pouco chocho, sem a graça que, na minha memória, tem no livro essa corrida para o americano. E apreciei obviamente o Eça, dito ali com todas as palavras que estão escritas por quem teve de as decorar ipsis verbis (opção do realizador que, digo eu, deve admirar o escritor) mas que antevejo de muito difícil compreensão para jovens de 15 anos que não leram a obra, sem hipótese de rebobinarem e voltarem a ouvir certos diálogos ou de irem ao caderninho de significados ver o que querem dizer determinadas palavras. Na sala onde vi o filme, a bem dizer, era tudo gente da minha idade. Mas talvez seja melhor assim. Sem terem visto o filme, alguns alunos sentir-se-ão obrigados a ler o romance, e isso é que é importante.